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Discurso de posse

(Texto de improviso, retirado de gravação.)

Quando, há poucos minutos, entrei neste Salão, sob tantas palmas generosas e trazido pelas mãos fraternais da Acadêmica Lygia Fagundes Telles e dos Acadêmicos Antonio Olinto e Lêdo Ivo; quando me deparei com tantos rostos caros ao meu coração; Quando me reencontrei com tantos acadêmicos cultos e inteligentes; quando vi essa mesa e essas cadeiras ocupadas por pessoas tão queridas e tão importantes; quando tudo isso acabou de acontecer, numa sucessão de rápidos segundos, tive de fazer um esforço muito grande para resistir a tantas emoções e para simplesmente não chorar.

Senhor Acadêmico Arnaldo Niskier, Presidente da Academia Brasileira de Letras;
Senhor Senador Geraldo Melo, Vice-presidente do Senado e representante do Senador Antonio Carlos Magalhães, Presidente do Congresso Nacional;
Senhor Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales;
Senhor Governador Garibaldi Filho, do meu Rio Grande do Norte;
Senhor Senador Edison Lobão;
Senhor Prefeito Luiz Paulo Conde, da Cidade do Rio de Janeiro;
Senhor Ministro Fontes de Alencar;
Senhores Parlamentares;
Senhores Comandantes Militares, representantes dos seus Ministros;
Demais Autoridades;
Senhores Acadêmicos;
Minhas Senhoras e Meus Senhores;
Meus Amigos,

Aqui estou chegando, após uma longa e penosa caminhada, que começou aos 12 anos de idade, quando, ainda de calças curtas (e lá na minha querida Cidade de Natal), entrei, pela primeira vez, na redação de um jornal, O Diário, para ganhar o então rico salário de 50 mil réis por mês.

Natal era, nessa época, em 1940, uma cidade de 50 mil habitantes, que iria enfrentar os anos duríssimos da Segunda Grande Guerra.

Mas já era a Cidade do Sol; a lapinha; a pastorinha e a Cidade-Presépio.

Cidade menina, Cidade mulher, dengosa e faceira, quase erótica e sensual.

Cidade de Mestre Luís da Câmara Cascudo, das praias lindas, das dunas brancas e selvagens, dos mares sargaços, dos pescadores corajosos, dos cajueiros enfeitados, das mangueiras exóticas, dos coqueirais luxuriantes.

Cidade heróica, que resistiu aos holandeses e que iria transformar-se no Trampolim da Vitória. Cidade sentinela avançada do Brasil no rumo da África.

Cidade de gente acolhedora, cativante e hospitaleira.

Quem vai a Natal não a esquece jamais.

E quem sai de Natal, como eu saí, há tantos anos, sempre se lembra dela. Porque Deus, quando criou o mundo, certamente deve ter caprichado nos cenários da minha terra querida, dando-lhes contornos e paisagens de uma beleza incomparável.

Ali ficaram as minhas raízes, as minhas origens, os meus pais, irmãos, primos e sobrinhos, pessoas caras à minha lembrança, às quais quero um bem muito grande e das quais sinto enormes saudades.

Senhores Acadêmicos,

Sinto-me feliz e realizado, porque há 50 anos eu ambiciono esta Academia, eu cultivo esta Academia e eu sonho com esta Academia.

(Dizem, aliás, que as coisas, na vida, ambicionadas, cultivadas e sonhadas, ao serem conquistadas, têm um sabor todo especial.)

Lembro-me bem dos meus tempos de adolescente, aqui no Rio de Janeiro, recém-chegado de Natal, quando, embevecido, assistia àquelas posses formais e cerimoniosas de novos acadêmicos, e, certa vez, prometi a mim mesmo:

- Quem sabe se eu, algum dia, não chegarei aqui?

E hoje, meio século depois, cheguei, eleito pelo voto livre, generoso, soberano e independente dos membros desta Academia, e assumindo este mandato, que não tem prazo para terminar porque é vitalício.

Tenho fundadas esperanças de ser pelo menos um bom acadêmico, digno da vossa confiança, e de ajudar-vos a executar os fabulosos projetos que todos nós temos o direito de esperar da vossa inteligência e do vosso patriotismo.

Vamos conviver juntos e vamos nos amparar mutuamente pelo resto de nossas vidas, num ambiente de muito coleguismo, com pessoas agradáveis, sábias e talentosas, como são os membros da Casa de Machado de Assis - esta Suprema Corte da cultura e da inteligência brasileiras.

Tive nessa minha campanha a grande felicidade de enfrentar um candidato correto e digno, o Embaixador Alberto da Costa e Silva, com o qual travei um duelo democrático, no mais alto nível, como a nossa Academia tanto merece.

Uma semana antes da eleição, fui visitá-lo. E nossa conversa foi tão edificante, que merecia até ter sido gravada. À saída, assumimos um compromisso de honra: qualquer um de nós dois que não vencesse a eleição iria à residência do vencedor, para cumprimentá-lo.

E ele, na companhia do Acadêmico Candido Mendes de Almeida, foi à minha casa. E, com o Acadêmico Alberto Venancio Filho, brindou numa taça de champanhe à minha vitória. E, hoje, aqui veio para prestigiar a minha posse.

Houve um dia, durante essa campanha, em que o desânimo e o desespero quase tomaram conta de mim, porque eu achava simplesmente que não ia vencê-la. Nesse dia, fui à minha igreja, ajoelhei-me, rezei, comunguei e entreguei o destino e a sorte da minha candidatura ao meu Deus, ao meu Cristo, aos meus padrinhos e protetores lá de cima. Seria o que eles bem decidissem. Vi, depois, que eles decidiram em meu favor.

Porque justamente uma das minhas promessas feitas lá para cima foi a de que - caso me elegesse - o dia da posse começaria com uma missa em ação de graças.

Podeis, então, imaginar facilmente, minhas senhoras e meus senhores, a minha profunda emoção de católico quando assisti, na manhã de hoje, a essa Missa sendo celebrada pelo Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eugênio Sales, meu conterrâneo, meu pastor e meu fraterno amigo há tantos anos, aqui presente.

(Texto lido com trechos improvisados pelo orador.)

Meus queridos confrades,

Nesta Academia, encontro caminhantes e andarilhos de outras peregrinações reunidos nesta noite, com tantos e tão carinhosos amigos, para recepcionar este novo peregrino, que está sendo entronizado neste templo de deuses terrestres.

Aqui me encontro, quase no fim de uma áspera e sofrida maratona pelo Brasil e pelo mundo inteiro, com algumas turbulências e acidentes de percurso.

Durante essa jornada - não raro, em areias movediças - muito andei, muito vaguei e muito peregrinei.

Como um ousado viandante, trago na sola dos sapatos aquilo que o nosso Manuel Bandeira chamou de “a poeira das extensas estradas percorridas”.

