DISCURSO DO SR. LUIZ PAULO HORTA
Este é um ano solene para a Academia Brasileira de Letras, em que ela completa 111 anos de existência ao mesmo tempo em que registramos o centenário de falecimento do nosso patrono e fundador. Por todo este ano, descrevemos círculos em torno de Machado de Assis, sem que a esfinge machadiana, como de hábito, e apesar da qualidade das palestras e debates, revelasse os seus últimos segredos. Com esse mistério ainda conviveremos, ao que tudo indica, por muitos e muitos anos.
José Barretto Filho, em sua "Introdução a Machado de Assis", publicada em 1947, me parece ter ferido uma nota justa. Ele escreve:
"O centenário de nascimento de Joaquim Maria Machado de Assis, ocorrido em 1939, foi unanimemente celebrado como um grande acontecimento nacional. Nenhum escritor reuniu entre nós um interesse tão generalizado em torno de sua vida e de sua obra. Decorridos mais de 30 anos de sua morte, esse homem que parecia distante e isolado na nossa história literária mostrou-se mais próximo de nós do que todos quantos procuraram, intencionalmente, fazer obra representativa da nossa nacionalidade. Destoante, como se pensava, pelo pensamento e pelo estilo, da nossa tradição literária, verifica-se agora que é o prolongamento de sua linha mais pura. Isento de participação ativa nos acontecimentos históricos que presenciou, querendo parecer que se colocava em face deles como um simples espectador, aparecia então, à luz daquelas comemorações centenárias, como uma força espiritual poderosa e eficaz. Que ocultas teclas de nossa sensibilidade pôde ele percutir na sua surdina? Que filões recônditos veio a descobrir na alma brasileira, para ficar assim tão entranhado no gosto comum?"
É o problema machadiano. Em que é que este grande artista nos fascina, sendo tão diferente do que imaginaríamos como um típico autor brasileiro? Somos apressados, enquanto que, em Machado, o que vemos é a lenta e metódica construção de uma vida. Estamos sujeitos, na sociedade contemporânea, a muita coisa que é vulgar, fútil, efêmera; enquanto que em Machado, o que assistimos é a uma progressiva aristocratização do espírito, um refinamento constante, sendo ele mesmo, como Goethe, uma de suas maiores obras.
Essas diferenças produzem estranhezas. Nunca faltou, desde o início, quem reagisse à presença dominadora de Machado no nosso universo cultural. E eu nem falo de um Silvio Romero, por exemplo, que não tinha grandes afinidades com Machado. Mas como explicar o caso do finíssimo Augusto Meyer, que foi cruel num ensaio publicado em 1935?
Ele escreve:
"Quase toda a obra de Machado de Assis é um pretexto para borboleteios maliciosos, digressões e parênteses felizes. Nesse sentido ele realmente se aproxima da "forma livre de um Sterne ou de um Xavier de Maistre". Mas a analogia é formal, não passa de superfície. Em Machado, a aparência de movimento, a pirueta e o malabarismo são disfarces que mal conseguem dissimular uma profunda gravidade. Podemos dizer que há nele uma letargia indefinível, a sonolência do homem trancado em si mesmo, espectador de si mesmo, incapaz de reagir contra o espetáculo da sua vontade paralisada".
Meyer cita a frase do próprio Machado, em Brás Cubas: "Grande lascivo, espera-te a voluptuosidade do nada". E compara Machado ao "homem subterrâneo" de Dostoievsky. Prossegue Meyer: "Insular-se, para ele, não significa acreditar na vida interior e nas suas virtudes contemplativas: meditação, oração, intuição do mistério individual, poesia da consciência que procura reconhecer-se. É um movimento reflexo, provocado pelo tédio de tudo, principalmente pelo ódio. Há em Machado de Assis um ódio entranhado da vida, uma incapacidade radical de aceitação ou até mesmo de compreensão, pois, para compreender, é indispensável postular antes de tudo um motivo de compreensão, e o que ele faz
é resolver todas as questões suprimindo-as".
De um homem tão gentil quanto Augusto Meyer, de um espírito tão elevado, de onde pode ter vindo tanta virulência? Creio que, antes de mais nada, da idade. Meyer tinha 33 anos quando se pôs a escrever este livro de ensaios. Era um jovem; e eu nunca achei que Machado de Assis fosse feito para jovens.
Em segundo lugar, o espírito altíssimo que foi Augusto Meyer tinha, me parece, bastante do próprio Machado, na sua reserva, no esconder o ego sob infinitas camadas de refinamento, reação dos hipersensíveis ao desafio vital. Reagindo a Machado, não estaria Meyer reagindo a si mesmo?
Vinte anos depois, ele escreve, mais pacificado: "Os anos vão passando, e Machado de Assis cresce cada vez mais. Avulta e abre em redor um vazio de solidão, como certas árvores gigantescas da selva que, fundidas de perto na mesma profusão de troncos e folhagens, contempladas a grande distância, esgalham lá no alto e dominam o recorte das grimpas mais sobranceiras". Mas ele ainda podia usar de muitas restrições no "À sombra da estante", que é de 1947, onde se socorre, inclusive, de outro crítico importante que é o escritor gaúcho Alcides Maya.
