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Discurso de posse

Não é sem ponta de temor que ingresso na Academia Brasileira. A Cadeira que me toca é das mais ilustres. Fundada por Oliveira Lima, seu patrono é Varnhagen. A Academia não tem Cadeiras cativas, que se transmitam segundo uma linha única de afinidade. Assim pensavam Machado e Nabuco, duas das minhas primeiras e mais fiéis admirações. Num País de poucas instituições, e num País que a elas tem pequeno ou nenhum apego, a Academia vai sendo um milagre de continuidade, a caminho do seu primeiro século.

Ao contrário de outras, a Cadeira 39 tem mantido, sucessivamente, a sua vocação. Interrompeu-a em parte o antecessor imediato, jornalista por excelência. Ao receber Elmano Cardim, disse Levi Carneiro: “Contrariando certa tradição acadêmica, de significado primoroso – um historiador não sucede a outro historiador, nem a um poeta outro poeta – tem persistido a Academia em reconduzir, nessa Cadeira, um historiador após outro historiador. Convosco se quebra essa norma e se restabelece a tradição.”

Entre a História e o Jornalismo, há uma comunhão que dispensa prova. Ambos debruçam-se sobre a realidade, com espírito de pesquisa, de objetividade e de fiel interpretação. Já se disse que o jornalista é o historiador à queima-roupa. A História, como o jornal, não dispensa a liberdade. Ninguém pode considerar-se livre se não houver liberdade de imprensa, porque a liberdade de imprensa acarreta, desencadeia e garante a liberdade política em toda a sua plenitude.

Não seria oportuno nem teria eu autoridade para aqui discorrer sobre os que me antecederam. Todos têm sido estudados de forma competente. Sobre o patrono Varnhagen, ocupou-se por várias vezes José Honório Rodrigues, em particular em seu livro História e Historiografia.

Sobre Oliveira Lima, figura sedutora, estilo fascinante, muitas vozes se pronunciaram. Bastaria mencionar o que sobre esse “Dom Quixote Gordo”, na expressão de Gilberto Freyre, escreveu outro pernambucano – Barbosa Lima Sobrinho. Historiador, diplomata e memorialista, escritor em suma, Oliveira Lima foi também, e profundamente, jornalista.

Não seria fácil, de resto, dizer quem, nesta Casa, a começar do primeiro Presidente, até Vossa Excelência, Sr. Austregésilo de Athayde, não foi ou não é jornalista. Talvez Alberto de Faria, que sucedeu Oliveira Lima, com a merecida admiração que despertou o seu Mauá, esse “Caxias de nossa unidade econômica”, na feliz expressão de Tristão de Athayde.

Jornalista e professor, Rocha Pombo, trabalhador infatigável, está incorporado à nossa história do Simbolismo. Seu dramático itinerário pessoal é bem representativo da luta de quem no Brasil se decide a fazer vida intelectual: “A pobreza tem delícias que a opulência não conhece” – escreveu todavia sem amargura, antes com um toque de humildade.

Sobre Rodolfo Garcia, que ainda cheguei a conhecer, na Biblioteca Nacional, depuseram, entre tantos outros, Josué Montello e Francisco de Assis Barbosa. Discípulo de Capistrano, Garcia foi um modelo de honradez intelectual, de erudição, de paciência e de obstinado devotamento ao Brasil.

Nesse marcante traço do culto ao passado, do amor do Brasil, o Brasil de sempre, de hoje e de amanhã, é nessa nota permanente, é aí que está o fio invisível que passa pelos sucessivos titulares da Cadeira 39 e a todos os une e junta no teimoso empenho de amar e engrandecer a Pátria a que pertencemos.

Com espírito de humildade e de cooperação, sinto-me honrado no caminho de tão alta linhagem. Inicio o rito acadêmico sem que deva abrir mão do que tenho sido e do que sou. Muitas vezes já se disse que esta é a Casa da Liberdade. Ninguém aqui se aliena, ou faz o que não quer. A Academia não implica o academicismo. Onde não acrescenta, em compensação nada tira.