Esta viagem, porém, com a mesma náutica e a mesma viseira, vai prosseguir no nível de uma travessia sem retorno.

Ela, por vezes, singrou uma rota de mares encapelados, com tempestades e vendavais, mas hoje aqui se ancora na enseada e no porto seguro do vosso cais e do vosso refúgio.

Enfim, cá estou, nesta tribuna que é um dos melhores incentivos ao meu jornalismo e uma das maiores recompensas da minha existência.

Deus tem sido muito pródigo comigo.

Entre as Suas Graças e Generosidades, esta talvez seja uma das mais abençoadas, que foi justamente a de ter-me trazido para o vosso convívio.

Afinal, Senhores Acadêmicos, aqui me tendes e eis-me a vosso serviço. Muito desejei estar convosco e muito ansiei por este momento. Eu queria humildemente ficar em vossa companhia para formar, ombro a ombro, ao vosso lado. Por isso, candidatei-me e conquistei os vossos votos. Por isso, também, abreviei o quanto pude o prazo entre a minha eleição e esta posse. Os 74 dias que decorreram entre elas foram contados minuto a minuto.

O meu coração está plantado agora neste recinto imortal. Aqui, não me considero um estranho no ninho. Estou ingressando numa confraria de irmãos e amigos da adolescência e da maturidade, antigos colegas, aparências e figuras familiares, como as vossas, pessoas ligadas a mim por laços de uma profunda afeição.

Declino, com reverência, os nomes de alguns membros emblemáticos desta Academia, que aqui se encontram: Arnaldo Niskier, Tarcísio Padilha, Marcos Vilaça, Evandro Lins e Silva, Antonio Olinto, Geraldo França de Lima, João de Scantimburgo, Alberto Venancio Filho, Candido Mendes de Almeida, Carlos Nejar, Celso Furtado, Padre Fernando Bastos de Ávila, João Ubaldo Ribeiro, José Sarney, Josué Montello, Lêdo Ivo, Lygia Fagundes Telles, Marcos Almir Madeira, Oscar Dias Corrêa, Rachel de Queiroz e Sábato Magaldi.

Representamos todos os segmentos notáveis, profissionais e intelectuais da nossa sociedade: as artes, a advocacia, a Igreja, a literatura, a diplomacia, o magistério, a magistratura, a medicina, a política, a economia, o jornalismo, o teatro, a poesia e o romance.

Temos os nomes marcados para sempre como ocupantes dessas Cadeiras.

É como se estivéssemos imunes ao esquecimento. Cultivamos a esperança de que nem tudo desaparecerá conosco e de que teremos uma sobrevivência na lembrança da posteridade, embora ocorra que não mais estaremos vivos para presenciá-la.

Para nós, imortais, o tempo se transfigura em eternidade. Pois a imortalidade á a vida contínua e eterna. Todos os povos e religiões nela acreditam: desde os gregos de Aristóteles, de Sócrates e de Platão até os romanos de Júlio César, de Marco Antônio e de Otávio Augusto, passando pelos cristãos de Cristo, pelos judeus de Moisés, pelos mulçumanos de Maomé, pelos budistas do Buddha, pelos hindus dos Vedas e pelos brâmanes do Ramayana.

Nós, Acadêmicos, apesar de imortais, somos efêmeros e transitórios. Só as Academias são duradouras e permanentes. Elas raramente procuram candidatos. São eles que têm de bater às suas portas, sempre abertas a todas as candidaturas justas e respeitáveis, democraticamente apresentadas.

Há 102 anos somos aqui apenas 40 membros titulares, numa população de 160 milhões de habitantes, com a média de uma acadêmico para cada grupo de 4 milhões de compatriotas e numa proporção que aumenta muito os nossos compromissos e deveres diante da Nação e da sociedade brasileiras.

As Academias de Letras estão divididas somente e sempre entre os que se vão e os que estão chegando. Elas têm apenas uma síndrome e um tabu: o de que, aqui dentro, não se deve falar em vagas, pelo menos enquanto elas não existirem. Como ocupante desta Cadeira no 20, envio, desde já, um aviso aos candidatos e aos pretendentes: “Não tenciono desocupá-la tão cedo.” Porque os candidatos geralmente vislumbram nos Acadêmicos apenas dois Vês: o V de vaga e o V de voto.

Um acadêmico muito irônico costumava aconselhar os seus colegas, quando atravessassem uma rua, a terem cuidado com o tráfego e a disparada dos automóveis, porque, afinal de contas, somos imortais, sim, mas não tanto. Não somos imorríveis...

Antes do nosso Mausoléu, no Cemitério de São João Batista, dizia o Acadêmico e Confrade Olavo Bilac:

- Somos imortais porque não temos onde cair mortos...

Senhor Presidente Arnaldo Niskier,

Esta Academia, fundada há quase 102 anos, no dia 20 de julho de 1897, por iniciativa de Lúcio de Mendonça, foi presidida, durante os seus primeiros 11 anos, por Machado de Assis, vosso memorável antecessor nessa Presidência, que, no discurso inaugural, e, sinteticamente, como sempre, já definira o seu grande objetivo com esta frase quase bíblica: “Conservar, no meio da federação política, a Unidade literária”, como guardiã das mais sagradas relíquias da inteligência e da sabedoria.

E, também, com uma tenaz vigilância do idioma e da literatura nacionais, esta Casa tem sido um desmentido vivo aos vaticínios pessimistas que prevêem vida curta aos organismos literários, porque sobrevive há mais de um século, sempre fortalecida na veneração de todo o País.

Transformada numa instituição de respeito, ela foi, é e será eternamente uma inexpugnável cidadela intelectual.

Sempre admirei as suas tradições e cerimônias, os seus cultos e protocolos. Para mim, ela continua a mesma, indene e a salvo das convulsões e dos temporais políticos, como um santuário de valores eternos e imortais.

Esta nossa é uma Academia sólida e dinâmica, ao mesmo tempo tradicional e moderna. E resistente às intempéries, que, vez por outra, açoitam os alicerces da nossa nacionalidade. Ela não se encastela numa torre de marfim, nem se enclausura num cenáculo hermético e inacessível, preferindo ser uma partícipe atuante e presente em todo o universo brasileiro. Acima das divergências e dos passageiros anos de nossas existências fugazes, vamos aqui, pouco a pouco, sem maiores ambições, construindo o perfil da nossa própria imortalidade, que não se choca com a imortalidade dos céus porque é humana e terrena. Neste Petit Trianon, esta maravilhosa réplica do palácio de Maria Antonieta, em Versalhes, doado pela França em 1923, após o centenário da nossa Independência, e que mantém até hoje as linhas originais de sua arquitetura clássica, traçadas por Gabriel, o grande arquiteto francês; neste Petit Trianon, repito, a nossa imortalidade, que também não é física, reside precisamente na certeza e na garantia de que, dentro destas quatro paredes, seremos lembrados carinhosamente. E para sempre.

