A CIÊNCIA E A LÍNGUA PORTUGUESA
A necessidade de conhecer muitas línguas é um dos grandes obstáculos encontrados pelos jovens inteligentes ao se dedicarem ao estudo das ciências. Ela se torna iniludível quando o fim tido em vista é a pesquisa de novas verdades e não somente formar uma cultura científica geral, destinada às aplicações. Neste caso ninguém pode dispensar a leitura de trabalhos originais publicados em livros ou revistas muito especializados. Como essas publicações são feitas em diferentes países, não é possível evitar a multiplicidade das línguas.
Antes da Grande Guerra, já se sentia bem a importância do problema das línguas para os cultores da ciência. Mas, nessa época, a questão não se apresentava com o aspecto observado no momento atual, nem tinha a gravidade de que hoje ela se reveste. A cultura científica se achava sob a direção imediata de alguns grandes centros situados em um pequeno grupo de países europeus. As línguas desses países impunham-se com absoluta preponderância. Assim, colocaram-se à frente, em um primeiro plano, conquanto de importância relativa, variável, o alemão, o inglês, o francês e o italiano. Não me consta ter havido algum dia uma convenção expressa estabelecendo essas quatro línguas como as línguas, por assim dizer, oficiais da ciência. Mas o uso, a tradição, o passado de cultura e o presente de atividade dos países onde são faladas deram-lhe uma posição privilegiada. As revistas científicas internacionais publicavam os seus trabalhos indiferentemente em qualquer delas. Um trabalho só era realmente lançado no mundo científico quando em uma delas redigido. Em rigor, ninguém era obrigado a conhecer os trabalhos escritos em outras línguas.
Sem dúvida, quando à importância real, como instrumento de cultura, existiam diferenças entre essas quatro línguas principais. Pelo valor e número dos trabalhos publicados, e pela admirável organização dada à documentação bibliográfica na Alemanha, havia uma tendência franca para canalizar para as revistas alemãs os trabalhos de muitos outros países. Acrescentando a isso a capacidade e o esforço dos alemães em todos os domínios da ciência, pode-se compreender a real supremacia que a língua alemã tinha tomado.
A um homem de ciência, com a obrigação de estar ao par do movimento científico contemporâneo, impunha-se, portanto, como tarefa preparatória, o estudo dessas quatro línguas, de modo a ser capaz, senão de escrever, ao menos de ler e interpretar corretamente os trabalhos nelas escritos. Compreende-se facilmente quão dispendioso é esse esforço, tanto mais quanto nem sempe as disposições de espírito e as formas de inteligência adequadas à cultura de certas ciências são as mais favoráveis ao estudo das línguas. Apesar de todo o interesse do estudo das línguas, em suas origens, em sua classificação, em suas transformações progressivas, em suas influências recíprocas, para o homem de ciência, elas são apenas um meio de expressão, um aparelho de comunicação de idéias. Para ele há todas as vantagens em tornar a estrutura e o manejo desse aparelho cada vez mais simples.
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O ideal de formar uma literatura científica nacional, escrita em português, sempre existiu, consciente ou inconscientemente no Brasil. Em épocas diferentes, claramente expresso em artigos de jornais ou revistas, ou oculto mas presidindo à orientação dos espíritos, ele pode ser encontrado como um dos pensamentos constantes de nossos homens de ciência da segunda metade do século passado, mesmo neste princípio do século passado, e mesmo neste princípio de século. Como acontece muitas vezes com as aspirações nascidas de sentimentos profundos, mas não suficientemente analisados, a vontade de erigir o português em uma língua científica sofreu durante um certo período, em parte prolongado até hoje, uma aberração decorrente de seu exagero. A preocupação da língua tomou a dianteira a todas as outras. Aos poucos, a própria matéria científica já se tornava secundária. A pureza de linguagem era tudo. Como esse purismo não se encontrava nos escritores contemporâneos, tornava-se preciso procurar os modelos entre os escritores antigos, isto é, entre os clássicos portugueses. O esforço para adaptar às necessidades da ciência moderna as formas antiquadas da língua, só podia dar em resultado, como deu, uma literatura científica estéril, e destinada a uma vida precária e efêmera.
