Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Mário de Alencar > Mário de Alencar

Mário de Alencar

DEPOIS DE LER A ODE I DE HORÁCIO

Nem tudo, sábio Horácio, o que aspiravas

E a Mecenas pedias, é o que aspiro.

A mim basta-me um plácido retiro,

Entre árvores, ao pé da água corrente,

Ouvindo a voz das musas que invocavas.

Com isso apenas viverei contente.

 

Longe da turba inquieta que aborreço,

Nem teria ambições, nem cuidaria

De haver glórias da terra. Na poesia

É o grande prêmio dela o vago sonho,

Com que eu, vivendo embora, a vida esqueço

E num mundo melhor viver suponho.

 

Tão alto não irei no imenso espaço

Que toque os astros como tu, amigo.

Mas sei que astros e céus tenho comigo

Enquanto com estes sonhos bons me iludo;

E como as aves cantam, versos faço.

Isso - que vale o mais? - vale-me tudo.

                                                                                    (Versos, 1909)

 

NO ÁLBUM DE UMA ESTRANGEIRA

Não vos conheço, senhora,

Nem a mim me conheceis.

E, pois vos ides embora,

Nem eu vos verei, senhora,

Nem vós nunca me vereis.

 

Desconhecidos embora,

Alguma coisa ouvireis,

Com que vos faça, senhora,

Quando vos fordes embora,

Lembrar quem não conheceis.

 

A minh’alma sofre e chora.

Por quê? Me perguntareis.

Não vos sei dizer, senhora.

Entende o chorar quem chora,

E ignoro se vós sofreis.

 

As aves de voz canora

Nem todas cantam, sabeis,

Para a alegria da aurora.

As que são tristes, senhora,

Só quando é noite, ouvireis.

 

Quem as fez tristes, senhora,

Em vão saber querereis.

Pois a minh’alma, se chora,

Não tem outra causa agora

Do que essa que não sabeis.

 

A natureza, senhora,

Tudo governa por leis.

Dela vem que me a alma chora,

Do viver talvez que ignora,

Mais do que me conheceis.

 

É tudo o que digo agora

Porque um dia vos lembreis,

Quando vos fordes embora,

De quem não vos viu, senhora,

E já nunca vós vereis.

 (Versos, 1909)

 

                                      COUSAS DO TEMPO

Para entender a linguagem coloquial da nossa gente moça, será em breve preciso ter-se à mão um vocabulário de folhas volantes que acompanhe as aceleradas inovações idiomáticas. Quanto a mim, fico em branco ouvindo expressões que andam correntes e sem dúvida traduzem idéias. Registro algumas que me estão lembrando: à beça, baita, batuta, pra burro, é um suco; e há muitas outras que tais.

Constitui esse vocabulário uma geringonça; mas, ou eu me engano, ou são as geringonças peculiares a ajuntamentos quotidianos e restritos, como as escolas e quartéis, ou à gente popular unida em identidade de profissão ou de vício. Creio também que à linguagem popular não é difícil descobrir-se uma origem na metáfora, na freqüência dos seus utensílios, ou na corrupção da ignorância. Tem ela ainda um certo pitoresco, que resulta da própria transparência ou jeito do vocábulo, ou porventura do uso limitado a um grupo.

Mas ao idioma novo a que me refiro, desde que é geral aos moços de toda procedência, não quadra a razão de ser das geringonças. Os salões que eles freqüentam assiduamente deviam ser um meio neutralizador ou anulador de hábitos e cacoetes adquiridos onde a graça se contenta de ser chulice e a comunicação de idéias se satisfaz com esgares de palavra.

A casaca e o peitilho engomado obrigam ao aprumo do tronco e ao gesto comedido; e até o corpo que não tenha natural elegância, aparenta-a sem o pensar. Também ali a voz não ultrapassa o diapasão de surdina; alinha-se a palavra em harmonia com o timbre e as atitudes; tem compostura, afeiçoa-se à delicadeza da presença feminina, e enforma espontaneamente em galanteio.

Ora, a geringonça dos moços de hoje não é só deles entre si, senão deles para elas e delas para eles. Mais os entendem elas do que eu, que sou velho, ou o homem do povo, que tenha a rudeza da vida simples. Mas o popular freqüentador da Avenida e dos teatros e cinemas, esse conhece também e pratica a geringonça das moças.

Apagou-se a linha divisória do gesto, da linguagem e até dos hábitos de salão, como já não há diferença entre o salão e o bonde.

O decote era a concessão convencional que o pudor fazia à elegância seleta do baile ou consentia à discrição de um camarote em espetáculo de gala; mas exigia a sombra de um carro e o abrigo de uma pelica; agora desce pedestremente à rua, e toma o bonde, e senta-se entre gente grosseira e estranha, e deixa-se ver sem convenção e medida pelos olhos da multidão.