Aqui não se aperfeiçoam os escritores, os poetas e os jornalistas, que já chegam feitos, para encontrar a tranqüilidade e a contemplação da obra realizada, como reconhecimento dos galardões e da glória.

A esta Casa, com o seu lema latino Ad immortalitatem (Para a imortalidade) e o seu brasão com uma coroa de louros, estou chegando com os olhos bem abertos da minh'alma, ávidos, jejunos e sedentos de novos estímulos que tantos talentos juntos podem oferecer. O meu coração e a minha cabeça ainda são jovens e curiosos, testemunhando a rápida evolução de uma Humanidade em crise permanente.

Estou entrando nesta Casa nem muito cedo, nem muito tarde, nem muito moço, nem velho ainda, mas naquela idade ideal e adequada a receber, como recebo nesta noite, a recompensa acadêmica.

Esta Academia preenche os sonhos de quem, como eu, não tem nem nunca teve pretensões políticas, ou ambições de fortuna e de riqueza pessoais, embora as reconheça nos líderes políticos e nos brasileiros que as possuem, como conquistas justas, honestas e legítimas. Não tenho mais tempo nem idade para ser um homem rico. Resta-me, então, viver de alegrias e felicidades, como as que me são dadas neste momento.

Senhores Membros da Mesa,

Esta Academia nasceu jovem. Quando a instalou, o seu primeiro Presidente, Machado de Assis, que hoje nos parece um ancião, tinha 58 anos de idade.

E para patronos de suas Cadeiras foram escolhidos nomes de intelectuais, que, aliás, quando ela foi fundada, já estavam todos mortos e alguns, moços, tinham morrido até com bem poucos anos de vida: Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu, com 21 anos; Junqueira Freire, com 23; Castro Alves, com apenas 24 anos; Adelino Fontoura, 25; Pardal Mallet e Manuel Antônio de Almeida, 30; Teófilo Dias e Raul Pompéia, 32; Martins Pena, 33; Fagundes Varela, 34; Tavares Bastos, 36; Laurindo Rabelo, 38, e Gonçalves Dias, com 41 anos. Era a própria mocidade paraninfando a imortalidade.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Legítimas sucessoras das Arcádias do século XVIII, as atuais Academias de Letras não são maniqueístas e almejam objetivos que só serão atingidos daqui a quatro ou cinco gerações, quando muitos anos já terão decorrido depois de nós.

O católico francês Charles Péguy chamava a atenção para o instante em que o homem maduro verifica, certo dia, surpreso e melancólico, que a juventude ficou para trás. E o gênio alemão, nascido em Frankfurt An Main e chamado Johann Wolfgang von Goethe, que é hoje mais atual do que nunca, tenta no seu Fausto vender a alma ao demônio Mefistófeles, numa troca com a imortalidade, em cujo sonho encontramos a mais feliz das ilusões do outono e a mais alegre das antevisões do inverno. Dizia Goethe: “Aí vindes... outra vez... inquietas sombras...”

Senhores Confrades,

Ao longo dos séculos, a cultura e a política têm andado sempre de mãos juntas:

O Pantheon grego representa a política de Atenas.

As pirâmides do Egito refletem a política dos faraós.

A renovação artística, literária e científica da Renascença, que produziu os gênios italianos de Leonardo da Vinci, Miguel Ângelo, Fra Angélico, Ariosto, Maquiavel, Boticcelli, Rafael, Tintoretto, Giotto e Ticiano; o holandês Erasmo de Roterdam; o alemão Gutenberg; os espanhóis Cervantes e El Greco; os portugueses Gil Vicente e Camões, toda essa Renascença genial e brilhante foi também o saldo da orientação dos seus protetores, os papas Júlio II e Leão X.

O talento francês, que gerou o brilho de Montesquieu, Voltaire, Montaigne, Descartes, Molière, Rabelais, Racine, Rousseau, Diderot, Chateaubriand, Stendhal, Balzac, Dumas, Flaubert, Victor Hugo, Rimbaud e Maupassant, é o retrato da política dos reis Luíses de França.

Meus caros Colegas,

Mandam a tradição e os costumes desta Casa que eu evoque os meus predecessores nesta Cadeira.

Começo, então, pelo primeiro deles, que foi o seu patrono, Joaquim Manuel de Macedo, um grande romancista, nascido aqui bem perto, em Itaboraí, autor de alguns clássicos, como A moreninha, O moço louro, Os dois amores, As mulheres de mantilha e outros romances de grande êxito, além de ter sido um precursor do romanesco televisivo e sentimental, hoje muito ao gosto popular.

Salvador de Mendonça

O fundador da Cadeira, e seu primeiro ocupante foi Salvador de Mendonça, outro fluminense, também de Itaboraí, conterrâneo de Macedo, e que foi: escritor, escrevendo o romance Marabá; jornalista, trabalhando no jornal A República; e diplomata, servindo como cônsul-geral do Brasil em Baltimore, onde se empenhou junto ao governo dos Estados Unidos pelo reconhecimento do regime republicano no Brasil.

Imitando os exemplos de Homero na IIíada e na Odisséia, e do poeta Milton, de O paraíso perdido, enfrentou heroicamente a sua deficiência e falta da visão refugiando-se nas lembranças do seu mundo interior, consolando-se com suas filhas e cultivando suas roseiras. Plantou um jardim inteiro de rosas. Tudo abandonou para recolher-se à escuridão dos seus olhos fechados à luz do dia, mas bem abertos à contemplação e ao sonho de uma imaginação fértil e produtiva.

Emílio de Menezes

O segundo ocupante da Cadeira foi Emílio de Menezes, único filho varão numa irmandade de oito mulheres e pioneiro da boemia intelectual da época. Curitibano, era, antes de tudo, um excêntrico no ser e no trajar, com roupas e sapatos de cores berrantes, gravata-borboleta, bigode abundante e louro, rosto redondo e vermelho, gordo, barrigudo e flácido, mordaz, malicioso e satírico. Mas era ao mesmo tempo modesto, terno, magnânimo e compadecido. Não via defeitos nos amigos, mas também não vislumbrava virtudes nos inimigos.

Segundo Humberto de Campos, seu sucessor nesta Cadeira, Emílio de Menezes era “um homicida da palavra, simultaneamente, um leão e um cordeiro. Feria ou elogiava. Alternava a brutidão e a meiguice. Sua espada era de aço ou uma pluma. Sua estátua, se viesse a ter algum dia, deveria, como a de Harmódio em Atenas, trazer um punhal e um ramalhete”.

É extenso e variado o seu repertório de epigramas, sátiras e ironias. Certo dia, ouvindo exagerados elogios a um escritor, Emílio comparou-o a alguns edifícios da Avenida Rio Branco: ”Tem muita frente e pouco fundo.” E, apontando para um desafeto, famoso porque não pagava suas contas, comentou: “Ele até parece um botão. Não paga nem a casa em que mora.”