A análise desse curioso movimento, cuja intensidade atingiu ao máximo entre os cultores das ciências médicas, já foi por mim esboçada em outro estudo. (V. "A mentalidade científica no Brasil", em Homens e coisas de ciência.) Por mais estranho que fosse, ele teve suas causas psicológicas, complexas, mas assim mesmo susceptíveis de serem desmembradas e postas em evidência. O conhecimento dessas causas inspira uma certa benevolência na maneira de julgá-lo, e dá uma orientação mais segura para combatê-lo em suas últimas manifestações. Evidentemente o combate deve ser dirigido contra o preciosismo literário, traduzido pelo emprego constante de arcaísmos e de formas caídas em desuso, o que torna a leitura de muitos escritos brasileiros em extremo difícil, mesmo para nós brasileiros. O trabalho para chegar a escrever em tal estilo é tão absorvente que, sem nenhum exagero, posso dizer, existirem ainda belas inteligências de todo perdidas e desviadas para esse gênero de atividade. Mas o ideal de formar uma literatura científica brasileira, escrita em português, purificado dessas deformações que denotam a incerteza dos primeiros passos, deve também ser combatido ou merece apoio? Não seria possível responder a essa questão de um modo uniforme; alguns casos devem ser isoladamente considerados.
Uma das primeiras necessidades da literatura científica é o ensino. No Brasil, não existe ainda literatura organizada nesse sentido. Há alguns raros tratados de uma ou outra ciência. Muitas matérias ou mesmo a maioria delas, ainda não possuem o seu representante brasileiro. Até aqui os estudos de ciência têm sido feitos com o auxílio de livros estrangeiros. Entre estes, têm ocupado o primeiro lugar os livros franceses. A criação de uma literatura brasileira destinada ao uso de nossos estabelecimentos de ensino só teria vantagens. Em primeiro lugar, há a tomar em consideração as tendências de espírito que são peculiares a cada povo. Muitas dificuldades que são encontradas pelo estudante brasileiro na leitura dos livros europeus, provém dos hábitos próprios de raciocínio, das características de mentalidade que são diferentes, e mesmo da própria organização dos estudos, que é diversa.
O ideal do ensino, impossível de atingir por enquanto na vida prática, seria o ensino individual. Dada essa impossibilidade, seria muito desejável que cada professor tivesse o seu livro. Não podendo ainda chegar até aí, ao menos deve-se aconselhar que cada país tenha os seus livros de ciência.
Ao lado dessas razões, puramente pedagógicas, há ainda outras. Pela constituição do meio, pelas condições particulares de vida, os estudos de algumas ciências devem se transformar, segundo os países. Em alguns há necessidade de desenvolver certos pontos que podem ser passados por alto em outros. Isso não se dá exclusivamente com certas ciências que assumem uma importância toda local. Em estudos de Mineralogia ou de Geologia, é evidente que a Mineralogia e a Geologia do Brasil, pela sua importância para nós, adquirem uma posição de relevo. O mesmo se poderá dizer da Patologia tropical, mais particularmente da Patologia brasileira. Mas, fora dessas ciências, para o estudo das quais entre nós os livros europeus evidentemente não satisfazem, há outras em que o mesmo se passa, conquanto de modo menos claro. A Fisiologia é um exemplo disso. As condições de temperatura diferente, as espécies animais, às vezes diversas entre nós (a nossa rã e as rãs européias não são do mesmo gênero), a facilidade com que se obtêm certos elementos difíceis de conseguir na Europa, tudo dá ao estudo dessa ciência no Brasil um aspecto novo. O ensino, e com ele a literatura, forçosamente sofrem a influência dessas condições. Um livro que ainda não existe, escrito no Brasil sobre essa ciência, terá que tomá-las em consideração.
A literatura didática deve, pois, ser criada e desenvolvida no Brasil. Bem orientada, sem os erros que a desvirtuaram a princípio, ela constitui uma tarefa a ser tomada pela atual geração de professores.