As pernas também já não se escondem, e esqueceram que a graça e a magia do seu encanto provinham de andarem ocultas. Bastava à imaginação a possibilidade de descobri-las, e o principal era adivinhar, ou surpreendê-las a furto, ao acaso de um movimento, e que não as vissem muitos olhos a um tempo ou não mostrasse a dona gostar de mostrá-las. No gesto apressado de reescondê-las e no rubor súbito acendido nas faces da dona estava a delícia da visão misteriosa e breve. Musset não achara poesia nas pernas da sua andaluza, se elas fossem espetáculo quotidiano, em vez do imprevisto e da surpresa. Mas a andaluza de Musset usava espartilho, e ao tempo dele as casacas não usavam em público outro ritmo de movimento que o giro de adejo.

Agora a música dos bailes não tem o compasso de ondulação suave: chocalha; não deslizam os pés: sapateiam; não se alinham os corpos em par que revoa, apenas unidos pelo toque leve dos braços: agarram-se, aferram-se; nem o movimento é composto pela atitude da beleza: os troncos dobram-se, chocam-se, sacodem-se e pulam, desconjuntam-se e descambam, ou só remexem, jungidos, em quebros de melopéia ou batuques de cateretê, durante os quais não raro, para maior efeito, há uma pausa na música e um grito do batuta: Maricota, sai da chuva! ou estribilho equivalente. E o saracoteio recomeça mais vivo, num gingo-gingo estonteado e suado de samba.

Não estará aí a explicação daquela geringonça que eu não entendo? Baita, batuta, à beça, pra burro são flores de jardim moderno, em que se alternam ou confundem as couves e salsas com os cravos e as rosas. Eu não desdenho as hortaliças, antes gosto muito delas, mas o meu sentido estético não as quer senão em horta ou já temperadas no prato de refeição. Repugna-me ver em lapela uma folha de alface, nem suponho que ninguém aceite para um jarro de salão um ramo de violetas entremeadas de cebolinha. Tal a impressão que recebo dessa geringonça em lábios de fina gente moça.

                                                             (Contos e impressões, 1920)

 

                                 PÁGINAS D’A IMPRENSA

                                                   1900

Eu também acredito na veracidade dos sonhos. Tinha-os outrora por meros fantasmas, vãos, que, nas nossas retinas adormecidas e excitadas, se formavam das múltiplas e minúsculas impressões dos sentidos, também como nos tubos de caleidoscópio se formam aquelas vistas variegadas de pequeninos e multicores fragmentos de trapos inúteis. Hoje, não. Tenho inteira fé na significação e na origem dos sonhos. Quando o corpo mergulha no esquecimento das sensações externas, a alma, que não dorme, mais livre das importunações do meio e das exigências vis da matéria, aproveita-se do silêncio e, repoltreada no salão do nosso crânio, trava palestra amiga com as outras almas irmãs. Imagino que é uma perfeita cena de família. Iluminado o salão, abrem-se portas e janelas, e a dona de casa, solícita e amável, vai à porta receber as habituais visitas de amizade. E já desde a soleira é um apressado e afanoso trocar de idéias. Cada uma traz a sua porção mais variada, e com pouco na pequenina sala confortável, compostos os grupos de acaso, a prática se enlaça, se acalora, se alteia, nesse vozerio barulhento, que é tão peculiar aos salões do fluminense inquieto.

É claro que estou falando de um salão de casa nobre de Botafogo. Nem todos são como esse, de luxo e conforto, iluminados a bicos de luz Auer. Há-os de todos os tamanhos, de todos os gostos e preços; e alguns nem chegam a ser salões, senão pequenas quadras de chão de terra e teto de colmo, fumarentos e escuros, com a chama suja de um candeeiro de petróleo. Nem todas as almas dispõem dos mesmos recursos de riqueza. A de um mesteiral, por exemplo, não tem o salão egípcio do palácio do presidente; nem mesmo a do presidente é provável que dê recepções em tantas salas, como faz o seu dono nos dias de gala. Este recorre às arcas do orçamento; mas ela... terá com que manter tamanho luxo e dispõe de tanto espaço e conta, acaso, com tantas visitas?

Dou mais pelo salão e pelo conforto da alma do poeta Orlando Teixeira e da tua, poeta João Luso. São almas fidalgas, mas relacionadas (não digo no meio social inferior que anima a cidade, mas na comunhão elevada de aristocráticos espíritos). A do presidente receberá talvez essa gente politiqueira, que vive dos setenta e cinco mil-réis diários... e que vale essa gente? que contingente de idéias traz? votos eleitorais, tricas eleitorais, violações da Constituição, projetos de perseguição e abafamento da liberdade... mas nada, ou então cousas estapafúrdias como aquela frase extraordinária que tu glosaste na Folhinha com tanta graça facúndia.