Mentiria, porém, se não dissesse que o peso das convenções intimida e pode mesmo aterrorizar. Uma dessas convenções é este fardão, de que se tem falado muito mal – e dele felizmente se fala mais mal aqui dentro da Academia do que lá fora, primeiro porque é aqui dentro que o sofremos e, segundo, quem sabe, porque também seja verde, como as uvas de La Fontaine. Manuel Bandeira, que só o envergou duas vezes, na própria posse e na recepção a Afonso Arinos, chamou-o “aurisplendente”; e nele não se sentiu – é o Poeta quem o diz – “glorioso itinerante ad immortalitatem, mas como um daqueles batráquios ‘chamarrés de pustules’ do Chantecler de Rostand”.

Não sei eu como me sinto, ou como deva me sentir. Para ser sincero, totalmente sincero, no modesto horizonte de minha vida, não se tinha desenhado, ambicioso, o “sonho” desta ilustre Companhia. A realidade impôs-se, porém; paciência. Aceito o vosso gesto leviano e atencioso de acolher-me, sem que tenha de renegar ou retirar qualquer palavra atirada contra as vossas, agora nossas vidraças. É possível assim que, jovem, eu não tenha sido suficientemente iconoclasta, pecado de que ainda posso, quem sabe, vir a recuperar-me.

Pertenço a uma geração que tem o privilégio de admirar a geração missioneira que a precedeu. Na obra demolidora da renovação modernista, pouco ou nada ficou a nosso cargo. Na Academia já encontramos, reconciliados, alguns dos grandes nomes de 1922, que a passagem do tempo só fez crescer em nossa admiração. Esta é assim a Casa dos velhos amigos, a que se juntam outros tantos, mais novos. A título de exemplo, permito-me citar quatro dos que já se foram e deixaram marca indelével em nossa cultura: Manuel Bandeira, José Lins do Rego, João Guimarães Rosa e Álvaro Lins. São também, como tantas outras, no plano pessoal, saudades insanáveis.

Senhores acadêmicos,

Récem-retirado do vosso convívio, o perfil de Elmano Cardim dispensa retoque ou enfeite. Homem sereno, de trato afável e firme, jamais perdeu o prumo com que discretamente impôs sua presença nos quadros da grande imprensa e da vida pública. Sua vida decorreu sob o signo de uma qualidade-mestra: a coerência. Desde muito cedo, ainda adolescente, quando se iniciou como jornalista, virtudes e qualidades juntavam-se na justa medida da moderação que tão bem casava com sua harmoniosa personalidade. Dessa fonte provinha a natural elegância com que sempre se conduziu, num país de temperamentos arrebatados, afeitos ao improviso e a fáceis emoções. Sempre participante, nunca alheio, Elmano Cardim conservou impertubável o traço da tolerância e da compreensão – reservado, sóbrio, polido.

Jornal do Commercio foi dos poucos jornais por que não passei, em minha já longa trajetória profissional. Talvez por isso pudesse machadianamente dizer que conheci Cardim de vista e de chapéu. Na verdade, conheci-o de longa data e muitas vezes nos falamos, em encontros de rua, no acaso do cotidiano. Nossa prática mais longa deu-se, porém, em Lisboa. Ciente de que, como ele, eu não conseguia desprender-me do vício de ler jornais, Cardim vinha à tarde procurar-me para saber das novidades e tomar conhecimento do que acontecia deste lado do Atlântico. No seu jeito macio, civilizado, sentava-se às vezes ao lado da minha mesa e me pedia que o esquecesse, enquanto mergulhava na ruma dos jornais e revistas que eu lhe passava. Já afastado da direção do Jornal e distante do Brasil, em viagem de recreio, queria tudo saber sobre a Pátria atribulada, vítima crônica de crise aguda. Sua atitude acolhedora, sua palavra prudente, sua larga experiência, tudo nos convidava a segurá-lo para um dedo de prosa.