Noutra ocasião, um conterrâneo o convidou: “- Vamos tomar um aperitivo. Quero dar-te a honra da minha companhia.” E Emílio, impiedoso: “- Mas logo honra?... Queres dar-me justamente uma coisa da qual tanto precisas?...”

Ao ouvir certo crítico dizer que ele era um ladrão da honra alheia, Emílio não se conteve: “- Em matéria de honra, você pode despreocupar-se, porque nada tem para ser roubado.” Certo dia, Emílio era o quarto passageiro no banco de um bonde, e uma artista muito conhecida e muito volumosa tentou sentar-se ao seu lado, quando no banco traseiro havia apenas três passageiros, além de uma vaga. E Emílio protestou: “Oh! Atriz, atroz, atrás há três.”

Noutra tarde, estava ele novamente num bonde quando entraram duas senhoras suficientemente gordas para fazerem o banco dianteiro desabar com tanto peso. E Emílio, inclemente: “É a primeira vez na vida que vejo um banco quebrar por excesso de fundos.” Seus críticos diziam que ele era mais um caricaturista implacável do que um humorista talentoso, sustentando que não tinha a graça de um Miguel de Cervantes, de um Jonathan Swift, de um William Thacheray, de um Lawrence Sterne, de um Thomas Carlyle, de um Décimo Juvenal ou de um Homero.

Para sua posse nesta Cadeira no 20, escreveu um discurso agressivo e inconveniente, cortado pelo presidente da Academia, que o considerou aberrante para as praxes acadêmicas e aconselhou sua reformulação. Emílio recusou-se a ler o texto censurado e morreu sem se empossar.

Mas a verdade é que ele foi um inspirado poeta discípulo do parnasianismo de Olavo Bilac, Alberto de Oliveira e Raimundo Correia, com sonetos perfeitos, compostos de 14 versos, rimas simétricas e impecáveis.

Humberto de Campos

“Não cheguei muito alto, nem muito perto, porque vim de muito baixo e de muito longe”. Assim se definia o terceiro ocupante desta Cadeira, Humberto de Campos Veras, um maranhense nascido na cidade de Miritiba, que hoje tem o seu nome. Praticamente de alfaiate, caixeiro de loja, lavador de pratos, era também um poeta parnasiano, que reagiu contra o lirismo romântico e que passou a cultivar uma poesia impessoal e erudita, com grande apuro da forma; autor de sonetos maravilhosos, mas nostálgicos, pessimistas e melancólicos, saudado efusivamente por Carlos de Laet e Medeiros e Albuquerque, no Brasil, além de Guerra Junqueiro e Fialho de Almeida em Portugal.

Foi depois prosador, contista e jornalista, em O Imparcial, ao lado de Osório Duque-Estrada e Coelho Neto, adotando o pseudônimo "Conselheiro XX", um cronista licencioso, fescenino, lascivo, maldoso, quase obsceno, com livros de grande êxito, que se esgotavam em tiragens surpreendentes e incomuns para a época: Grãos de mostarda, Seara de Booz e Mealheiro de Agrlpa, com 10 mil exemplares cada; Um sonho de pobre, 14 mil; A bacia de Pilatos, 15 mil; Gansos do Capitólio, com 16 mil; A serpente de bronze, 18 mil; Carvalhos e roseiras e Tonel de Diógenes, 20 mil exemplares cada; À sombra das tamareiras, 21 mil; Os párias, Destinos e Sombras que sofrem, 28 mil cada; Memórias inacabadas, 30 mil; e o primeiro volume de suas Memórias, com 51 mil exemplares.

Em 1919, aos 33 anos, no auge do prestígio intelectual, elegeu-se para esta Cadeira no 20. Foi também um pioneiro na luta pela reforma agrária, contra os latifúndios, a favor da distribuição de terras, de mais escolas e hospitais. Dizia: “Não nasci para ser amigo dos opressores, mas para companheiro dos desgraçados.”

Aos 40 anos, em 1926, viu-se escolhido para ser deputado federal pelo Maranhão, mas a Revolução, de 30 o cassou. No ostracismo e já pobre, sobrevieram-lhe um tumor no cérebro e uma acromegalia: gigantismo de crescimento nos ossos da face e nas extremidades dos dedos.

Escreveu, então: “Manhãs neurastênicas. Noites sofridas. Síncopes dos nervos, do cérebro e da vontade. Ânsias de choro. Desejos de sono.” E versejou: “Quem por aí se afoite / Não faça barulho enorme. / Pois esta e a primeira noite / Que Humberto de Campos dorme.”

Mas, para enfrentar as dores e padecimentos de doenças cruéis e incuráveis, imperava nele o espírito do nordestino forte, que deixou uma imorredoura mensagem de simpatia, de amor à vida e de otimismo até diante do impossível.

Humberto de Campos foi um arquétipo perfeito do intelectual, que morreu em 1934, com apenas 48 anos, após ter escrito 52 livros, todos de enorme sucesso.

Múcio Leão

Múcio Leão, o quarto ocupante desta Cadeira, foi também, como Emílio de Menezes, o único filho homem numa família de nove irmãs.

Como jornalista, trabalhou no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, e fundou, com Cassiano Ricardo e Ribeiro Couto, o jornal A Manhã, renovando as técnicas e métodos da imprensa de sua época.

Como poeta, produziu Os ensaios, Os países inexistentes e Tesouro recôndito. Como escritor, publicou Promessa inútil, Prêmio de pureza e No fim do caminho, além de Castigada, um romance social na linha do romanceiro nordestino, dos nossos Jorge Amado, José Lins do Rego e RacheI de Queiroz, de Amando Fontes e Graciliano Ramos. Reuniu ainda as Obras completas de João Ribeiro. Dirigiu o Suplemento Autores & Livros, cuja matéria reuniu em uma obra crítica de 11 volumes, utilíssimos até hoje.

Como corajoso maratonista, fez a pé, na companhia do nosso respeitável decano Barbosa Lima Sobrinho, o percurso de 80 quilômetros entre o Recife e a Cidade de Goiana.

Deixou vasta bagagem literária. Foi um incansável polígrafo, em cuja sepultura, parafraseando Afrânio Peixoto, poderia ter sido gravada uma curta inscrição: “Viveu e escreveu.”

Aurélio de Lyra Tavares

O quinto e último ocupante desta Cadeira foi o meu antecessor direto, o Acadêmico Aurélio de Lyra Tavares.

Nascido em João Pessoa, era irmão de João Lyra Filho e de Roberto Lyra, meu professor de direito penal, e foi o quinto paraibano a ter assento nesta Academia. Os outros quatro conterrâneos, que o antecederam, foram: Pereira da Silva, Assis Chateaubriand, José Lins do Rego e José Américo de Almeida, além de mais dois: Ariano Suassuna e Celso Furtado, que lhe foram posteriores e aos quais fez questão de dar os seus votos.

