Senhor Mário Palmério,
Mesmo que tivéssemos um instrumental moderno que nos facilitasse a comunicação com os recantos e encantos do Brasil, não teríamos ainda meios e modos de senti-los e compreendê-los, se não nos socorressem escritores da vossa robusta estirpe.
São eles, através de uma imantada solidariedade linguística e de uma energia expressional incomparável, que conseguem, como ninguém consegue, trazer para perto de nós o que está bem longe de nós. A obra literária torna-se, na plenitude de sua capacidade vinculadora, “a notícia que continua notícia, através dos tempos”, como a configurou Ezra Pound.
Se os poetas e romancistas são senhores da atualidade é porque sabem conservar, com o mesmo viço e frescura, aquilo que aconteceu ontem, como tivesse acontecido hoje, mesmo que esse acontecer nunca tivesse acontecido! Confundem, de propósito ou sem propósito, a verdade com a imaginação, as estórias com a história e, com isso, sustentam um tipo de conhecimento que produz o milagre de ser notícia, que continua notícia através dos tempos.
De vez em quando, gravam em nossa memória aspectos fabulosos da vida amazônica, ou os enredos que romantizam o sertão baiano, o planalto central e as campinas do Sul. Conduzem suas criaturas, que aqui chegam, a pé ou a cavalo, como aqui chegaram, numa das inesquecíveis reuniões acadêmicas, lá das ondulações rasteiras dos Campos Gerais, acostumados no “devagar de ir longe”, com Miguilim à frente...
Prodigalizam, com essas aproximações, salutares doses de cultura germinal, que os grandes centros vão gastando até à medula dos ossos, com a explosão inconsequente dos inventos, de uma civilização marcada pelo signo da novidade.
Com as vozes que escutamos, sonorizadas com matizes diferentes, nas camadas que singularizam a civilização brasileira, vamos esquecendo, um pouco, do nosso comportamento condicionado, e deixamos projetar, em nossa linguagem convencional, a rústica e descerimoniosa prosódia da menos convencional das linguagens.
Sob a orquestração dessas vozes, reassumistes, em toda a plenitude, a gerência do vosso destino e fazeis com que percebamos, de novo, e como se fosse uma novidade, os apelos vitais das origens, que palpitam aos ouvidos de nossa consciência, como reivindicações de seus mitos.
Encontro-vos nessas condições, sem condição, com o gosto generoso pela poesia das coisas grandes e pequenas, disposto a fundir os predicados da Natureza, com os valores da Civilização, como se fossem a mesma verdade.
Não contente de fazer a apresentação dos vossos caboclos, agora misturados com os de vosso antecessor, trazeis “rios nos bolsos, cada qual com sua cor d’água”, como dizem os versos de Carlos Drummond de Andrade.
Vejo-vos, como nunca fostes visto, fazendo ver a ternura de Guimarães Rosa, com sua cidadezinha de Cordisburgo ao fundo e o vasto sertão de Urucuia, de banda a banda.
O retrato que dele conhecíamos, era mais de seus livros do que dele, porque nos livros se escondia o tímido audacioso. Mas o que trouxestes agora, com a riqueza de minúcias inesperadas, chega a ser mais do que uma biografia, muito mais do que um retrato –, um romance que nunca poderíamos imaginar!
E com que exatidão sois intérprete desse admirável mundo sempre novo que distribui seus tons e suas formas, como se ele ainda fosse o mesmo dos tempos de Antonil!
Estais aqui numa das inaugurações de vossa vida, sem ser afetada pelo traumatismo do nascimento, que sempre sintomatiza as situações de mudança. A vossa diretriz não titubeia, como titubeou a de Jean Cocteau, quando pensava que tocar bateria de jazz era a mesma coisa que resolver um problema de matemática!
Creio que sois parecido com o patrono da minha Cadeira, que jamais confundiu os instrumentos de comunicação. Bernardo Guimarães foi estudante em Minas e em São Paulo e conhecia o sertão de cor e salteado. E, por isso, no juiz de Direito preferimos ver o que escutava o sertão rosnar, enrolado em si mesmo.
Quando Kipling foi recebido, em Estocolmo, para a solenidade do Prêmio Nobel, os que o aguardavam estavam certos de que o premiado, mais hindu do que inglês, traria consigo os esquisitos perfumes dos sete mares e compareceria à solenidade da entrega do prêmio com passos de lobo e uma cobra na mão!