Moderado, mas firme, ou moderado porque firme, sabia divergir com civilidade, a ponto de cativar o interlocutor que dele dissentisse.

Não tendo tido o privilégio de sua convivência no democrático exercício de confrades na mesma sala de redação, acertei com Odylo Costa, filho, seu companheiro do Jornal do Commercio, uma conversa que me desse de Elmano Cardim uma visão humana e profissional. Jornalista como Cardim, seu amigo de toda a vida, enriquecido com um roseiral lírico intimamente ligado ao seu cárater afetivo, Odylo, convidado para sempre, partiu sem que tivéssemos podido realizar o nosso projeto. Nem por isto devo omitir aqui a fraterna homenagem que lhe devo, por ter sido o cireneu indormido do displicente candidato que afinal se elegeu e ora aqui se encontra, para vossa e minha surpresa.

Quando pleiteou na Academia a Cadeira a que lhe dava direito o seu mérito, Odylo foi visitar o velho amigo Elmano Cardim, no cumprimento de um rito que inibe certos candidatos e lhes aparece como insuportável via crucis, mas que também pode ocultar agradáveis surpresas, encontros e reencontros que consolam, nestes tempos de tão pouca formalidade e de tanta solidão e distância. Disse então Cardim a Odylo: “O meu voto é teu, mas te daria com mais prazer a minha vaga, porque ficava tranquilo quanto ao elogio acadêmico que compete ao meu sucessor”.

Tendo conhecido e lidado com cerca de vinte Presidentes da República, tal como ele próprio confessou, Elmano Cardim jamais quis ir além do lugar que lhe coube, de sábio e leal conselheiro das horas difíceis e tormentosas. Podia ter sido Ministro de Estado no governo do Presidente Eurico Dutra, que lhe era reconhecido pela atitude que assumiu o Jornal do Commercio sobretudo no desenrolar dos fatos que desaguaram no episódio de 29 de outubro de 1945.

Nove anos mais tarde, depois do trágico suicídio de Getúlio Vargas, Cardim exerceu junto ao Presidente Café Filho um papel que não seria excessivo chamar de histórico. Alçado pelo destino à posição com que talvez jamais sonhara, Café daria a Cardim a pasta ministerial que ele escolhesse. Ainda uma vez, porém, Cardim nada quis, para continuar o “redator de banca” que, jovenzinho, com limitada experiência, incluindo sua passagem por um diário dirigido por Rui barbosa, um dia entrou anônimo, em 1909, na antiga sede do Jornal do Commercio, na Rua do Ouvidor.

Cardim parecia ter especial prazer em ocultar-se, ainda que se soubesse que era redator de importantes matérias não assinadas. Assim se identificava mais intimamente com o Jornal do Commercio. É possível, porém, que, com o tempo, a quebra do anonimato não lhe fizesse mossa. Podia até ocorrer que lhe caísse bem. Nos anos 1930, quando esteve no Brasil Robert Garric, Elmano Cardim tomou-se de entusiasmo por sua pregação, numa prova de fidelidade, jamais desmentida, à cultura francesa. Com isto, dava prova também de abertura e sensibilidade diante da questão social, na linha da Igreja e, em particular, de Leão XIII. Cada conferência de Garric tinha, no Jornal do Commercio do dia seguinte, no seu prestigioso Registro, minuciosa e perfeita resenha. Ao passar pela Bahia em 1937, Cardim conheceu Afrânio Coutinho, que lhe mostrou a coleção de recortes do Jornal, com o esmerado resumo das conferências de Garric, pronunciadas dois anos antes, em 1935. É o próprio Afrânio Coutinho quem depõe: “Cardim ficou encantado e nunca mais se esqueceu.”