Não foi o primeiro militar a empossar-se aqui. Antes dele, tinham sido fundadores e primeiros ocupantes o Visconde de Taunay, da Retirada da Laguna, e o Major Urbano Duarte, além dos acadêmicos Tenente Euclides da Cunha, Coronel Gregório Fonseca, Generais Dantas Barreto e Lauro Müller e Almirante Artur de Jaceguai.

Mais ou menos nessa mesma época, a Academia Francesa era integrada pelos marechais Liautey, Franchet, Foch, Pétain, Joffre, Juin e pelo General Weygand.

Lyra Tavares costumava referir-se ao discurso de Joaquim Nabuco, pronunciado na sessão inaugural desta Academia, quando, como seu secretário-geral, e na presença de acadêmicos monarquistas e republicanos, sustentou: “Nesta Academia não deve haver política, mesmo quando temos de concordar na discordância.”

E repetia uma opinião de Stendhal citada pelo confrade Josué Montello, que é, por sinal, o nosso maior estudioso da obra stendhaliana. Eis a opinião: “A política na literatura é um tiro de pistola disparado num concerto”.

O Acadêmico Lyra Tavares diplomou-se em três cursos: era engenheiro, bacharel em direito e militar. Chegou a general-de-exército e o representou na Junta Militar que governou o Brasil durante 60 dias, de 31 de agosto a 30 de outubro de 1969, um período de muitas injustiças, cassações, seqüestros e violências.

Seus colegas do triunvirato militar ofereceram-lhe a Presidência da República, que ele simplesmente recusou, preferindo ser embaixador do Brasil na França, durante os quatro anos seguintes, quando, com seu prestígio entre os governos militares, conseguiu do então Ministro Delfim Netto o dinheiro suficiente para a compra da nova sede da Embaixada brasileira em Paris, que se transferiu da Avenue Montaigne, 45, para o Cours Albert Prémier, em frente ao Sena.

Sua vida está na raiz de grandes polêmicas e divergências políticas.

Josué Montello revelou-me que, certa vez, o nosso inesquecível Antônio Houaiss estava em Paris e à noite, quando regressou ao hotel, teve a feliz surpresa de encontrar na portaria um envelope com os votos de Lyra Tavares para sua candidatura a esta Academia. O último voto dado por ele, aqui, foi para eleger Celso Furtado, seu conterrâneo.

Escreveu poesias como diletante, sem pretensão de ser um poeta, escondendo-se atrás de pseudônimos.

Sua obra não é muito conhecida, mas, dos vários livros publicados, um se tornou referência: A engenharia portuguesa na construção do Brasil, editado em Lisboa, sobre as fortificações construídas ao tempo do Brasil-Colônia, na foz dos principais rios brasileiros.

Escreveu também O Brasil da minha geração, A Amazônia de Júlio Verne e Quatro anos na Alemanha ocupada. Escreveu ainda Território nacional - Soberania e domínio da União, um livro citado por Gilberto Amado na Guerra das Lagostas e que analisa os problemas das ilhas brasileiras no Atlântico, a Plataforma Continental e as 200 milhas.

Até mesmo porque sou o sucessor nesta Cadeira 20, eu aqui não fui seu confrade. Mas os acadêmicos que falaram sobre ele durante a "sessão de saudade", realizada aqui no dia seguinte ao de sua morte, são unânimes em dizer que se tratava de um acadêmico afável, de trato ameno e atencioso.

O Acadêmico e General Aurélio de Lyra Tavares entrou aqui em meio a muitas críticas, mas saiu daqui deixando boas lembranças.

Meu querido irmão, Acadêmico Arnaldo Niskier,

Nosso afeto comum nasceu nas salas da velha oficina da Rua Frei Caneca, onde a Bloch Editores ensaiava então os seus primeiros passos. Temos muitas afinidades: a infância pobre e desvalida; a juventude de muita luta e de muita obstinação; a maturidade de imensas conquistas, como têm sido as vossas: de professor catedrático da Universidade do Rio de Janeiro; de Secretário de Estado por duas vezes: de Ciência e Tecnologia e da Educação; escritor de importantes obras infantis e educacionais; membro notável desta Academia Brasileira de Letras e, há um ano e meio, seu presidente trabalhador, eficiente, talentoso e criativo, com os cursos, conferências, seminários, o Banco de Dados, a Galeria Manuel Bandeira, o Espaço Machado de Assis, a Livraria Acadêmica, os Vocabulários Ortográfico e Onomástico, o Grande Dicionário da Academia, a trasladação dos restos mortais de Carolina e de Machado para o Mausoléu, enfim, um grande consolidador da obra dos seus predecessores, os Acadêmicos Austregésilo de Athayde, Josué Montello, Antônio Houaiss e Nélida Piñon.

Mas destaco, sobretudo, a postura do homem inteiro e integral, de corpo e alma, como vós tendes sido até hoje, competente, sério, limpo, transparente, justo, sensato, equilibrado, afetuoso e decente, companheiro insuperável, um paradigma de retidão e de compostura, irmão exemplar e muito querido ao meu coração, que Deus e a vida me deram.

E, antes de tudo, também, o chefe de família dedicado e atento; marido de Ruth; pai de Celso, Andréia e Sandra; e avô de cinco netas, todos coesos numa família unida e fraterna.

Já sei que o vosso discurso de saudação a este confrade, vosso amigo muito especial, a ser proferido por um singular e estupendo orador, vai emocionar-me profundamente.

(Texto de improviso, retirado da gravação.)

É a emoção própria de um jovem humilde e modesto, que, aos 18 anos, saiu lá da sua Cidade de Natal para enfrentar, aqui no sul do País, os perigosos desafios da vida. Eu era apenas um personagem a mais no extenso fabulário e no êxodo da minha geração de jovens nômades do Nordeste que vinham batalhar por um lugar ao sol na selva das cidades grandes.

Hoje em dia, quando vejo a perplexidade e a indecisão de alguns moços de 20 e até de alguns homens de 30 anos, sem saberem ao certo o que querem e para onde vão, eu me pergunto a mim mesmo o que se passava na cabeça daquele rapaz lá de Natal que, menino ainda, e já naquele tempo, decidira ser jornalista no Rio de Janeiro.

Agora, transcorridos tantos anos, volto o meu pensamento para as angústias e sofrimentos que enfrentei nesta assustadora megalópole.

O moço tímido das peladas nos areiais do bairro do Tirol, lá em Natal, via-se, de um momento para outro, aterrorizado ante os arranha-céus da cidade grande, tendo diante de si apenas uma opção e uma alternativa: vencer ou vencer.