 Para isso e para essa gente basta uma loja à-toa. Mas a tua alma, a de Orlando e as dos outros sonhadores, essas têm palácio, porque são almas ricas, almas nobres, que convivem com os grandes espíritos da terra e do céu; às recepções que elas dão freqüentemente acodem esses espíritos eleitos, que se nomearam no mundo por Shakespeare, V. Hugo, Dante, Camões, Cervantes, Balzac, Eça de Queirós e outros, e os dos vivos ainda, pois que as almas não são obrigadas a ficar em casa, e até passeiam muito, vão de pólo a pólo, correndo terras da Europa e da Ásia, num vôo tão rápido que nem o corpo percebe a ausência delas. Ora, a tal companhia, não é qualquer saleta que a recebe; só um salão espaçoso e claro, mobiliado com arte e fausto, é que atrai essa gente ilustre, além da valia pessoal da dona da casa. Isso sucede contigo e com os outros como tu. Estás dormindo, no repouso da labuta de escritor, e em cima, no salão doirado do teu cérebro, agita-se o enxame das almas grandes que conversam calorosamente com a tua alma hospitaleira e animada. E pela manhã, quando acordas, há muito que a palestra findou; o teu corpo não sabe o que houve por casa, nem tem senão vaga reminiscência de uma palração longínqua, que ele supõe fosse talvez da casa do vizinho. Mas, quando tomas da pena, quem te inspirou as idéias dos teus contos, a poesia dos teus sonetos, a graça das quadrinhas de todo o dia; quem te deu aquele ritmo admirável das tuas frases, aquele gosto apurado do vocábulo e do torreio sintático? Quem, senão os teus sonhos, os grandes espíritos que a tua alma convida para a superior confabulação? Deixemos de vaidade, meu amigo.

 O que temos e valemos vem deles, vem assim, no processo inconsciente das visões noturnas e queridas. Isso, porém, não te desmerece a ti nem aos teus, iguais. Não é qualquer que pode vangloriar-se de tamanho favor dos espíritos divinos, e a só presença deles na alma dos poetas já revela quanto ela vale acima dos outros mortais. Estes também têm visitas, cada qual as da sua classe e preferência. Pudesses espiar o cérebro de um burocrata dormindo, e voltarias espantado e abalado com a vista das figuras alquebradas e puídas, tagarelando sobre promoções e avisos, timidamente falando de S. Exa. o ministro, naquela linguagem oficial de chapas e precedentes e de vós e de saúdes e fraternidades. O crânio de um intendente municipal, de um juiz, de um banqueiro... tapeamos os olhos, amigo João Luso. Há cousas feias lá dentro.

E assim sonham todos, cada um consoante as relações e hábitos que tem, e conforme a capacidade do salão em que recebe.

Mas os espíritos nem sempre guardam a austeridade que lhes atribuímos. Alguns há, como os juízes do supremo tribunal, graves somente por fora. De noite, como a gente os não vê. saem de casa aos grupos, em folgança, a pregar peças nos bobos que dormem. E que peças nos pregam! que sustos! que enganos!

Entram por casa da gente e começam a falar de sortes grandes, de riquezas, de amores superfinos, de delícias olímpicas; e ai! de pobre mortal quando desperta. Lá por cima, no espaço, escondidos à espreita, como os garotos nas ruas, eles riem-se, riem-se a morrer, das carantonhas desiludidas pelo logro bem feito. E quanto se lembram de aterrar a gente! ou tomam a aparência de monstros e arremetem de goelas abertas, ou fingem de ladrões e nos constringem o pescoço, com um punhal a ameaçar-nos, ou simulam um enterro, com todas as minúcias da cena luxuosa, com as choradeiras, o esquife, os círios e o morto, muito pálido e frio. E que terror que é o nosso! que pesadelos medonhos! Estes espíritos têm uma pontinha de perversidade que levaram da terra; aqueles são folgazões, vivem num contínuo carnaval. E aí está por que os sonhos às vezes são tão disparados, tão contrários à verdade. Mas por isso deva gente desacreditá-los? Pois os espíritos têm o direito de divertir-se algumas vezes? Olha, outro dia tive um sonho desses. E foi para contar-te este sonho que eu tanto falei até aqui. Supõe que nada leste, ilude a fadiga que te dei com esta prosa solavancada e escuta o sonho.

Foi depois de um dia de grande sol, gozado debaixo de árvores, num dos mais altos tesos da bela Tijuca. Não foi bastante o refrigério da sombra, nem o gosto do espírito, para prevenir na volta a indisposição e fadiga do corpo, que vinha balançado impiedosamente num bonde da S. Cristóvão, ao chouto monótono de dois magríssimos muares. É de uma hora essa viagem; a meia luz da lamparina não permitia a leitura, nem a companhia de rudes passageiros me dava sossego para devaneios.