A verdade é que há tipos de autores e tipos de leitores. De um Machado de Assis não devemos esperar o contato direto com a vida que vem da tradição homérica, tão esplendidamente desenvolvida por um Tolstoi. Na nossa literatura, contato direto com a vida têm José Lins do Rego, Jorge Amado, Érico Veríssimo. São os grandes narradores, imbuídos em certos casos de uma veia épica.
Machado pertence a uma outra família: ele é um reflexivo. Pode ser posto na linha da wisdom literature de que fala Harold Bloom. Como um Cervantes, como George Eliot. Eu quase diria que ele é o nosso sábio nacional, assim como o foi Montaigne para os franceses, Goethe para os alemães, Emerson para os norte-americanos.
Paga-se um preço por isso, um certo resfriamento na recepção direta da vida. São escritores onde a consciência avulta sobre a simples representação da realidade. Penso num Henry James, quatro anos mais moço do que Machado; e entre os dois há mais do que semelhanças casuais. Também Henry James queria aplicar à sua arte um tipo de consciência para a qual nada se perdesse. Por causa disso, seus últimos livros foram considerados excessivamente cerebrais - obras sofisticadíssimas como The Ambassadors, The Wings of the Dove, The Golden Bowl. Mas isso não o impediu de escrever um livro como o Portrait of a Lady, onde não há uma linha que não pulse com o sentimento da vida. Apenas, ele não era Tolstoi, não era Turgueniev: era Henry James.
Algo mais o aproxima de Machado. Ele escreveu certa vez para um amigo: "Eu tenho a imaginação do desastre - e vejo a vida, realmente, como algo de feroz e sinistro". Podia ser o Shakespeare da "story told by an idiot, full of sound and fury". Unindo James e Machado, há o senso do desastre sempre possível, e o que se poderia chamar de "síndrome da traição". Em The Portrait of a Lady, o personagem magnífico que é Isabel Archer faz uma escolha errada, e a vida se fecha sobre ela. Ela é traída pela vida, como Bentinho também é, como Rubião.
A síndrome da traição, em Machado, poderia ter alguma dessas origens ocultas que os psicanalistas gostam de pesquisar. Seria a epilepsia? Mas pode ser algo de mais amplo e de mais profundo, algo que tenha origens imemoriais, que pertença à própria condição humana. Também aqui Barretto Filho me parece acertar no tom.
Ele escreve:
"As fontes do ressentimento machadiano não são as deficiências reais, de cor ou de condição social, que ele superou com tanta facilidade, e com o auxílio de tantas condições favoráveis. O seu ressentimento é mais profundo, é uma queixa da vida pela sua contradição intrínseca, pelo grande amor que ela desperta sem ser capaz de dar a isso uma resposta cabal". Barretto considera Machado um representante do espírito trágico, no que ele tem de mais puro e mais clássico. Para espíritos superiores, a tragédia tem um efeito purificador, catártico. É perfeitamente possível fazer um paralelo, aqui, entre Machado e o seu querido Beethoven - a única diferença sendo que Beethoven compensava as suas dores puxando para o titânico e o dionisíaco, enquanto em Machado a compensação sempre veio pelo lado do humor.
Mas também se pode buscar compensação em antigas sabedorias. Machado foi um leitor assíduo do Eclesiastes, que ocupa, na Bíblia, o lugar reservado à chamada literatura sapiencial. Pode parecer um livro muito escuro. Eu recordo os primeiros versículos, tão famosos:
"Vaidade das vaidades, diz o Eclesiastes, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Uma geração passa, outra vem; mas a terra sempre subsiste. O sol se levanta, o sol se põe. Apressa-se a voltar ao seu lugar; em seguida se levanta de novo. O vento vai em direção ao sul, vai em direção ao norte, volteia e gira nos mesmos circuitos. Todos os rios se dirigem para o mar, e o mar não transborda. Em direção ao mar, para onde correm os rios, eles continuam a correr. Todas as coisas se afadigam, mais do que se possa dizer. A vista não se farta de ver, o ouvido de ouvir. O que foi é o que será; o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se é encontrada alguma coisa da qual se diz: "Veja, isto é novo", ela já existia nos tempos passados. Não há memória do que é antigo, e nossos descendentes não deixarão memóriajunto àqueles que virão depois deles".
Isto seria um tratado do desespero, à maneira de Kierkegaard? Mas desespero num livro como a Bíblia? Um pouco adiante, outra passagem muito célebre, e o tom alivia um pouco:
Para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus.
Tempo para nascer e tempo para morrer.
Tempo para plantar e tempo para arrancar o que foi plantado.
Tempo para matar e tempo para sarar.
Tempo para demolir e tempo para construir.
Tempo para chorar e tempo para rir.
Tempo para gemer e tempo para dançar.
Tempo para atirar pedras e tempo para ajuntá-las.
Tempo para dar abraços e tempo para apartar-se.
Tempo para procurar e tempo para perder.
Tempo para guardar e tempo para jogar fora.
Tempo para rasgar e tempo para costurar.
Tempo para calar e tempo para falar.
Tempo para amar e tempo para odiar.
Tempo para a guerra e tempo para a paz.
Com um pouco de esforço, não poderiam ser passagens machadianas? Ou essa impressão vem do fato de que Machado de fato impregnou-se dessa sabedoria antiga?
O que essa sabedoria ensina não é o desgosto: é o desprendimento. Nisto se poderia aproximar o Eclesiastes da filosofia budista, tantas vezes confundida, erroneamente, com uma visão negativa da vida. Todos os sábios do mundo souberam que o desprendimento é o que dá o verdadeiro sabor à vida, afrouxando as garras do desejo.