Relembro, então, as madrugadas nas redações dos jornais, as aulas noturnas na Faculdade de Direito, geralmente dormindo sobre as carteiras, vencido pelo sono e pelo cansaço, o escasso dinheiro para a passagem do bonde e as cansativas marchas dos domingos na Infantaria do CPOR.

Certa vez, reuni os meus filhos para contar-lhes toda esta dolorosa odisséia e ouvi de um deles a seguinte pergunta: “- Pai, quer dizer, então, que para conseguirmos o que o senhor conseguiu na vida, nós temos de enfrentar tudo isso? Nós desistimos.” E eu, que pensava estimulá-los, calei a boca. Mas hoje vos confesso sinceramente, senhores acadêmicos, que tudo aquilo valeu a pena.

Os espinhos da juventude, como as flores de François Malherbe, desabrocham agora na maturidade, quando já começamos a dar um balanço sobre o passado e vemos, felizes, que de nada temos para nos arrepender. Nem do casamento que, há 40 anos, celebrei com esta mesma mulher, Norma, companheira admirável e que está aqui presente. Nem dos três filhos que juntos tivemos. Nem da religião católica que abracei e que até hoje professo com tanto fervor. Muito menos do jornalismo, a profissão que escolhi desde criança e sobre a qual peço a vossa paciência e permissão para falar um pouco. Pois, afinal de contas, esse jornalismo me deu acesso a reis, rainhas, príncipes, ditadores, governadores, senadores, deputados federais, primeiros-ministros, presidentes da República, chefes de Estado e de Governo, homens todo-poderosos que entrevistei pessoalmente ao longo destes 50 anos de trabalhos jornalísticos.

(Texto lido, com trechos improvisados pelo orador.)

Em audiências, contatos, entrevistas, recepções e visitas, encontrei-me com alguns dos líderes que escreveram a história do mundo nesta segunda metade do século XX: os presidentes Eisenhower, Kennedy, Nixon e Reagan na Casa Branca; os presidentes Charles de Gaulle e Giscard d'Estaing no Palais de l'Elysée, em Paris; Salazar, Caetano e Mário Soares em Lisboa; Thatcher em Londres; Adenauer em Bonn; Golda Meir, Moshé Dayan, Yitzchak Rabin e Shimon Peres em Jerusalém; Albert Sabin no Instituto Weizman de Ciências; Nasser e Anuar-El-Sadat no Cairo; Indira Ghandi em New Delhi; Fidel Castro e Che Guevara em Havana: Perón e Evita em Buenos Aires; o General Van Thieu no Vietnã do Sul e Ho Chi Minh no Vietnã do Norte; Elizabeth II, Craveiro Lopes, Selassiê e Sukarno em Brasília.

Sempre em missões jornalísticas, acompanhei os presidentes Café Filho e Juscelino Kubitschek a Portugal; Jânio Quadros a Cuba; João Goulart aos Estados Unidos, México e Chile; Ernesto Geisel à Inglaterra e à França; o nosso José Sarney a Portugal, Estados Unidos e Japão.

Como repórter e correspondente internacional, cobri a guerra do Vietnã, em 1967, em Hanói e Saigon, com o fotógrafo Gervásio Baptista, que está morando atualmente em Brasília; e fui o primeiro jornalista brasileiro a cobrir a guerra do Camboja, em 1973, com o fotógrafo Antônio Rudge, tendo chegado a Phnom-Penh via Tóquio.

Conheci os picos gelados de Zermat, na Suíça, e as geleiras de Anchorage no Pólo Ártico; o calor da Galiléia, do Mar Morto e das tórridas plantações de cacau na Costa do Marfim, e o frio de Londres e de Los Angeles; a neve de Kiev, Leningrado e dos Montes do Ural na antiga União Soviética, e as nevascas de Helsinque e de Oslo; os templos budistas de Angfor e de Phnom-Penh, no Camboja; de Bangkok, na Tailândia, e de Kyoto, no Japão; os lugares santos de Roma e de Jerusalém.

(Texto de Improviso, retirado de gravação.)

O amor ao jornal, à revista e à televisão ofereceu-me tudo isso a que, a rigor, pelas minhas origens humildes e modestas, eu não teria direito na vida. Ele não me deu riquezas, faustos nem opulências, mas me proporcionou uma estabilidade profissional suficiente para dar à minha família uma vida digna, com conforto e bem-estar.

Por tudo isso, nunca fui outra coisa na vida senão jornalista, tentando devolver à minha profissão, em dedicação e em trabalho, tudo quanto até hoje tenho recebido dela, que considero uma profissão fascinante e maravilhosa quando exercida com correção, dignidade e entusiasmo. Esse jornalismo tem sido a minha própria razão de ser, de existir, de lutar e de viver. Por ele bem cedo começou a minha vida. Por ele vivi. Por ele lutei. Por ele sofri. Por ele triunfei.

Aquela decisão de ser jornalista no Rio de Janeiro, a que me referi antes, já me fizera amigo e colaborador de Carlos Lacerda e de Aluízio Alves na Tribuna da Imprensa; dos futuros Acadêmicos Assis Chateaubriand, Austregésilo de Athayde e Elmano Cardim nos Diários Associados e no Jornal do Commercio; do nosso Acadêmico Roberto Marinho em O Globo; e de Júlio de Mesquita Filho no Estado de S. Paulo.

Essa decisão de ser jornalista também me aproximou da revista Manchete, de Adolpho Bloch e de Juscelino Kubitschek, aos quais me liguei, durante mais de 30 anos, com uma amizade de muito afeto, carinho, lealdade e ternura. A eles dois quis sempre um bem enorme.

Deles dois, de Adolpho e de JK, sinto, ainda hoje, saudades imensas, pela obra magistral que realizaram, mas sobretudo pela grandeza e pela coragem do seu espírito de incomparáveis construtores.

Senhor Presidente Arnaldo Niskier,

Assim como a demagogia é uma doença da Democracia, assim também o sensacionalismo é uma enfermidade da Imprensa Livre.

No dia em que Napoleão fugiu da ilha de Elba, o jornal Moniteur, que se editava em Paris, deu a seguinte manchete: “O Antropófago saiu da sua toca”. Quando Napoleão desembarcou no Continente Europeu, o mesmo jornal publicou a seguinte notícia: “O Tirano acaba de desembarcar”. E, ao longo dos famosos cem dias, as manchetes daquele jornal se sucediam no mesmo tom, enquanto Napoleão estava longe: “O Bandido pernoitou na Cidade de Lyon”. “O Monstro foi visto a 90 km de Paris”. “O Aventureiro avança a passos largos, mas nunca entrará na Capital”.

Acontece, porém, que Bonaparte ia mesmo entrar em Paris. E as notícias daquele jornal já se modificavam (e como se modificavam...): “O Imperador chegou a Fontainebleau”. E, afinal, a grande manchete: “Sua Majestade Imperial, sob aclamação dos seus fiéis súditos, desfilou ontem gloriosamente sob o Arco do Triunfo”.