Ao lado da literatura didática, poderia ser colocada a literatura de vulgarização, também praticamente não existente entre nós. As vantagens de compor uma série de livros que despertem o interesse geral para as coisas científicas são evidentes. Esse gênero de literatura destina-se a uma certa ordem de leitores. Ele tem sempre um interesse local.
As aplicações científicas a problemas brasileiros formam um terceiro caso em que se aconselha o emprego da língua portuguesa, conquanto em um grau menor que nos dois primeiros casos. Os nossos problemas industriais, as nossas questões agrícolas têm, por vezes, um interesse que parece limitado a nós. É preciso, entretanto, não esquecer a existência de outros países que, em determinados casos, apresentam condições semelhantes às nossas. Os resultados por nós obtidos são susceptíveis de serem aplicados a esses países. Além disso, o Brasil tem procurado sempre atrair os capitais estrangeiros. É indispensável assim que os países mais diretamente interessados em nosso desenvolvimento possam conhecer as soluções dadas às nossas dificuldades ou pelo menos a maneira por que as encaramos. Essas questões, que nos interessam em primeiro lugar, e precisam ser largamente divulgadas entre nós, o que exige o emprego de nossa própria língua, merecem, entretanto, uma publicação ao menos resumida, em outras línguas mais conhecidas.
O último ponto a estudar é o da publicação dos trabalhos de ciência pura. Se os nossos estudos são bem feitos, devem sem publicados de modo a se tornarem conhecidos de todos aqueles que direta ou indiretamente são interessados em questões idênticas. Não se obterá tal resultado mantendo as publicações exclusivamente em português. Tão cedo não se poderia esperar dos pesquisadores estrangeiros o conhecimento de nossa língua. Os trabalhos escritos em português têm até hoje tido o destino de ser conservarem quase totalmente ignorados. Disso amargamente se queixam os homens de estudo, que confirmam a idéia desanimadora de ser a língua portuguesa o túmulo do pensamento. Isso se dá, porém, porque nós, os brasileiros e os portugueses, não temos um passado de cultura científica que pese, dando relevo à nossa língua. As nossas condições históricas não permitiram ou não facilitaram o desenvolvimento de nossa cultura. Em rigor, poder-se-ia dizer, pois, ter sido o pensamento português e brasileiro o túmulo da língua portuguesa... Para erguer esta, é preciso primeiro criar, ou se quisermos ser menos rigorosos, fazer renascer aquele.
É provavelmente a esse renascimento que assistimos agora. Para ser conhecido e poder produzir os seus frutos, trazendo para o progresso geral a sua contribuição, é indispensável esquecer todo e qualquer ponto de vista estreito, encarar de frente a questão e tomar o melhor caminho.
Até agora muitas publicações científicas brasileira têm procurado resolver essas dificuldades, dando, ao lado do texto português, uma tradução francesa, inglesa ou alemã, dos trabalhos nelas insertos, ou, em certos casos, publicando nessas línguas um pequeno resumo das suas principais conclusões. A melhor solução para o caso, porém, não se nos afigura ser essa. Seria antes preferível criar um órgão único, que reunisse os principais trabalhos escritos em português e esparsos por várias revistas, publicando-os exclusivamente em uma das línguas mais difundidas. Publicações desse gênero já existem para exemplo, prestando os melhores serviços. Há muitos anos são conhecidos dos biologistas os Archives italiennes de Biologie. Os holandeses criaram recentemente os Archives néerlandaises de Physiologie. Alguns outros países escolheram o alemão para casos idênticos. O Brasil, só ou associado a outras nações da América latina, poderia promover uma publicação assim orientada, estendendo-se a todas as ciências. Esses arquivos brasileiros ou sul-americanos de ciências seriam escritos em francês, e dariam a conhecer os principais trabalhos científicos feitos no Brasil ou na América Latina. Além de todas as outras vantagens, um órgão desses teria a de facilitar extremamente as pesquisas bibliográficas. Ele seria um meio de coordenação de publicações esparsas.
Seria de desejar que as questões agitadas neste ensaio, provocassem a manifestação de outras opiniões. A solução dos problemas dessa natureza se tornará tanto mais difícil quanto mais retardada.