O desprendimento de Machado de Assis, bebido em fontes como o Eclesiastes, é que pode ter sido confundido muitas vezes com desamor, e com desafeição á vida.
Escrever é um ato de amor. Um verdadeiro cético não nos legaria a obra que é hoje o cânone fundamental da literatura brasileira. E se há o Machado melancólico do Dom Casmurro e do Quincas Borba, há o Machado dos contos, o Machado inesgotável das crônicas, e o Machado final do Memorial de Ayres, que eu leio como se fosse pura música.
Machado sempre gostou de música. Em sua mocidade, quando ele era o Machadinho, cheio de vida e de entusiasmo, chegou a puxar o carro de uma cantora lírica que ele idolatrava. Mas naquele tempo, ele gostava de ópera italiana. Depois, aproximou-se de Beethoven. Se o casal de velhos, no Memorial, é a transposição do amor entre Machado e Carolina (como ele mesmo confessou a Mário de Alencar), os dois jovens que se enlaçam trazem nomes de óperas alemãs: Tristão e Fidélia. E se Tristão é a imagem do amor mais desabrido, Fidélia é o símbolo da constância, na ópera de Beethoven a que ela solicitou o nome. É a história da esposa que arrosta todos os perigos para salvar o marido na prisão. São projetos de vida; e mesmo esse Machado final, vergado sob o peso de uma dor incontornável, era capaz de ser terno, como sabemos pela maravilhosa correspondência com Joaquim Nabuco. Vindos de extremos opostos da sociedade, Machado e Nabuco encontram-se no meio do caminho, estimaram-se como irmãos, e à sua grandeza de espírito - dos dois - devemos essa obra que é a Academia Brasileira de Letras, lugar de congraçamento, de amor às letras, de dedicação à nacionalidade através da língua. Mais uma obra do laborioso Machado; também ela, uma obra de amor.
Machado foi substituído na cadeira 23 por Lafayette Rodrigues Pereira, figura notável do II Império; e é pena que o tempo escasso não nos permita ficar aqui contando histórias do Conselheiro Lafayette. Ele foi político importante, foi ministro, presidente de província, mas sua fama deriva sobretudo de dois trabalhos jurídicos notáveis: O Direito das Coisas e o Direito da Família. Lafayette também se envolveu com o mundo literário, e coube a ele (sob o pseudônimo Labieno) sair em defesa de Machado de Assis quando o mestre foi alvo de um ataque desabrido de Silvio Romero. Terminou os seus anos como um verdadeiro filósofo em sua chácara da Tijuca. Mas também podia ser sarcástico, quando necessário. Sendo ele estrábico, uma vez foi interpelado por um aluno mais afoito: "Professor, o seu estrabismo é convergente ou divergente?" Resposta de Lafayette: "É de ver burro".
Sucessor de Lafayette em 1917, Alfredo Pujol foi um brilhante jornalista e advogado, amigo dos livros, que se apresenta à nossa admiração, entre outras qualidades, por ter sido o autor de sete conferências para a Cultura Artística de São Paulo que, reunidas em livro, fornecem a primeira visão abrangente da obra de Machado, seguindo-se aos estudos parciais de um José Veríssimo, de um Araripe Júnior. Seu "Machado de Assis" continua interessante e válido, sobretudo para os anos de formação do nosso maior escritor.
Depois de Pujol, vem ao nosso encontro a figura cheia de vida de Octavio Mangabeira. Com esse homem nobre começa a dinastia baiana que durante 78 anos governou a cadeira 23 -- diga-se logo, com imenso charme e talento. Octavio foi um político às antigas, na sua dignidade, na sua honestidade, na sua eloquência. Foi ministro do Exterior de Washington Luís, entrou em choque, em seguida, com o regime getulista, e assim começaram seus períodos de prisão e de exílio. Com a redemocratização de 1945, voltou à política como primeiro presidente da UDN e, logo em seguida, como governador da Bahia. Jorge Amado, em seu discurso de posse na Academia, se emociona quando fala de Octavio, e diz: "se eu tivesse de buscar uma única imagem para definir Octavio Mangabeira, eu vos diria que ele é a Bahia. A Bahia em suas melhores e mais generosas qualidades, aquela finura de civilização que era dele e é do último homem do povo baiano. A Bahia da grande oratória e da extrema habilidade política; a Bahia da delicadeza, da gentileza, da ternura humana ..." - e assim vai Jorge Amado traçando o perfil de Octavio Mangabeira.
Mas há uma característica dele que nos interessa muito, se estamos falando dos sucessores de Machado de Assis. Ele prestou a Machado uma homenagem que eu diria comovente: em um de seus períodos de prisão, ele quis ler e reler todo o Machado, o das crônicas, o dos contos, o dos romances. Não contente com isso, propôs-se a fazer o resumo de todas as obras de Machado, das menores às mais volumosas, de modo a abrir caminho a quem desejasse uma orientação nessa vasta biblioteca. E envolveu-se de tal modo nessa tarefa que, em determinado momento, chegou a temer que a prisão terminasse antes que ele concluísse o seu trabalho franciscano (o que nos faz supor que, pelo menos, era uma prisão decente). Que homenagem maior se pode prestar a Machado? E como dizer que era contrária à vida uma obra que assim veio preencher o vazio de um confinamento forçado?