Ainda há pouco tempo, o Times de Londres matou um inglês por engano. O homem apareceu depois na redação do jornal solicitando um desmentido. Afinal, ele estava tão vivo quanto qualquer um de nós. E ouviu do diretor, Thomas Norton, a seguinte resposta: “Desmentir não podemos jamais. Podemos, quando muito, dar a notícia do seu novo nascimento.”

E há, na imprensa brasileira, um caso igualmente famoso e lamentável: o nosso centenário Jornal do Commercio publicou certo dia que: “O Imperador Pedro II, acidentado, passeou ontem na Quinta da Boa Vista com apoio em duas maletas”, em vez de duas muletas, evidentemente. Retificou no dia seguinte: “O Imperador Pedro II, acidentado, passeou anteontem na Quinta da Boa Vista com apoio em duas mulatas.”

Foi o caso típico da emenda pior do que o soneto. Se tivesse sido ao menos com Pedro I, ainda bem. Mas logo com Pedro II, aquele que se apresentava como um modelo de virtudes...

Meus Amigos,

O jornalismo sensacionalista nasceu na imprensa americana, com a saga de William Randolph Hearst, que começou com um pequeno jornal, o San Francisco Examiner, deixado em herança pelo seu pai, um rico proprietário de minas de ouro na Califórnia. Tornou-se, pouco a pouco, dono de uma poderosa cadeia de 50 jornais e 40 estações de rádio. Invadiu Nova York com o maior sensacionalismo possível, explorando sobretudo o sexo e expondo todas as mazelas e todas as misérias da sociedade americana.

Excitou tanto a opinião pública e pressionou de tal forma o governo que levou os Estados Unidos à guerra contra a Espanha, para, entre outras coisas, vender armamentos aos espanhóis. Aos seus correspondentes de guerra, que lhe telegrafavam de Havana, dizendo: “Aqui tudo bem. Queremos voltar.”, ele respondia: “Fiquem aí. Forneçam as reportagens, que eu fornecerei a guerra.” Hearst foi retratado por Orson Welles no filme Cidadão Kane.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

O acadêmico e nosso confrade Rui Barbosa, que presidiu esta Academia durante dez anos, e que foi, portanto, Senhor Presidente, um dos vossos antecessores nessa Presidência, o grande Rui Barbosa definia o jornalista como um político do povo e se definia a si próprio como um zelador da Nação, um dos seus olhos, um dos seus ouvidos, a sua boca e até o seu nariz, porque, afinal, é pela imprensa honesta que a Nação respira.

Nos meus 50 anos de profissão, cheguei à conclusão de que um jornalista não se reconhece nem mesmo pelo que chega a escrever, e muito menos pelos títulos pomposos que possa ostentar, mas pela capacidade de entregar-se inteiramente ao cumprimento de sua missão.

Na cínica definição de John Lester, um inglês muito irônico e muito mordaz, com o qual evidentemente não concordamos, “Jornalismo é a arte de escrever, mediante pagamento e mediante salário, sobre assuntos dos quais os jornalistas geralmente entendem muito pouco”.

Sempre entendi que o autêntico escritor e o verdadeiro jornalista têm graves deveres com a Família, com o País e com a Sociedade.

Nós, escritores e jornalistas, vivemos da palavra e para a palavra, que nos foi fornecida para que tentássemos imitar a lição de Deus quando, no início do mundo, retirou da palavra e do verbo divinos todas as suas criações.

Olhando para trás vejo agora, com alegria, que, em mim, não estou nenhum bloqueio, nenhum choque, nenhuma diferença, nenhuma incoerência e nenhuma ruptura entre o menino de ontem, que fui, e o homem de hoje, que sou, mas apenas algumas dezenas de anos, vividos com bastante intensidade, ao lado de compromissos sagrados com a dignidade, com a gratidão e com a honradez, pontos cardeais, um azimute, uma Bíblia, uma bússola, um ideário e um norte, que têm balizado, sinalizado e vocalizado a minha vida inteira.

Senhores Acadêmicos,

Elegestes para ser vosso confrade e estais empossando nesta noite um homem como eu, que foi até agora, única e exclusivamente, um jornalista profissional e participante do seu tempo, do seu povo e do seu país, envolvido com os dramas de um velho mundo, de um velho século e de um velho milênio, que se debatem nos estertores de uma agonia, in extremis, ao lado de um mundo novo, de um novo século e de um novo milênio, que aí estão nascendo, dentro de mais alguns meses, envoltos em grandes esperanças.

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

Alguns de nós, aqui presentes, pertencemos a uma geração atormentada e aflita, que mal abria os olhos para a vida e já se defrontava:

- com a revolução tenentista de 1930;
- com a revolução constitucionalista de 1932;
- com a intentona comunista de 1935;
- com a ditadura estado-novista de 1937;
- com o golpe-de-mão integralista de 1938;
- com a Segunda Grande Guerra, de 1939 a 1945;
- com a deposição do Presidente Getúlio Vargas em 1945, a sua volta triunfal em 1950 e o seu dramático suicídio em 1954;
- com a derrubada de dois presidentes, Carlos Luz e Café Filho, em 1955;
- com a tumultuada posse do Presidente Juscelino Kubitschek em 56;
- as revoltas de Jacareacanga em 1956, de Aragarças em 1959 e a inauguração de Brasília em 1960;
- com a renúncia do Presidente Jânio Quadros, após sete meses de atribulado governo, em 1961;
- com a destituição do Presidente João Goulart em 1964;
- com os 21 anos de governos militares, de 1964 a 1985;
- com a doença, o sofrimento e a morte do Presidente Tancredo Neves em 1985;
- com a megacrise e o impedimento do Presidente Fernando Collor em 1992;
- e, mais recentemente ainda, Com a trágica morte do Presidente Ulysses Guimarães num desastre de helicóptero.

Há quase 70 anos, portanto, desde 1930, o Brasil vem vivendo e sobrevivendo a uma perigosa escalada de agudas, de graves e de sucessivas crises políticas.

Nesse mesmo espaço de 70 anos, tivemos 19 presidentes da República, além de três primeiros-ministros: Tancredo Neves, Hermes Lima e Brochado da Rocha.

Tivemos cinco Constituições: as de 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988.

Tivemos sete moedas: o Mil-réis, o Cruzeiro, o Cruzeiro Novo, o Cruzado, o Novo Cruzado, a URV e o Real.

Tivemos uma inflação de quase 80 por cento ao mês e de quase 3.000 por cento ao ano.

Pergunto: como foi possível sobreviver a tudo isso?