Outra é a nossa expectativa, porque, se trazeis os rios no bolso, trazeis, principalmente, a vossa presença, que é a de um romancista, que, por ser conhecido tal e qual, abre, mais uma vez, as amplas amplidões que os arranha-céus estão prontos para desmanchar.
A prova está em vossa obra. Quando a lemos, juntam-se todas as saudades de nossa vida. E esquecemos os barulhos e rumores das metrópoles, os perfumes de Cardin, os vestidos de Dior, os casamentos e descasamentos de Brigitte Bardot, o psicossomático e o psicodélico, toda essa fumaceira oleosa do progresso, para deixarmo-nos arrastar por uma fala descomprometida com os ranços acumulados do passado e o pedantismo enjoado do presente.
Jamais deixaria de emocionar-me com este reencontro do Brasil consigo mesmo, nas ribaltas do litoral. Foi com muito gosto que procurei recolher, como se fosse de meu canteiro, seguindo os exemplos de Amadeu Amaral e Valdomiro Silveira, a pitoresca e descansada maneira de expressar dos piraquaras da margem do Tietê e do Rio Grande, para contentar também os meus alunos de Sociologia.
Certa manhã neblinosa de São Paulo, aconteceu acompanhar Guimarães Rosa, no seu desejo de passar para os seus famosos cadernos, o diz-que-diz-que dos matutos de olhos azuis que habitavam os arredores de Santo Amaro. E, nessas andanças, verificávamos que, por todo o País, há, à margem dos dicionários, uma forte reserva de munições para os que quiserem resistir à invasão dos estrangeirismos, supérfluos e parasitários, que desfiguram o gênio vernáculo. A rebarbarização sintática era também uma volta às raízes, um reencontro com falas emudecidas, que os colonizadores deixaram emudecer.
Não sei, contudo, se esse gosto pelas origens e essa minha admiração pelos estudiosos entraram nos cálculos da ilustrada presidência ao designar-me para receber-vos. Prefiro encontrar, nas minhas credenciais, um mero pretexto para acentuar os aplausos de vossa acolhida com o calor da admiração da gente da minha província natal, que sempre vos considerou filho dileto.
Nesta noite de gala, porém, o que digo está dito pelo que se está vendo e pelo que se está imaginando, pois o recinto acadêmico dá a impressão de que os trajes de gala não ofuscam os sertanejos que estão por aí. Descem dos vossos romances e aqui se instalam como se estivessem na áspera paisagem em que vivem, pouco ligando para os lampadários que nos iluminam pois basta, no céu limpo, a lua do sertão clareando à vontade... E, como sois solidário com ela, deixais que a nossa imaginação continue a imaginar para que vos configuremos, por sua vez, sob a canícula mato-grossense, de calças de brim, ombros nus ao sol, atento a desfilar dos rebanhos curraleiros, que rompem a porteira da Fazenda de São João da Cangalha.
A confusão das atitudes e das distâncias, do que estamos vendo e do que estamos imaginando, depois de sua primorosa oração, vai por conta e risco da inseparável solidariedade entre o autor e sua obra e da verdade dita por Guimarães Rosa: “Toda grande distância pode ser celeste!”
O menino de Monte Carmelo, projetando uma porção de reinações com os companheiros de traquinagens, está espiando pelos vossos olhos e é ele que nos mostra o acordar do dia, na Fazenda do Boi Solto, com a serenata dos galos e com o chuvão que, graças a Deus, se formou no horizonte. Graças a Deus, pois não, porque, para o sertanejo, a Natureza é sobrenatural!
Estou convencido de que o vosso sertanismo literário pertence a uma zona perigosa e ingrata. Muitos escritores nela se afundaram e não voltaram mais. A selva é selvagem mesmo. Dentro dela há um código que poucos podem decifrar. Não adiantam os léxicos perto dos olhos, porque o sertão não se deixa traduzir facilmente. É preciso vivê-lo, pertencer a ele, como se fosse dele e dele obter carta de cidadania.