(Homens e coisas de ciência, 1925)
A NECESSIDADE DE ESQUECER
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A Psicologia talvez pudesse trazer alguma luz sobre questões importantes, que apaixonam violentamente as opiniões. Todos nós assistimos à luta desencadeada pela manifestação das idéias futuristas em literatura. O culto pelo passado sentiu-se seriamente ameaçado diante das atitudes livres de um grupo, considerado logo como de iconoclastas, que pede um movimento organizado em uma direção nova, aliás não ainda bem definida e nitidamente traçada. Os futuristas preconizariam o esquecimento do passado, defendido ciosamente pelos antigos, que o consideram como uma riqueza adquirida, definitiva, não sujeita a desvalorizações. A isso se oporia a queixa dos primeiros, opinando ser o passado um peso morto, nocivo, que abafa as fontes de criação nova e inibe com os seus moldes gastos e anacrônicos, os movimentos fecundos e generosos da inteligência atual.
Longe de mim intervir em um debate para o qual não me sinto preparado. Mas a questão se liga diretamente aos problemas por mim agitados neste ensaio. Cultivar constantemente a literatura e as artes do passado, é dar à memória um papel preponderante. Não seria assim descabido examinar por momentos o que, para o problema literário, seria possível tirar da análise da memória.
Pode parecer lógico que minha opinião seja logo antipassadista, pois acabo de mostrar como se deve esquecer e como o esquecimento é necessário. Mas uma conclusão dessas, assim tirada em bloco, seria um tanto apressada. A questão é complexa e obscura.
O que é a literatura?
Já, por si, a impossibilidade de defini-la mostra a multiplicidade de pontos de vista dos quais podemos encará-la. Consideramo-la, porém, para limitar o problema, pelo seu aspecto mais comum: uma representação artística do homem, da vida, do universo refletida em uma personalidade consciente e ativa. Para exprimir e nos transmitir essa imagem, com todos os seus caracteres, provenientes da estrutura da personalidade considerada, o artista dispõe de um meio de expressão: a linguagem escrita ou falada.
A situação do artista contemporâneo é, à primeira vista, difícil: diante de um universo muito explorado pelos seus antecessores e dispondo de um instrumento muitas vezes manejado e assim talvez um tanto gasto, procura ele fazer alguma coisa de novo, de original. O passado representa para ele uma obsessão, o perigo a fugir. É preciso achar, custe o que custar, alguma coisa que nunca tenha sido dita, e exprimi-la em forma nunca anteriormente empregada. Guiado por esses princípios, ele não recua diante de aberrações extremas, dos absurdos de idéias e de estilo, passa os limites do gosto e da beleza, cria monstros, mas dá-se por satisfeito, pois escreve o que nunca foi escrito, diz o que nunca foi dito.
O homem de letras que emprega desses processos, em nome de uma escola que ele situa no futuro e que portanto não sabe qual é, paga-se com uma ilusão, e é no fundo destituído de toda e qualquer originalidade. As suas bizarrias nada mais representam que o esforço improfícuo para escapar da prisão do já feito, do já visto. Os futuristas mais extremados são assim os mais ligados e mais escravizados ao passado, que eles não conseguem afastar, não eliminam de seu espírito, e cuja ação sentem sempre presente e insofismável. Suas criações não afirmam nem se destinam a afirmar; elas negam, e negando, atestam sempre a existência de alguma coisa, realidade ou fantasma, que pesa sobre elas e reduzem o seu alcance. A intensidade do esforço para a liberdade indica o grau de opressão íntima sentida pelo espírito, a natureza da influência sofrida. O espírito livre não se revolta porque nada tem contra que se revoltar. A violência da reação do futurista mostra até que ponto ele se acha tolhido em sua liberdade, e, como essa coação não é exercida por ninguém, mas por uma sombra, por uma abstração, em uma palavra, pelo Passado intangível, impessoal e inacessível, pode-se concluir que o maior futurista é o maior passadista, inconscientemente, constitucionalmente passadista.