No transcurso da nossa geração, Senhor Presidente, estamos sendo contemporâneos também de vários conflitos armados: a Segunda Grande Guerra Mundial; as guerras da Coréia, do Vietnã e do Camboja (que eu vi de perto); as guerras de Israel, do Líbano, Irã-Iraque, do Golfo Pérsico, do Afeganistão, de Angola, dos Bálcãs, da Bósnia e da Iugoslávia, as guerras das Malvinas, da Nicarágua, de Ruanda e da Somália.

Na tresleitura de todas essas tragédias, não vimos nem ouvimos as trombetas do Apocalipse ou do Armagedom, nem as do Arcanjo ou do Juízo Final, e muito menos as profecias de Nostradamus, mas temos estado bem perto de todos eles.

Testemunhamos também, com alguns rápidos intermezzos: a explosão de duas bombas atômicas; as revoluções dos celulares, da clonagem, da cibernética, da informática, da Internet, dos satélites, das televisões e das telecomunicações; as revoluções do computador, dos foguetes, das viagens interplanetárias e dos passeios na Lua e, já agora, também, em Marte; as revoluções do aborto, do divórcio, das drogas, das pílulas e da aids.

A rigor, esta deveria ter sido uma evolução mais lenta, menos cruel e menos perversa, ao longo de duas ou de três gerações. Mas não. Ela se processou no decurso e no espaço de uma geração apenas, justamente a nossa, que foi educada na velha, na rígida e na pertinaz escola da disciplina, do respeito e da hierarquia, mas que teve de fazer um esforço enorme sobre si mesma para readaptar-se, para coabitar, para coexistir, para conviver e para aceitar a nova ordem de coisas: os novos fetiches, punks, funks, góticos, carismas, credos, mitos, modismos, tótens, questionamentos, as novas liberalidades e até mesmo o novo vocabulário.

Meus Amigos,

Certa noite, lá em Natal, quando eu me encaminhava para tomar posse na Academia Norte-Riograndense de Letras, da qual sou também, com muito orgulho, membro titular, seu presidente, o Acadêmico Diógenes da Cunha Lima, e seu vice-presidente, o Acadêmico Paulo Macedo, bateram carinhosamente no meu ombro e disseram o seguinte: “- Vá, Murilo, vá colher os frutos do que você semeou durante todos esses anos.”

Aquelas foram palavras generosas que reproduzo agora, com tanto prazer, mas ao mesmo tempo com tanta humildade. É que talvez esteja se encerrando na minha vida, como na vida de alguns aqui presentes, a fase dura e difícil do plantio, da adubação e da semeadura e que esteja começando a fase mais amena da safra e da colheita.

Pois o Deus Todo-Poderoso, o Deus de todos nós, decidiu na Sua Suprema Bondade que eu vivesse até hoje. Valeu a pena, então, ter vivido e ter sobrevivido a todos esses anos de tantas batalhas, de tantas lutas, de tantos trabalhos e de tantas viagens para estar hoje aqui assumindo este mandato de acadêmico, para estar hoje aqui falando desta que é uma das mais altas tribunas deste País e para estar hoje aqui recebendo tantas e tão cativantes homenagens, nascidas nas vossas mentes e nos vossos corações.

Poderia até mesmo repetir André Gide quando, em Estocolmo, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura de 1947, afirmou o seguinte: “Pouco fiz na vida para tanto merecer.”

E eu acrescentaria: “Reconheço e verifico, hoje, que a vida me deu muito mais do que realmente mereço.”

Senhor Presidente Arnaldo Niskier;
Senhores Senadores Geraldo MeIo e Edison Lobão;
Senhor Governador Garibaldi Filho, do meu querido Rio Grande do Norte;
Senhor Cardeal-Arcebispo Dom Eugênio Sales;
Senhor Prefeito Luiz Paulo Conde;
Senhor Ministro Fontes de Alencar;
Senhores Comandantes Militares;
Demais Autoridades;
Senhores Acadêmicos;
Minhas Senhoras e Meus Senhores;
Meus Amigos,

Em nome da memória de minha mãe, Hermínia, cujo nome rima um pouco com o de uma grande heroína, a braços, no seu sacrifício diário, para educar sete filhos assaz trabalhosos;

Em nome da memória do meu pai, Murilo MeIo, de quem herdei não apenas o nome, mas também um legado de muita dignidade, honradez e trabalho;

Em nome dos meus tios, Emília e João Vieira Leite, aos quais tanto devo;

Em nome de minha mulher, de meus filhos, de meus netos, de meus irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, primos e sobrinhos, e de toda a minha família, aqui reunida;

Em nome dos muitos amigos e companheiros, que, do Amazonas ao Rio Grande do Sul, passando por Fortaleza, Natal, João Pessoa, Recife, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, São Paulo e Porto Alegre, em nome de todos esses amigos que tanto me ajudaram nesta caminhada até aqui (aquela longa e penosa caminhada a que me referi no começo);

Em nome de todos eles, só me resta agradecer, sensibilizado e do fundo do coração, a honrosa presença de todos quantos aqui compareceram para dividir comigo a alegria e a felicidade desta noite inesquecível.

E que me escutaram com tanta paciência.

Peço a todos, humildemente, milhões de desculpas por não ter tido tempo de ser breve e de falar pouco. Falei demais.

É que eu tinha tantas coisas para vos contar e para vos dizer...

Mas devo concluir estas palavras, Senhor Presidente, que espero não tenham sido demasiado enfadonhas, dizendo-vos, não apenas como membro desta Academia, o que muito me honra e enobrece, mas dizendo-vos sobretudo como jornalista político, que sempre fui e sempre serei - e é como jornalista político que vos falo agora -, dizendo-vos que o Brasil de hoje tem pressa de queimar etapas e dar o seu grande salto.

Teremos de fazer, nestes próximos 20 anos, quase tudo quanto as Nações hoje já desenvolvidas levaram duzentos anos para realizar.

A atual geração de brasileiros, da qual todos nós aqui presentes somos líderes e participantes, viu-se de uma hora para outra chamada a cumprir uma fascinante missão no plano do desafio: a missão de dizer se ela foi, ou não, competente para construir uma sociedade cristã, uma sociedade digna, uma sociedade justa, uma sociedade moderna e uma sociedade progressista, que as gerações anteriores, por motivos que não nos cabe discutir, não puderam edificar.

Por todas essas razões, estamos já agora, aqui nesta Academia Brasileira de Letras, aqui nesta Cidade e neste Estado do Rio de Janeiro e aqui também neste País chamado Brasil; estamos já agora, independentemente de facções ideológicas ou de partidos políticos, de crises, de corrupções, de CPls ou de problemas transitórios; estamos já agora definitivamente resolvidos a provar a nossa capacidade como Povo e a nossa viabilidade como Nação.

Pois a nossa mensagem é de grandeza, como de grandeza tem sido, nestes últimos cem anos, a mensagem desta Academia.

A nossa bandeira é de otimismo.

A nossa hora e vez é de participação.

Já e aqui.

Muito obrigado.