Nada mais justo que a esse grande baiano sucedesse um Jorge Amado. Com Jorge Amado, temos todos uma dívida enorme ... Primeiro, pelas histórias que ele nos contou, pondo em cena figuras que entraram para o nosso cotidiano: Tieta, Gabriela, Quincas Berro d´Água, Dona Flor e seus dois maridos... Depois porque, num país que ainda lê pouco, ele ensinou muita gente a ler, trouxe muita gente para o espaço mágico da leitura. Antônio Cândido lembrou como isso é importante para a formação de uma literatura nacional.
Como ele conseguiu? Com os seus incríveis dons de fabulação. Mas também porque encontrou uma linguagem com a qual as pessoas se identificavam facilmente - e continuam se identificando. Ao lado de Gilberto Freyre, ele pode ter resolvido aquele problema que inquietava os modernistas: como conseguir, em nome da dignidade nacional, uma linguagem que fosse mesmo nossa, que se afastasse dos cânones eruditos sem cair na pura oralidade? Mario de Andrade tentou, no Macunaíma, que ficou só como uma experiência. Jorge acertou em cheio. Ainda por esses dias eu relia o Quincas Berro d´Água e, tanto quanto, pela qualidade da história, eu me deixava levar, arrebatar, por aquele estilo caloroso, sedutor, tão completamente brasileiro ...
Jorge fez com que fosse fácil ler um romance - e, por causa disso, foi lidíssimo. Mas isso teve um outro efeito: ele passou, nos meios intelectuais, a ser tido como um autor fácil - com tudo o que esse termo pode conter de desdenhoso.
Ana Maria Machado, no magnífico estudo que é "Romântico, sedutor, anarquista", lembra um outro aspecto: Jorge fez um imenso sucesso lá fora - o primeiro autor brasileiro a ser realmente lido no exterior, a aparecer nos balcões das livrarias francesas; e nós aqui, tradicionalmente, suspeitamos de quem faz sucesso lá fora. Aconteceu com Villa-Lobos, aconteceu com Carmen Miranda, por que não aconteceria com Jorge? Se ele era lido com delícia pelos franceses, não seria porque ele escolheu mostrar, do Brasil, o que é típico, o que é exótico, superficial?
O colorido brasileiro, de fato, está presente em Jorge, de maneira feérica. Foi Glauber Rocha quem lembrou os aspectos cinematográficos desta arte. Em artigo sobre Gabriela publicado em 1960, ele faz questão de destacar que a obra de Jorge é anti-discursiva, pois apresenta largos painéis cinematográficos, desenhando um cenário particular de cada um de seus personagens. Mas esse impacto visual, feérico, não é o que acontece quando se faz a experiência da Bahia? Não é o que nós extraímos do encontro com a música e as letras de Dorival Caymmi? Em que estaria, assim, errada a apresentação de Jorge?
A verdade é que os doutos, os eruditos, também implicavam com o povaréu que vinha vindo nos romances de Jorge: a periferia, os marinheiros, as mulheres da beira do cais. Não havia nisso um toque de vulgaridade, e até de mau gosto?
Nisso, Jorge foi, mesmo, pioneiro - uma deslocação de ênfase como talvez se possa encontrar no Rio de Janeiro visto por Lima Barretto. Mas se ele faz um romance popular - e não populista - é porque ele quis pensar a partir do povo, e sabia pensar do meio do povo, no meio daquele vozerio do cais. O seu lado popular não era populista porque era autêntico. Escreve Ana Maria Machado: "O que o romance amadiano nos traz são personagens marginais, injustiçados pela sociedade, que se recusam a continuar excluídos da literatura ou vistos de cima com um olhar condescendente. Conquistam seu próprio espaço e avançam para o primeiro plano. Dominam toda a cena com suas falas que soam verdadeiras e fortes, suas ações cheias de heroísmo, sua luta para sair da condição de vítimas sociais, sua busca de liberdade e justiça, seu incontrolável erotismo. Nesse processo, são ajudados por lances do acaso, por vias que se entrecruzam com as suas, pela solidariedade e amizade dos que com eles compõem um coletivo popular".
Jorge via de perto esse povo miúdo; neste e em outros pontos, ele lembra um Dickens, que também teve uma visão social, ou o Victor Hugo dos "Miseráveis" (e, para quem gosta de coincidências, podemos lembrar que a mãe de Zélia Gattai, a notável dona Angelina, era leitora fervorosa dos Miseráveis, o que não deixou de preparar o grande encontro de que falaremos mais adiante).
Jorge enxergava tanto o povo miúdo que, aspirando à sua libertação, jogou todas as fichas, quando jovem, num projeto revolucionário. Em seu discurso de entrada na ABL, ele explica aos que o elegeram que ele foi um jovem como se deve ser, inconformado com as injustiças deste mundo. Foi rebelde na literatura, e aderiu de corpo e alma ao ideário da revolução social. Ele chegou a dizer: "Eu fui estalinista de conduta irreprochável, subchefe de seita, se não bispo, ao menos monsenhor. Descobri o erro, custou trabalho e sofrimento, deixei a missa no meio, saí de mansinho"
Claro que isso deveria influir sobre a sua primeira produção literária. É ele quem diz, num depoimento: "Na primeira parte de minha obra, escrita quando eu tinha trinta e poucos anos, a ação era sempre acompanhada de um discurso político. Eu queria convencer o leitor, e não acreditava que a ação fosse suficiente. Por isso, fazia uma espécie de discurso político ao lado. Esse discurso desapareceu, depois, da minha obra".