Maior originalidade não possui o passadista, oficialmente passadista. Para ele, as coisas já tiveram a sua expansão definitiva através dos escritos dos mestres extintos. Passam-se os tempos, e ele não vê coisas inversas a serem relatadas, e sobretudo não sabe como relatá-las de um modo diferente. Só lhe resta a imitação, a cópia, a reprodução com ligeiros retoques, e isto ele faz consciente do que está fazendo, mas submisso, resignado, e mesmo contente. O jugo a que se submete é aceito de bom grado e julgado cômodo, pois dá uma sensação repousante de bem-estar e de segurança. O futurista, ao menos, tem altivez e a sobranceria da revolta. O passadista sujeita-se sem um protesto íntimo. Aquele pede uma atmosfera livre e desembaraçada, este contenta-se com o ar já viciado e anemizante em que vive, e sente-se bem aí. O primeiro quer receber diretamente a luz pura e estimulante, este não quer sair da sombra à qual se abriga e que protege e esconde sua fraqueza.
Em resumo, pois, passadistas e futuristas são igualmente estéreis e igualmente falhos.
Que resta, então? Restam e restarão sempre os que não são nem uma nem outra coisa. Os que são eles próprios, homens conscientes de si mesmos, espíritos livres, completamente livres, de uma liberdade levada a tal ponto que possam aceitar a restrição representada por uma regra, por um preceito, ou por uma lei, quando essa restrição é reconhecida legítima e necessária.
Esses espíritos não admitem nenhuma escola, qualquer que seja o seu rótulo. Nem passadistas, nem futuristas. Eles procuram, em esforço penoso, descobrir-se a si mesmos, e descobrir o seu universo, o mundo que lhes é próprio. Esse mundo lhes pertence porque é uma criação deles, feita com os elementos do mundo exterior, filtrados através dos sentidos, e dispostos pelos fatores inatos da personalidade. Como a personalidade de cada um é diferente da de todos os outros, ser original é saber pô-la em evidência, simplesmente, sinceramente, sem mascará-la com artifícios.
A formação dessa personalidade é certamente lenta, pois, sobre os elementos inatos se sobrepõem as aquisições novas, realizadas durante a evolução contínua da vida. Entre essas aquisições sobressaem, sem dúvida, as influências dos predecessores, dos que também viram, sentiram e disseram suas impressões. Estas enriquecem a personalidade em formação, por vezes corrigem-na ou excitam-na, despertando a vontade de verificá-las, confirmando-as ou rejeitando-as. Mas, no momento de interpretar e de exprimir, a mentalidade livre sabe esquecê-las, sabe afastá-las, para não perturbar a sua visão própria.
O mundo nunca é tão velho nem tão novo como possa parecer. Um espírito suficientemente livre sempre descobre aspectos ainda não explorados. Do passado ele esquece o que poderia prejudicar a visão do presente, mas também guarda o que prepara e amplifica essa visão. Ele não olha o presente como um estado isolado sem ligações de espécie alguma, podendo à vontade ser projetado no tempo e localizado no futuro. Mas, por outro lado, não desloca o passado para com ele obstruir o presente. Ele sabe que as coisas seguem uma marcha contínua, mas caprichosa e variável, e que o caminho já percorrido, pelo menos, levou-as ao ponto de partida de sua avançada para o futuro. Se ele pode dar a essa curva inflexão brusca, nova e inesperada, sua ação é de primeira ordem, mas se isso não é possível, já é muito que não lhe passem despercebidas as mil pequenas coisas que certamente virão se colocar sob seus olhos.
Em arte, como em tudo, o passado não pode ser nem desprezado, nem afastado, e quando isso se procura fazer, ele reclama seus direitos com uma força invencível e uma energia indomável. Mas ele pode ser esquecido, envolvido nos véus nunca inteiramente opacos do sábio esquecimento, do esquecimento educado, que anula as exuberâncias nocivas, mas não asfixia as sementes vivas e férteis. Estas renascem em formas novas e mais ricas, quando encontram as condições adequadas para o seu desenvolvimento, reunidas na alma nova das personalidades, raras mas sempre existentes, que sabem ver e sentir.
(A vulgarização do saber, 1931)