O perigo não vos assustou, como não assustara nem a Bernardo Guimarães, nem a Afonso Arinos, nem aos romancistas do ciclo nordestino, uma vez que adotastes, como eles adotaram, a política de entrar pelo paraíso perdido, de corpo e alma e não para buscar efeitos novidadeiros como o fazem, em nossos dias, os profissionais do erotismo.
Se o vosso intuito fosse o de seguir as trilhas que se entrecruzam por aí, encontraríeis, na pauta do mesmo sucesso, o “Gattopardo” do Príncipe de Lampedusa, os discípulos de Proust, de Kafka e de Joyce ou, ainda, Camus e Becket, com seu universo absurdo.
Mas preferistes escutar, ao mesmo tempo, a vossa vocação e seu mundo circundante, onde se juntaram as vossas personagens. Eis por que um vosso discípulo, que encontrei, medindo terras, nos despovoados de além Itumbiara, me disse, sem saber a quem dizia, que as vossas aulas eram agradáveis e fascinantes como páginas de um bom romance!
Quando oferecestes ao público Vila dos Confins, compreendestes que nem só de Política vive o homem. Continuastes a manter com ela as melhores relações, mas verificastes que o grande plenário acústico do País pertence à Literatura, para cujo ingresso não é necessário depender do Governo nem da Oposição.
Na idade propícia às grandes realizações, a vossa glória tornou-se uma realidade real. É, exatamente, nessa época, que a vossa personalidade que, antes, andava aos arrepios dos sonhos da juventude foi tomada de assalto pelo escritor. E vemos, a olhos vistos, o vosso prestígio reclamado, por suas criaturas e por chefes eleitorais, ou melhor, assediado por leitores que almejavam ser seus eleitores!
O fato de prolongar-se o sucesso dos vossos livros, recitado nas escolas e lido por todos que gostam de leitura, não quer dizer que deixastes de ser homem público, tanto mais que, principalmente em nossos dias, o literato é, por contingência histórica, um partícipe da vida pública.
A vossa passagem pela Câmara Federal veio revelar que o escritor e o político viviam nas melhores relações diplomáticas. Quando cuidáveis dos problemas da Educação como objetos familiares ou quando estudáveis qualquer outro tema, objetivado em projeto, a vossa acumulação, ao invés de ser vedada por texto constitucional, era aplaudida como uma das mais louváveis e fecundas.
O curioso é que a vossa irrequieta sensibilidade, que nunca vos deixou quieto, tece, com capricho, os enredos de vossa vida. Leva-vos à fazenda, e, daí a pouco, à Uberaba, logo a seguir a Assunção, integrado na vida paraguaia, aderido, sem cerimônias, às suas maneiras, escutando, nas noites cálidas, cantigas populares ou compondo, ao piano, saborosas guarânias, para serem gravadas em discos de sucesso.
Apurastes, com essa inquietação, a vossa ótica intelectual, sem receio algum de pôr o pé na obscuridade. E fostes, com isso, com o mesmo desassombro, abridor de fazendas e construtor de escolas, e conquistastes, com as maneiras de caçador e de pescador, a intimidade do império telúrico!
Os dois romances que compusestes – Vila dos Confins e Chapadão do Bugre, nasceram dessa intimidade com a terra, cujo cheiro gostoso Rachel de Queiroz encontrou em um deles.
É que o sucesso literário não se satisfaz com o escrever bem. Ele reclama, no domínio do idioma, no que ele tem de regressivo e progressivo, o suporte poético da linguagem metafórica, a receptividade para os termos musicais como o fizestes recolhendo-os no ressoar dos acontecimentos e nas narrativas dos ventos que sopram no Planalto Central ou dos rios mineiros que murmuram nas tardes quietas.
A leitura dos vossos romances, em voz alta, confirma que essa volta à linguagem auditiva pode conduzir-nos a uma convivência declarada entre os homens e as coisas, e chegamos, com o vosso exemplo, a compreender o comportamento de Rimbaud, procurando para seus versos, na alquimia do sonoro e do significativo, o conteúdo e a forma, enquanto vendia porta-chaves nas calçadas movimentadas da Rua de Rivoli.
Não há pois como falar aqui em teoria do Romance, evocar o realismo de Lukács, as explicações de Nathalie Sarraute ou insistir que ele é um privilégio de uma burguesia curiosa e gulosa. Basta que o escritor tenha a vossa fibra, os vossos pendores, a vossa intuição para que, de pronto, dispense a imagem de Robbe-Grillet, que mostra o Romance como um caminhão com carburador estragado, que precisa ser substituído por um outro caminhão novo.