Outros depoimentos haverá, no mesmo rumo. Está nas memórias de Afonso Arinos de Melo Franco, em sua Alma do Tempo, um episódio que convém recordar. Afonso tinha sete anos, em 1912, quando seu pai lhe deu a ler a reportagem do Jornal do Commercio sobre as exéquias do Barão do Rio Branco. Foi dos primeiros textos de que Afonso tomou conhecimento inesquecível. Aí estão os dois Melo Franco, pai e filho, Afrânio e Afonso, que mais tarde passariam pela chancelaria a que Rio Branco imprimiu estilo e prestígio perenes. Foi aqui na Academia que Afonso Arinos veio a saber, pelo próprio Cardim, que a reportagem de 1912, caprichada, era da autoria do jovem repórter que por merecimento viria a escalar todas as posições, até chegar à direção do Jornal.
 
Episódios assim não podiam deixar de falar à sensibilidade do velho jornalista. Ainda anônima, sua pena granjeava respeito e admiração que resistiam à passagem do tempo. No jornal e no livro, na conferência e na conversa, Cardim está jungido à disciplina da sobriedade. Sua voz nunca se alteia; tampouco suas palavras se perdem em floreios ornamentais. Era um ático. Escrevia com clássica limpeza, um pouco por temperamento, um pouco por imposição do ofício diário em que apurou a expressão enxuta e objetiva.

Se formos contar a colaboração anônima que deixou no Jornal do Commercio, a obra de Elmano Cardim é volumosa e farta: não é pequena, porém, a bagagem que traz seu nome. Seus livros e suas palestras estão diretamente vinculados aos valores e aos homens que, por toda a vida, dele mereceram reverência e inalterável apreço. Uma trindade santíssima tinha lugar de honra em sua devoção de brasileiro: Rui Barbosa, Rio Branco, Joaquim Nabuco. Invocou-os sempre, a eles sempre voltou, para fortalecer as convicções e o civismo que no seu coração nunca sofreram abalo ou desgaste.

Depositário de um tesouro que se confunde com a História do Brasil, Cardim não deixou desmaiar sua confiança no Jornal do Commercio. Cultivou-lhe minuciosamente o passado. Exaltou cada uma das figuras de prol que por lá passaram, desde o fundador Plancher até Félix Pacheco. Seu interesse pela imprensa levou-o a pesquisas e estudos para além do Jornal. Trabalhos como “Jornalistas da Independência” e “Justiniano José da Rocha” são prova eloquente de que, na imprensa, através dos jornais, buscava entender a fisionomia do Brasil, sua alma profunda, a razão e o fundamento de nossas instituições.

Cardim não tinha a “prosa grandíloqua” de Félix Pacheco. Escrevia em voz baixa e se esmerava em viver na penumbra, na pauta que não comporta dós de peito nem dissonâncias. Admirava, por contraste, os que pertenciam a outra família espiritual. Não se cansava de louvar a “perfeição altissonante do estilo sem par” de Rui. Suas letras, porém, estão mais próximas da vertente machadiana, ainda que isentas de malícia e até de sense of humor diante do nem sempre divertido espetáculo do mundo e dos homens. Cardim acreditava piamente que o jornalista só se engrandece quando encontra sua hora e sua vez no contexto histórico. Vinte anos antes ou vinte anos depois, sustentava ele, Patrocínio seria ninguém, porque fora da exaltação da crise, sem a forte causa que lhe reservou o destino, não teria topado com a oportunidade de sua grandeza e de sua revelação. Sem essa insubstituível ocasião, ninguém chega a ser alguém. Nítido, tal conceito a seu modo fatalista percorre toda a obra de Cardim e talvez explique o meticuloso interesse com que, para além do Jornal, se aplicava em domar por dentro e interpretar para fora os episódios políticos e sociais de que foi testemunha. Não buscava por certo a circunstância para engrandecer-se, mesmo porque estava consciente de que os grandes homens não são os que mandam, mas os que inspiram.

Senhores acadêmicos,

Tenho presentes, neste momento, duas autorizadas advertências. Uma é de Pedro Calmon: “Considero que o pior discurso é o discurso longo.” A outra é de Antonio Houasiss: “Em momentos assim, é mister ser breve.”