E um dia veio o desencanto. Em "Navegação de Cabotagem" ele conta como teve um pesadelo em seguida à descoberta de que havia tortura na Budapeste de 1951: "Com febre e frio, atravesso a primeira noite de dúvida, o coração transpassado, o estômago embrulhado, ânsias de vômito. A polícia comunista me espanca e pisoteia, obriga-me a confessar o que eu não fiz. Assim começou minha travessia do deserto".
Jorge e Zélia ficam sabendo, também, do processo sofrido, na Tchecoslováquia, pelo grande amigo Artur London. E em 1956 já não era possível duvidar, com os fatos relacionados ao XX Congresso do Partido Comunista russo. Depõe Darcy Ribeiro: "O discurso de Kruschov no XX Congresso do Partido, desmascarando Stalin como genocida, matador de milhões de pessoas, foi um soco na cara de Jorge Amado". Ele deixou o PC, e passou a manter distância de tudo o que fosse sectarismo de esquerda.
O que surpreende é que, mesmo na primeira fase da sua obra, o caldo doutrinário não apague o fogo poético de obras como Jubiabá. Mar Morto, Capitães de Areia. Neste sentido, ele entronca na vertente alencarina de que fala com eloquência em seu discurso de posse, e que eu me permito citar com uma certa liberalidade, porque aqui não é só Alencar que está em jogo.
Cito:
"A grandeza de Alencar resulta de certos valores que marcam e definem toda uma vertente da nossa ficção, assim como a grandeza de Machado é consequência de valores que caracterizam uma outra vertente do romance e do conto brasileiro. Um é a força do povo, bravia, descontrolada, enchente e enxurrada, árvore nunca podada, jequitibá gigante, floresta enredada de cipós, grávida de cores violentas, rumorosa de vozes de pássaros, espalhando-se sem fronteiras como um rio em cheia, banhada de sol e de luar, excessiva e deslumbrante. Tentando transpor para o plano literário a língua doce e musical de nossa gente, longe da gramática portuguesa e da limitação dos clássicos, numa liberdade própria das grandes massas e das nações jovens. De valores assim é feita a obra de Alencar e seus defeitos e limitações provêm da terra onde está plantada, da pujança de suas raízes e de sua condição revolucionária. Sua permanência e sua universalidade, seu tempo e seu espaço, independem dos críticos, dos filósofos, dos professores, dos estudos, dos ensaios, das palmas dos intelectuais, do elogio dos pedantes e aristocratas. Independem do papel escrito, pois os escritores dessa família de Alencar escrevem menos com tinta do que com sangue, menos com as regras d a gramática do que com o conhecimento da vida. Por isso, se sofrem o nariz torcido de certa crítica esteticista, arrastam consigo o amor do povo, e é nas mãos do povo que partem para o futuro, para serem amanhã os clássicos de seu tempo. Que importa a Alencar o persistente silêncio de nossos ensaístas e críticos, a desconfiança com que olham o mundo por ele criado, amedrontados ante as picadas por ele abertas, que importa a Alencar essa conspiração de silêncio se suas edições crescem e se multiplicam com o passar dos anos, se cada homem do povo conhece e estima seu nome, se a cada dia batizam-se dezenas de Iracemas, se os índios de seus romances viraram folclore, dança e carnaval, habitam para sempre em nossos corações? Sua imortalidade não é a das edições críticas, não é conservada nas bibliotecas. Sua imortalidade é viva, está nos trens dos subúrbios, nos alucinados lotações, nos bondes lentos, na bolsa do estudante, na noite pobre da costureirinha, no despertar do adolescente, nos milhares e milhares diariamente debruçados sobre livros seus, comovidos com a leitura. Esta é a glória que corresponde aos escritores da família de Alencar".
Eu leio com uma emoção especial essa defesa de Alencar, que é defesa do próprio Jorge Amado, porque (se me permitem a confissão) sou Alencar por parte de mãe, e primo em quarto ou quinto grau do nosso grande romancista. Mas também leio com emoção porque isso me lembra muito coisas que Villa-Lobos disse dele mesmo, quando precisou se defender da crítica "esteticista" a que se refere Jorge Amado. Jorge e Villa-Lobos são da mesma raça dos criadores telúricos, que acabam se tornando intérpretes de uma nacionalidade.
Jorge encontrou seu padrão de liberdade quando escreveu a "Gabriela" de1958. Figura de sonho e de realidade, figura feminina desenvolvendo sementes mais antigas e anunciando outras grandes mulheres da ficção amadiana. É a história de como o sírio Nacib, homem bom, fracassa na domesticação de Gabriela. Ela chegara aos seus braços por espontânea vontade, num transbordamento de paixão. Até que um dia Nacib a encontra nos braços de outro homem. Pelos padrões da época e do lugar, isto seria pretexto para um drama italiano, regado a sangue. Em vez disso, o que acontece é uma negociação, em que Gabriela recupera a sua liberdade sem com isso dizer adeus a Nacib. Solução brasileira? Anúncio do compromisso de dona Flor? Nada é ortodoxo nessa história onde o clima poético e simbólico quase que toma a frente da realidade. Nada é ortodoxo na ficção madura de Jorge Amado. Ele explica assim a sua oficina romanesca:
"O personagem atinge sempre mais além de nós, criadores. Há uma parte do seu ser que jamais se entrega, que persiste misterioso, desconhecido mesmo para o romancista. Há sempre um momento em que o personagem escapa das mãos e do comando do seu criador e vai sozinho em frente, fazendo o que bem quer e decide - seja homem, seja mulher. Aliás, para mim - ele continua - a melhor prova de que o romance se põe de pé é exatamente essa: quando o personagem torna-se independente do autor, anda com os seus próprios pés, constrói ele próprio o seu destino".