Nos vossos romances não predominam a técnica da narração, e a exploração, em grandes doses, do psicologismo. Os romances são um todo, sem predominâncias.
A eleição na Vila dos Confins substitui o herói ou o anti-herói. Provoca, com seus rituais desfigurados, uma interferência chocante, numa forma de viver para a qual ela não foi feita. Isso não está dito, mas é como se estivesse dito. Não há em seus desenlaces uma vontade política, nem sequer um arremedo dessa vontade, mas a voz do mandão, a esperteza de seus agentes de manobra para arrebanhar uma vontade que se recusa a ser vontade. Nesse pedaço de chão arenoso e branco, que principia na Serra dos Ferreiros e acaba no Ribeirão das Palmas, o que se quer é viver e não eleger.
O mundaréu perdido, magro de boas terras, com léguas e léguas de cerrado feio, que qualifica os Confins, abarca, no seu teor de vida, toda a dialética da pobreza. Provocado pelos atropelos eleitorais, deixa sua quietude e o seu conformismo, para transpor a faixa da solidão arcaica em que se habituou, a fim de cumprir certas regras que a civilização quer impingir-lhe.
Quando viajamos, através de vossas páginas, e percorremos as ruas da Vila, antes sossegadas e sem movimento, e, a seguir, transfiguradas pela ambição política, percebemos que a inquietação produzida é por demais da conta... Depois, a vida retoma seu aspecto primário, tudo dantes como no quartel de Abrantes: – a preguiceira nas horas de mormaço ou o vento frio castigando os passantes, as canoas subindo e descendo o rio, onde os jacarés, acendendo o fogo dos olhos japoneses, espiam de longe e onde pescadores solitários pescam com torretes de muçum. Afora disso, as presenças lerdas e encolhidas, aqui ou acolá, nas reuniões em casa do João Turco, ou as antigas rivalidades em meio ao compadrismo, os negócios de gado, os politiqueiros, agora despertos, aproveitando-se do que aconteceu, tanto mais que a Política vasculhou o sertão, de cabeceira a cabeceira, grota por grota, beira de corgo por beira de corgo. Mas, tudo isso, não impede que uma mulher bonita realce, com o ar de sua graça, o desenxabimento geral.
O Padre Sommer, mais caçador do que padre, sempre desguaritado, perdido de quando em quando, pelas cabeceiras do Ribeirão das Palmas, que encontrastes, em sua versão real a consertar seu jipe teimoso, em estrada boiadeira, disse a um amigo nosso de suas apreensões ao se tornar personagem de romance! Mas que personagem gozada a desse padre! Com as mãos abertas, explica como caçou a onça preta:
– Mas, pelo amor de Deus, acabe com essa estória – pediu a Maria da Penha, pálida, os olhos uma beleza de tão grandes e brilhantes.
E a onça preta?
Fiquei esperando, D. Penha, até que a onça alisasse a cara. Mas ela custava, continuando a ringir os dentes. Então eu provoquei, avancei, avancei mais um passo, mais outro e desviei o meu olhar dos olhos dela. Foi então que a onça riu.
– Riu, padre? O senhor está falando sério?
– Vi quando os olhos de brasa se apertaram e os bigodes se moveram... Vi as presas enormes e muito brancas, começando a brotar dos cantos da boca, arreganhando-se numa risada...!
Quando demos conta da cena, em nossa condição de leitor, encontramo-nos sentados, em meio ao grupo que assiste, com olhos curiosos, à bazófia do padre grandalhão.
É bate-papo desses moldes que enche grande parte das horas vazias dos caboclos de raça, raça casadeira entre si, com filhotes puxando a mesma magreza e a mesma feiura dos pais. Mas, ao lado dessa atitude desengonçada, postam-se os camaradas despertos, sertanejos da espécie euclidiana, gente que aguenta sol e chuva, toma conta da boiada de mil cabeças do Coronel Borges, com sua comitiva de cinquenta mulas, sem contar a madrinha e cinco cargueiros.