Entre tantas sugestões que recolhi no estudo da obra e da vida de Elmano Cardim, uma só me parece impositiva, para não prolongar por mais tempo o pesadelo desta posse. Refiro-me à sua permanente fidelidade ao princínio da liberdade de expressão, da liberdade de pensamento, da liberdade de imprensa. Da liberdade. Não há, em sua obra de jornalista, um só momento em que hesite. Tendo vivido duas guerras, com a subversão de tantos valores, um houve de que jamais descreu: “A liberdade deve ser uma religião em nossos espíritos” – repetia com Croce, em 1943.

O grande advogado da liberdade que é Sobral Pinto, antigo colaborador do Jornal do Commercio, entreteve longo e diário convívio com Elmano Cardim. É de seu “inesquecível amigo” que Sobral me fala em depoimento epistolar inédito:

O seu espírito era eminentemente conservador e a sua grande paixão era o Jornalismo, mas o Jornalismo político, no alto e bom sentido. Cardim se identificava plenamente com a orientação do Jornal do Commercio, tradicionalmente conservador, legalista, ordeiro e brasileiro. Cardim era um enamorado da inteligência e um entusiasta da Cultura debaixo de todos os ângulos. É claro que para isso muito concorreu a tradição mais do que secular do Jornal do Commercio. As ideias e o ponto de vista pessoal, Cardim os manifestava na primeira Vária. Aí ele lançava, de maneira ordenada e em estilo austero, as opiniões que manifestava nas conversas que mantinha com três ou quatro amigos em cuja inteligência, cultura e critério acreditava. Posso afirmar, sem receio de errar, que não tolerava nem a revolução nem a ditadura.

Perfil apolíneo, é o caso de perguntar se Elmano Cardim teve consciência da complexa e profunda transformação por que passou o mundo, e particularmente o mundo da imprensa, com o advento das novas e poderosas formas de comunicação. Retirado da sua “banca de redator”, nunca se furtou a prestar depoimento sobre a vasta matéria de sua experiência. Nos últimos anos, mais de uma vez referiu-se à transformação de nosso tempo, em que seus olhos pacíficos vislumbravam talvez contornos de uma convulsão, no permanente “desconcerto do mundo” a que se referiu o poeta. Assim é que, no sesquicentenário do Jornal do Commercio, em 1977, dizia ele que neste meio século de existência fora testemunha dos mais importantes acontecimentos que em nossa terra e no mundo convulsionaram o universo, de maneira que “nestes próximos cinquenta anos se operassem maiores transformações do que em cinquenta séculos passados”. Viu a imprensa evoluir ou, se quiserem os saudosistas, involuir, para popularizar-se. Acompanhou a decadência de muitos impérios e a ascensão de novos valores na comunhão dos homens. E como todos aqueles que vivem muito – são ainda palavras suas – habituou-se a não se espantar com o imprevisto, nem a discutir o imponderável. Fugiu ao inconformismo, para não submergir ao pessimismo, que envenena, aniquila e mata.

Senhores acadêmicos,
 
Tinha eu dez anos, quando pela primeira vez fui apresentado à glória literária em pessoa. Três anos depois, aqui viria sentar-se o mensageiro dessa mitologia que embalou os melhores anos de minha vida. É ele hoje o decano da Academia: Alceu Amoroso Lima. Pois deu-se o caso que Tristão de Athayde foi a São João Del Rei, a 16 de junho de 1932, pronunciar a primeira conferência que ouvi em minha vida. Trazia o título de “As Repercussões do Catolicismo” e começava por contar um episódio espantoso da vida, tão cedo tragicamente encerrada, de Jackson de Figueiredo, de quem sou afilhado de batismo.