Nessa aventura da liberdade está o segredo dos grandes personagens de Jorge Amado, passando pelo incrível Quincas Berro d´Àgua, que quer morrer à sua maneira peculiar. Mas em autores como Jorge Amado, as generalizações têm uma eficácia relativa. Cabe ainda a Ana Maria Machado uma das mais belas análises de como Jorge, crescendo colmo artista e como ser humano, refina constantemente os seus processos até chegar à complexidade narrativa e temática da "Tenda dos Milagres", onde aparece o Pedro Archanjo.
Diz o próprio Jorge: "De meus livros, é o meu preferido, cuja temática mexe muito comigo. Talvez Pedro Archanjo seja, de todos os meus personagens, o mais complexo. Questões importantes são abordadas através dele: o não sectarismo, a consciência de que as idéias não devem consumir o homem. Quando lhe perguntaram - continua Jorge - como ele conseguia ser materialista e, ao mesmo tempo, exercer suas funções no candomblé, ele respondeu: meu materialismo não me limita". Frase que poderíamos aplicar ao próprio Jorge.
E surge, então, essa criação complexa, eu diria polifônica, que é o Pedro Archanjo, mulato elegante, personagem de um autor que já não está trabalhando com linhas muito nítidas. Há um primeiro narrador, que está fazendo uma pesquisa sobre a obra de Pedro Archanjo, a pedido de um professor da Universidade de Columbia, para servir de prefácio à publicação dessa obra em inglês. Só por aí já vemos a expansão do território romanesco de Jorge Amado. Há um flash back para a reconstituição da morte de Pedro Archanjo, ocorrida 25 anos antes - um Pedro Archanjo velho, pobre, cachaceiro, doente do coração. Aparecem os mais diversos depoimentos construindo uma imagem caleidoscópica do nosso herói. Ficamos sabendo dos seus muitos estudos, dos seus amores, das suas teorias que celebram a mestiçagem e a cultura mestiça, contra intelectuais da época que defendiam a eugenia (um capítulo hoje um pouco esquecido da história do Brasil). Há um conflito crescente entre as idéias de Pedro Archanjo e o que se queria fazer passar, então, por científico. Pedro não é só o nacionalista instintivo: é o estudioso que vai buscar livros que possam ajudá-lo a defender suas idéias. Mas acaba preso como desordeiro, seus livros confiscados. É todo o corte seccional de um período que mexe com Jorge Amado, e que ele dramatizou de maneira brilhante.
Há uma constante, em tudo isso, que é uma fidelidade à cultura popular. Eu diria que Jorge Amado consegue fazer, na literatura, o que Villa-Lobos fez na música: derrubar as barreiras entre o que vem das raízes e o que pertence a uma vivência culta. O que foi o folclore para Villa-Lobos foi, para Jorge Amado, aquele universo baiano que ele conhecia em todas as suas dimensões, com os seus tipos característicos, sua força, suas paixões, seus sofrimentos. E assim como Villa-Lobos usou o folclore, usou as nossas tradições melódicas, Jorge Amado utilizou, sem a menor cerimônia, ingredientes da arte popular como a literatura de cordel e o estilo dos folhetins. Como se vê até em cabeças de capítulo como este, de Gabriela:
"Aventuras e desventuras de um bom brasileiro (nascido na Síria) na cidade de Ilhéus, em 1925, quando florescia o cacau e imperava o progresso. Com amores, assassinatos, banquetes, presépios, histórias variadas para todos os gostos ..."
Ou este outro, de Tieta:
"Morte e ressurreição de Tieta, a filha pródiga, Contendo introdução e palpites do autor, inesquecíveis diálogos, finos detalhes psicológicos, pinceladas de paisagens, segredos, além da apresentação de algumas figuras que desempenharão destacado papel nos acontecimentos passados e futuros narrados neste apaixonante folhetim ..."
É a literatura popular, nesse tom melodramático que hoje identificamos nas novelas. Podia ser só um melodrama; mas nas mãos de Jorge Amado vira uma outra coisa, assim como, nas mãos de Villa-Lobos, um simples tema nordestino pode ser o alicerce de uma das Bachianas Brasileiras.
Faltou falar de Zélia. Mesmo se ela não fosse a sexta ocupante da cadeira 23, seria difícil, ou impossível, falar de Jorge sem falar de Zélia. É uma das características da cadeira 23 que ela tenha produzido não só personalidades marcantes, mas também casais marcantes. Jorge e Zélia fazem pendant como Machado e Carolina. Dois exemplos desse amor que move o sol e as estrelas - para citar o Dante tão apreciado pela mãe de Zélia.