A paisagem não destoa. Afina-se com o comportamento humano e se faz ouvir, na prosa orquestrada entre homens, pássaros e árvores: – O João de Barro desperta com o canto do galo velho, o jaburu solitário sai da modorra em que se encolhera, o tucano preto, cheio de pecados, continua a fazer das suas...
Não queremos realçar esses contornos, porque eles se realçam por conta própria, na construção romanesca. É o que acontece com certas cenas, certas proezas que podem ser debitadas por conta da terra, como o episódio da sucuri, escondida no fundo da lagoa, rabo engatado na raiz, tocaiando o boi carreiro, procurando o lado cego do boi, até ao ponto certo. E, adeus boi vermelho, boi churreado, boi de guia, sestroso, carreiro de estimação!
Outrossim, não se apaga da nossa lembrança o espetáculo no rio que gorgulha – de um garrote azulejo, arrastando, no mergulho, o vestido cor de sangue da Ritinha, a sacudir-se na espuma barrenta fazendo rebuliço com as piranhas aos mil cardumes, chamadas pelo cheiro da carne, enquanto o foguete de rabo anuncia os resultados da primeira e mais importante eleição municipal da Vila dos Confins.
Essa dramática impessoalização da vida revela, por sua vez, a paisagem se apossando das criaturas humanas, para que elas sirvam a vida descondicionada das regras mundanas impressas nos livros.
Em Vila dos Confins todos se parecem. Há, por toda parte, um indisfarçável ar de família. Não só os filhos são parecidos com os pais, mas com Deus e todo mundo, até com as casas com seu mobiliário ingênuo, com a boiada: – Gente de tropa, do garimpo, mascates, vaqueiros, caçadores, sitiantes, homens que demoram a bebericar na venda para, depois, partir em direção à Serra do Papagaio. A chusma de gente é como mato. E os impulsos são mais do homem como natureza, expressões obscuras e irracionais de seus movimentos, a nota trágica da alma poética do universo, que não dá importância ao importante, abolindo, com sua fatalidade, os mandantes do mundo.
Encontramo-la, com mais frequência, em Chapadão do Bugre, muito embora, nesse romance, o plano político passe para um segundo plano. Os episódios porém não deixam de mostrar a teimosia do preconceito urbano ao querer substituir a violência sertaneja, a seu jeito e gosto.
Há, nesse romance, uma morte brutal. Essa morte não tem requintes como os do envenenamento, que faz se contorcer, entre a dor e o desespero, Emma de Bovary. Nem mesmo se encontra a ciumeira enfranzinada de Bento Santiago, com a vontade de matar no coração e o pavor de matar na inteligência.
Contudo, revela, sem mais preâmbulos, um estilo indicativo do que pode acontecer e onde nada acontece: José de Arimateia, dentista ambulante, desce o machado certeiro por sobre o conquistador de Maria do Carmo. Seu gesto seguro, seu raciocínio frio não são de quem procura seguir as regras de uma sociedade que tem seus códigos de bom e de mau comportamento. Nasce das entranhas sertanejas. E se José de Arimateia foge, na besta Camurça, receoso da polícia, é porque irá enfrentar, com certeza, uma violência mais forte que a que se disfarça no aparato legal.
A busca do criminoso é mais um pretexto para a aventura do que uma busca, com a convocação das autoridades do Estado: O Juiz de Direito, os procuradores, os delegados, funcionários e os soldados da captura.
O juiz que ambiciona, de começo, acabar com a imoralidade reinante – que a descobre, por toda parte –, acaba por solidarizar-se com ela. É que, nessas paragens, dificilmente todos são iguais perante a lei, mas, inexoravelmente, todos são iguais perante a Natureza!
E, no plano dessa igualdade, não há credor, princípios, ideologias. As sentenças de Zaratustra, os cantos de Lautréamont, a prosa do Marquês de Sade podem servir para despertar sensibilidades, gastas ou amortecidas das grandes metrópoles, mas perdem o rumo e não fazem rumor algum na orla do Sertão.
A morte do avalentoado Felipão, quando mandava a negrada beber, sob sua ameaça, é praticada, num abrir e fechar de olhos, pelo medo alcoólico de Xixi Piriá – e tem, aparentemente, os mesmos ingredientes dos crimes que os jornais noticiam com letras grandes e fotografias. Mas, também aí, a semelhança é mera coincidência.