Permiti assim, conduzido ainda pela mão de Alceu, que evoque minha cidade natal, berço de tantos homens ilustres, a começar pelo Tiradentes, que Varnhagen, em sua portentosa obra histórica, infelizmente não quis compreender nem exaltar. Muitos nomes podiam aqui estar, ou ter estado, honrando a cidade do brioso e iroso Alferes, ainda que esta Cadeira 39 se mantivesse fiel a esse ar de família que têm entre si os oficiais do mesmo ofício, no caso os historiadores. Afinal, de Barroso, de São João Del Rei, é Basílio de Magalhães. Como de São João é o fino poeta que celebra a encomendação das almas e os templos barrocos de nossa terra – Altivo de Lemos Sette Câmara, que lá está, fiel, “sob os perpétuos sinos de São João Del Rei”, segundo a expressão de João Guimarães Rosa, que menino, Joãozito, lá estudou e lá foi aluno de meu pai. De São João Dei Rei é ainda a figura ímpar de Gastão da Cunha.

Senhores acadêmicos,

Se é com prazer que evoco a passagem de nosso decano pela minha infância, não é também sem uma ponta de encabulamento que me vejo na contingência de arrebatar das mãos de meu velho amigo João Cabral de Melo Neto o cetro que até agora detinha, de benjamin desta Casa. Na altura em que nos encontramos, temo ao menos por mim, que já não seja um cetro, mas seja antes um cajado em que prestes se arrime a idade provecta a que todos estamos condenados, a menos que optemos pela única sinistra alternativa. Como a imortalidade não é patrimônio dos acadêmicos, mas da Academia, resta-me a esperança de que a renovação se faça sempre sem precipitação e sempre sem preconceito de qualquer espécie, inclusive sem o receio do que é novo, como nova, sempre nova e inovadora, há de ser a juventude. Ao fim e ao cabo, nem por ser, como é, permanente convite à meditação sobre a morte, a nossa falaz “imortalidade” tem necessariamente de voltar as costas à vida.

Senhor Afonso Arinos de Melo Franco,

Vai longe o dia em que nos conhecemos. Num certo sentido, posso dizer que herdei vossa amizade, ou que ela em mim ao menos se fortaleceu, a partir do legado de vosso irmão Virgílio. Tendo iniciado a minha vida de imprensa sob o estúpido constrangimento da censura prévia, não hesitei diante da convocação que Virgílio nos dirigiu, a um grupo de jovens mineiros, para a inesquecível aventura de editar com a cara e a coragem um jornal que tinha, ao fim da ditadura estadonovista, o ainda hoje atualíssimo título de Liberdade.

A ração de liberdade que nos foi dada ao longo da vida não bastou para saciar o nosso apetite, que continua fiel aos ideais da juventude. Para tanto, bastaria reler hoje a Declaração de Princípios do Congresso de Escritores que nos congregou em São Paulo, em fevereiro de 1945. Da minha parte, de bom grado volto a assinar essa Declaração, magistralmente redigida por dois expoentes da cultura brasileira: Prado Kelly e Caio Prado Júnior.

Foi aí, nesse Congresso, que conheci Francisco de Assis Barbosa, secretário da mesa, voz estentórica, e como eu por todo o sempre amarrado à banca das redações, meu companheiro da vida toda. Sou-lhe muito grato por mais uma vez paraninfar-me, na imposição do colar que enriquece a liturgia e a tradição desta Casa.

A vós, Sr. Afonso Arinos, só me cabe dizer o que sabeis e o que sabe o Brasil; que sois uma afirmação nacional em todos os planos em que atuastes. E que sois também, dos mais altos, legítimo representante dessa original cultura mineira, em que tendes mergulhadas vossas mais remotas e melhores raízes.

Ser fiel a essa Cultura, quero crer que é ser brasileiro por excelência, isto é, defender a República e a livre cidadania; desejar que o Brasil faça um dia, mais do que a reforma ortográfica, a grande reforma social que abrirá ao povo o seu definitivo lugar de protagonista da história.

Estou muito agradecido a todos vós pela delicadeza de me terdes acolhido.

2/10/1979