Zelia Gattai aparece na vida de Jorge bem antes del mezzo del camin, como a companheira perfeita. Grandes criadores às vezes têm esta sorte. Aconteceu com Villa-Lobos, que teve duas extraordinárias esposas. Zélia foi o sustentáculo de Jorge quando o casal teve de largar-se pelas estradas do mundo, ao sopro amargo do exílio. Era dela a reserva inesgotável de otimismo. Ela foi a mulher forte de que fala a Biblia, ao longo de mais de 50 anos. Depois, superadas as dificuldades, ela continuou a criar em volta dela aquele lar com que sonhamos todos. E isso era uma coisa tão rica que eles - Jorge e Zélia - tiveram a bondade, a generosidade de partilhá-lo com os amigos. Sabem disso os que os visitaram em Paris; e, mais ainda, os que participaram da vida colorida na residência do Rio Vermelho. Eram festas do coração, que se prolongaram por muitos e muitos anos.
Falando de Zélia, essa palavra me vem à mente: coração. Quando eu era um menino de escola, circulava nos ambientes familiares um livro que se chamava Coração - o extraordinário Cuore, de Edmundo de Amicis, aqui publicado na digna tradução de João Ribeiro. Era a história de uma escola italiana, e do menino que ali fazia o seu aprendizado de vida. O menino contava em casa o que vivenciara na escola. O pai, modelar, comentava os acontecimentos, em cartas afetuosas. Era a educação do coração.
Onde anda ela, nos tempos modernos? A vida ficou rápida demais. A televisão criou uma realidade paralela. Os pais nem sempre têm tempo ou paciência para conversar com os filhos - e os filhos nem sempre estão dispostos a conversar com os pais.
Graças a Deus, ainda temos afetividade na nossa vida brasileira. Há pouco tempo, estive com uma senhora brasileira que passara 50 anos em Paris sem voltar ao Brasil - filha do insigne musicólogo Luiz Heitor Correa de Azevedo. Encontrei-a, achei-a simpaticíssima, e perguntei-lhe o que lhe chamara a atenção ao reencontrar o Brasil depois de tanto tempo. E ela me disse, com um meio sorriso: "Vocês aqui têm coração". E eu fiquei tocado pela resposta, porque nós somos sentimentais.
Mas coração não é sinônimo de sentimentalismo. É o mais alto órgão do conhecimento, como gostam de explicar algumas doutrinas orientais. É uma intuição que vai muito além da razão; que é capaz, por exemplo, de perceber o outro, a fantástica realidade do outro, e, em condições favoráveis, estabelecer um verdadeiro encontro de pessoas.
Quem falou disso, no Brasil, com uma profundidade e uma intensidade peculiares, foi o nosso grande filósofo Farias Brito, cearense, hoje esquecido. Ele gostava de lembrar, já no começo do século XX, que nós éramos diferentes dos norte-americanos, e não precisávamos nos envergonhar disso. Ele mostrava a diferença entre o pragmatismo anglo saxão e a nossa maneira de ser, mais lírica, mais contemplativa, menos comprometida com a embriaguês da ação.
Naquela época, décadas atrás, os Estados Unidos já eram umapotência, e é óbvio que o pragmatismo tem aspectos muito interessantes, é até necessário. Mas não devíamos perder de vista que isso não é tudo na vida; talvez não seja nem o principal. Porque a vida humana não se resume numa corrida em direção ao sucesso; e quando nos atiramos nessa corrida, o vizinho do lado passa a ser um obstáculo, alguém a ser derrotado, e não um ser humano. Por tudo isso, devemos aplaudir o professor Cândido Mendes quando ele trabalha denodadamente a sua Academia da Latinidade; a nossa tradição que vem de Roma, e que é uma outra maneira, original e importante, de estar no mundo.
Tudo isso eu aprendi, ou reaprendi, lendo os livros de Zélia - começando com o primeiro, o admirável Anarquistas, graças a Deus. Não por acaso, esse livro esgotou uma edição após a outra. Ele nos mostra de dentro essa grande realidade que é a imigração italiana, um dos fatores de transformação do Brasil moderno. Foi um influxo de vida, de animação, de colorido - e o Brasil inteiro sentiu esse sangue novo. Na música, ele se traduziu em alguns dos pilares do nosso modernismo: Guarnieri e Mignone em São Paulo, Gnattali no Rio Grande.
Contando a história da sua família, Zélia tem o feeling da vida - num toque tão leve, tão autêntico, que me faz lembrar esse outro clássico que é o Minha vida de menina, de Helena Morley. Uma e outra tinham a percepção desse mistério em que estamos mergulhados; que pode às vezes ser sofrido, e até trágico. Mas, lá no fundo, brilha sempre a esperança, e a vida está sempre disposta a começar de novo.
Esta é a literatura de Zélia, que depois se desdobra numa grande história de amor. Seus livros formam o romance da vida que ela partilhou com Jorge Amado, e que, com a generosidade que os caracterizava, eles abrem também para nós. Não há quem não tenha ficado mais rico com essa convivência.
Srs. Acadêmicos, sras. Acadêmicas:
Permiti-me algumas palavras sobre a indigna criatura a quem concedestes o governo provisório da cadeira 23. Nasci músico, tenho vivido na música, na música pretendo morrer. Que mistério é esse que nos envolve, e nos abre as portas da transcendência? Beethoven disse uma vez que a música é uma revelação mais alta do que toda filosofia. Podeis concordar ou não com essa frase; mas é fato que a magia da música rompe as fronteiras mais recônditas, talvez porque ela seja mesmo um idioma universal. Veja-se, em anos recentes, como a música ocidental penetrou na Ásia, sobretudo no Japão, onde compositores nossos como Pixinguinha e Nazareth são imensamente populares!