A linguagem das vossas personagens e a descrição do comportamento delas decorrem, como fantasia e verdade, do equilíbrio plástico dos enredos, trabalhadas na convivência familiar dos termos. E repete e repisa, de pé firme, os nomes que o sertão levou para a pia batismal.
A conversa de seu Americão, que ocupa duas páginas do Chapadão do Bugre, é intercalada de silêncios para que, na sala de visitas, penetre em os acordes da banda de música local, posta aos olhos do público, no Largo da Matriz.
A cena do circo iluminado, com jagunços infiltrados na multidão embevecida, com o desfile de elefantes e trejeitos do palhaço Magricela, a atitude de José de Arimateia apertando o escapulário ao peito e fazendo fogo com uma arma de cano cerrado; ou, ainda, a história do Lico da Isolina, autor de incontáveis mortes, com não sei quantas balas na carne, vivendo à custa do corpo fechado pelas orações das Sete Forças e pela alma vendida a Belzebu – são urdidas por linhas invisíveis, trabalhadas por potências demiúrgicas.
A lógica dos antagonismos, lembrada nos Tristes Trópicos por Lévi-Strauss, como um atributo do espírito humano, se aviva a cada instante. Mesmo em Santana do Boqueirão, sempre em contato com as cidades vizinhas, a maneira de falar não dá trela aos apelos à disciplina gramatical.
E foi o que percebeu a vossa sensibilidade, nas tônicas das vossas criações. E o estilo lucra com isso. Retoma, pelos efeitos que consegue, o seu significado latino de instrumento próprio para escrever. A cantiga dos ermos é captada por ele, como se repetisse a experiência de Mallarmé ao compor “Pli selon pli.”
Quando escreveis: “Bicho chega ao barranco, assunta, assunta, bebe água; assunta, assunta outra vez e vai-se embora. Passa o pato trombeteiro, passa irerê, passa nuvens. E o dia passa também”, vemos aí como é bem empregado o apetrecho sugestivo, ao conduzir a descrição no mesmo ritmo em que se movem os bichos, os pássaros, as nuvens e, até, o dia. As minuciosas descrições de cenário, que os romances flaubertianos fizeram a engrossar as antologias e que os romances americanos transformaram em dinheiro miúdo – ficam para outras eras.
A substância mágica das ocorrências, que provém das raízes das raças vencidas, não depende dos relógios ou do bater das horas na torre da matriz. Ela significa um modo de ser, que só conta com o tempo para calcular a época das chuvas e das secas, de plantar ou de colher, pois nessas terras pobres e de vegetação minguada, o tempo é uma categoria à parte. Alarga-se e se encolhe conforme as conveniências, à maneira do Cid, o campeador, que o alargava e o encolhia, como bom sinal da poesia heroica da Idade Média.
As lendas têm, por isso, seu tempo, com seus vagares. Correm em certas épocas, por leitos ocultos e dão sinal de si como o Minhocão, que sai do Rio São Francisco para campear por outras paragens, depois de fazer, às escondidas, suas demoradas estações.
O manso ramerrão do cotidiano, tudo devagarinho, devagarinho; o esperar sem esperar dos pescadores, pressentindo o peixe rondar a isca que brinca com correnteza, explica por que Mauro, por exemplo, dependurado nos bancos, com promissórias vencendo todas as semanas, sem assinar títulos novos, nem reformar os velhos, não se afoba nem se preocupa.
É verdade que a lida nos currais começa cedinho, escuro ainda. Mas basta a noite chegar para que tudo silencie. O longe, explicado, é perto, para satisfazer o compasso das preocupações e despreocupações. Gado de criar povoa os campos, arame farpado fecha os primeiros pastinhos de bezerro; aroeira em pé esquadra os currais de bois. O resto é chão e mais chão.
Nesse espaço sem fim e nesse tempo sem tempo, é que se pode medir a estatura de José de Arimateia, que é só figura central do romance, com sua pouca fala e grande drama, porque ele é uma espécie de centauro mitológico, misturado com a besta Camurça, conversando com ela, sofrendo com ela, e com ela agradecendo os agrados que recebe.
A vossa paciente argúcia, no recolher esse material para pô-lo nos romances, como se não o pusesse, coloca-vos na mesma posição de relevo dos que souberam anunciar as verdades que andaram perdidas pelo interior brasileiro.