Resolvi não pensar, mas os ecos das festas em Buenos Aires zoinavam nos meus ouvidos. Via, àquela hora, a cidade ornamentada e brilhante, as avenidas... e, a pouco e pouco, adormeci.. Logo os espíritos brincalhões alvoroçaram para o meu cérebro.

Eu estava a bordo de um transatlântico, em demanda da barra do Rio de Janeiro. O vapor vinha cheio de passageiros, quase todos europeus, e havia ansiedade pela chegada. Ouvi exclamações de admiração ante as belezas da baía, e quando o paquete amarrou, junto ao cais, surpresa das surpresas! beleza das belezas! houve de todos os lábios, de todos os passageiros apinhados no tombadilho, uma larga e calorosa expressão de alegria e de pasmo.

Esfreguei os olhos incrédulos e fitei-os. A realidade correspondia à admiração; mas fiquei abalado e entontecido pela incerteza da cidade a que eu chegara. Era mesmo o Rio de Janeiro? Tinha embarcado cinco anos antes para a Europa, deixando aquela praça imunda que era o embarcadoiro e o desembarcadoiro de gente e de imundícies.

Agora, estava o vapor de grande calado atracado a um cais de branca alvenaria; e, ante meus olhos esbugalhados, se estendia infinita a mais bela das mais belas avenidas do mundo. Larga de cinqüenta metros, longa de milhares, atravessava, em linha reta, toda a cidade, desde o mar até às faldas da montanha da Tijuca.

Ao centro corria, entre cais, um canal, que despejava as águas no mar, em amplo seio murado; e a pouca distância se bifurcava em braços convergentes, rodeando o magnífico templo da Candelária. Ladeavam o canal, em todo o seu percurso, duas linhas de palmeiras imperiais, balouçando as palmas à brisa marinha; e paralelas, outras linhas de árvores, talvez mangueiras ou figueiras bravas, fechavam no alto as copas folhudas, formando abóbadas verdes, cuja extrema oposta se não podia avistar. O chão era de asfalto; e as casarias, de um e outro lado, eram palacetes de todos os estilos, modernos e antigos, alguns de vinte andares, outros de menor altura ou de um só andar, circundados de jardim. Quando me cansei de ouvir as mesmas exclamações de admiração dos passageiros europeus, desci ao cais e acomodei-me num carro de praça. Indicou-me o cocheiro um hotel, e partimos com esse destino. O carro deslizava sem ruído e sem balanço. Eu tinha os olhos esbugalhados, a boca aberta de espanto, e a alma atarantada de dúvidas. Palácios e palacetes se sucediam; aqui o da Imprensa; ali o da Gazeta de Notícias, mas longe os dos outros jornais; imensas casas, de fachadas soberbas e múltiplos andares; as secretarias de Estado; a Prefeitura, palácio grego, ocupando todo o espaço que antes era baldio em frente ao quartel; e carros passavam, corriam bondes e a multidão dos transeuntes circulava livremente, sob as abóbadas do arvoredo; ao longo do canal, ladeado de cais e de bancos, espaireciam os passeantes, brincavam crianças em bando à doce luz da tarde que morria. Pleno Paris! Não, melhor que Paris! Eu chegava da Europa, tinha visitado as grandes capitais e não vira cousa semelhante àquela deslumbrante avenida, em que o trabalho do homem só ajudara a obra formosa da natureza. No fundo, no extremo da imensa via real, levantava-se a montanha da Tijuca, tocada obliquamente dos raios do sol, que rolava pelas verdes encostas cascatas de luz irisada e doirada.

Ficava o hotel no sopé da montanha, e do terraço fronteiro pude recorrer com a vista toda a extensão da avenida grandiosa, que direita, igual, cheia de movimento e de vida, como estupenda artéria de uma estupenda capital, cruzava-a de extremo a extremo, ligando o mais belo arrabalde da cidade à mais bela baía do mundo. Sonho? Sim, era sonho; era brinquedo dos alegres espíritos folgazões, que andavam em troça no meu salão de visitas.

Abalou-me o corpo um solavanco brutal; não podia ser da carruagem que me levava pelo chão de asfalto, era do bonde, que descarrilava de encontro a um pedroiço. Abri os olhos; senti um ruído na cabeça: o enxame de espíritos pândegos abalava. Tudo era um sonho. Mas talvez, quem sabe? Talvez a intendência, afinal, não era tão difícil; ao menos a idéia, um projeto...

Abri um jornal que trazia. Ah! lá está um projeto apresentado à intendência. Talvez, tantos considerandos, tão extenso!... Li-os todos... Sabes o que era o projeto: propunha a mudança do nome antigo de uma rua para o de República Argentina. Grande intendência!

 (Alguns escritos, 1910)