A riqueza da musicalidade brasileira é extraordinária, vindo lá das cabeceiras da nacionalidade, viajando do povo até a sua expressão mais culta. E neste sentido eu quero prestar aqui minha homenagem ao grande compositor cujos 50 anos de morte celebraremos em 2009: Heitor Villa-Lobos.
Foi com Villa-Lobos que veio abaixo o Muro de Berlim que separava artificialmente os gêneros. Foi em Villa-Lobos que as raízes musicais brasileiras completaram a sua migração até os tipos mais sofisticados de produção artística - bastando citar como exemplo a série colossal dos Choros.
E Villa-Lobos foi um dos muitos compositores brasileiros em quem a música deu a mão ao texto literário: temos, de sua autoria, o poderoso Poema de Itabira, sobre texto de Carlos Drummond de Andrade. Temos Claudio Santoro fazendo as suas Canções de Amor sobre poemas de Vinicius de Moraes; temos Camargo Guarnieri musicando Manuel Bandeira, Cecília Meireles; temos Tom Jobim na sua fecunda parceria com Vinicius de Moraes; temos Chico Buarque dialogando com ele mesmo. E aqui nesta sala estão alguns dos continuadores dessa lição de Villa-Lobos: lição de vida e de nacionalidade.
Ao oferecer-me a honra de vosso convívio, satisfizestes um desejo de Manuel Bandeira expresso em crônica de 1959. Grande amigo da música, Bandeira dizia, então, que já estava na hora de termos, na Academia, um representante da música, e ele citava os importantes críticos musicais daquela época: um Ayres de Andrade, um Andrade Muricy, que foi grande crítico de música e de literatura, autor de um monumental Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro. Que eu tenha sido o primeiro a ser chamado para representar a música na vossa egrégia assembléia é fato que me enche de alegria e de um sentimento de responsabilidade quase esmagador.
Mas eu queria falar também de uma outra paixão da minha vida, que tem garantido até hoje a minha subsistência. Nesse terreno, eu não inovo em nada, porque esta casa tem sido pródiga em bons jornalistas. Mas, a cada geração, o jornalismo é chamado a renovar-se, a responder às necessidades da hora.
Ele nem sempre é estimado pelos poderosos, e eu diria mesmo que há uma superstição que fala da mídia como de uma coisa assustadora. Mas acho que é função dos jornalistas ser, mesmo, aquela mosca varejeira, incômoda, que Sócrates queria ser para os seus conterrâneos de Atenas. De um modo geral, os governantes não gostam de críticas. Muitos anos atrás, a condessa Pereira Carneiro, diretora do Jornal do Brasil, encontrou-se, entre outros diretores de jornal, com o presidente Costa e Silva, e solicitada a prestar a sua colaboração aos assuntos nacionais (é bom lembrar que isso foi antes do AI-5), disse ao presidente, para ser gentil, que prometia uma “crítica construtiva”. Ao que Costa e Silva respondeu, naquele seu jeito meio folclórico: “Crítica construtiva não, eu quero é elogio, mesmo”.
É o que os governantes desejam, com as boas exceções à regra. É o que o presidente Lula tem cobrado da imprensa. A isso temos de responder que jornalismo a favor dificilmente é bom jornalismo. E basta comparar, olhando o mapa-mundi, os países que têm imprensa livre com os que não têm para perceber, imediatamente, quem está em situação mais favorável.
Em 45 anos de jornal, acho que conheci todos os aspectos da profissão, e aprendi a amar esse trabalho tantas vezes áspero, onde pode haver deslizes, claro, mas onde somos chamados permanentemente a um exercício de objetividade. Os filósofos discutem sobre o que é a verdade. No jornalismo, temos de decidir sobre isso todos os dias, se queremos prestar um bom serviço, se queremos ser úteis à coletividade. E creio que, de um modo geral, não temos fracassado nesse esforço: não me consta que a imprensa brasileira tenha do que se envergonhar, se comparada ao que se faz nos centros mais desenvolvidos.
Eu queria terminar essas palavras, que já vão longe, com três homenagens. A primeira delas, ao meu tio bisavô Afonso Celso, filho do visconde de Ouro Preto, que me antecedeu nesta casa, e que foi um homem profundamente dedicado às coisas brasileiras. Ele costuma ser lembrado por um pequeno livro, “Por que me ufano do meu país”, e como o brasileiro é irônico e desconfiado, Afonso Celso é acusado, às vezes, de ter sido muito otimista quanto às nossas possibilidades. É uma discussão em aberto; mas eu partilho com ele o amor ao Brasil que ali se reflete. Pertencemos, ele e eu, ao time de Gilberto Amado, que dizia, com a sua ênfase característica: “Quem não gosta do Brasil não me interessa”.
Queria também prestar uma homenagem ao saudoso Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação do Globo e depois da TV Globo, que me abriu novas perspectivas num momento em que eu hesitava quanto aos meus rumos profissionais. E, finalmente, deixo aqui minhas homenagens ao meu mestre José Barretto Filho, cujo centenário de nascimento comemoramos neste ano da Graça de 2008, e em quem eu encontrei, na bela expressão de Raíssa Maritain, a alegria da inteligência.