Trouxestes-nos uma deliciosa composição romanesca e restabelecestes entre nós a confiança no Romance, prestes a cair nas garras do canibalismo cultural.
Foi assim, Sr. Mário Palmério, que compreendi o enorme alcance dos vossos livros, muito embora não me sinta tomado pelo delírio de interpretação, assinalado, com muita argúcia, por Maurice Blanchot.
Dou a minha versão como outros darão a que quiserem dar. Cada leitor que se aposse de seus romances para entendê-los a seu modo, com todas as criaturas desse museu imaginário, que é a Literatura.
Mas, seja quem for o leitor encontrará, através de vossa capacidade de escritor, a densa corrente do essencial, que conduz, em suas águas absurdas, um fabulário cheio de graça e malícia. A cada instante, ao som coral dos rios, das matas e da bicharada, damos de cara com reações sem temores, ao lado da timidez arisca e desconfiada, resguardando a vida que não quer saber como vive... A cada instante, o predomínio do falar sobre o descritivo se encarrega de se colocar-vos bem, entre as exigências da sensibilidade moderna.
Não deixo de assinalar, para remate, que a vossa maneira de trabalhar na construção literária é feita de forma que o regionalismo do material empregado se transfigure em temas de sólida universalidade, embora o sertão se feche depois de vossa passagem.
Mas esse fechar do sertão está singularmente no vosso processo literário. Nos vossos romances, a cadência inicial não desafina da cadência final: Xixi Piriá, na Vila dos Confins, é quem primeiro aparece a cruzar as lonjuras, com um sol já meio de esguelha.
É assim a sinfonia de abertura.
Nos acordes finais, o mascate reaparece. Deixa estendido o corpo morto de Felipão e lá se vai, estrada afora, como veio, enquanto que, pelos lados da serra, se espalha o derradeiro aceno vermelho-sangue do sol, que acaba de descer sobre o morro da Bruaca. E a noite cai, como um pano cênico sobre aqueles ermos monótonos e adustos.
O mesmo processo em Chapadão do Bugre: José de Arimateia chega aos trotes da Camurça e, ao final, depois de muitas acontecenças e desgraças, está ele, outra vez, na cerração, sumindo, numa noite sem lua, como se o pano de boca, obedecendo aos imperativos do sertão, encerrasse o espetáculo, para que ele só seja dele e de mais ninguém...
Todos esses aspectos de uma mesma fisionomia cultural, que iluminam a vossa tomada de posição, é que vos trouxe à Academia.
Quando acabais de aterrissar, depois de ter sobrevoado baixinho sobre a paisagem jagunça e pelas veredas que Guimarães Rosa perlustrou, podemos avaliar a preciosidade que representa a vossa bagagem de escritor, na qual a alma roceira se apossa da emoção de todos nós para mostrar que o viver dois mil e quinhentos anos, à custa da mentalidade abecedeista de que fala Joyce, não conseguiu ainda impedir que sentíssemos, como agora sentimos a nossa liberdade, por esse céu onde vosso avião deslizou tranquilo e por esse mato onde a aventura humana não perdeu suas raízes.
Porque o sertão não é só uma beleza para quem gosta de caça e pescaria. Ele é uma beleza para abastecer a nossa cultura e limpar a nossa sensibilidade das ferrugens que a atormentam. Ele nos deixa viver à vontade, retempera o nosso jeito de ser e de viver, como se vivêssemos à margem do Uracanã, onde as árvores espiam as águas do barranco, conjuntamente com bichos de porte.
São tantas e tais as conquistas humanas, são tais, hoje em dia, as forças libertadoras e opressoras, que o nosso critério oxiológico precisa ser, antes de tudo, uma atitude ou um propósito de afirmar e de negar, para que possamos ser coerentes com o nosso passado e compreensivos diante dos audaciosos desafios do presente.
Os escritores que desejamos, compondo a nossa Confraria, Sr. Mário Palmério, são os que sabem compreender e sentir tudo isso, são os que possuem as vossas qualidades e as vossas aspirações. É, com eles, que manteremos o compromisso de Machado de Assis, ao dizer que não devemos confundir a moda que parece com o moderno que vivifica.
Bem-vindo, pois!
22/11/1968