DISCURSO DO SR. LUÍS CARLOS
AO PENETRAR este recinto, onde tanto me conforta o agasalho da vossa generosidade e tanto me glorifica o esplendor do vosso espírito, devo, depois de vos agradecer, desvanecidamente, cantar, numa evocação da beleza eterna, dois nomes, que, para logo, neste mister, desabrocharam, naturalmente, do hastil da minha pena: Academus e Platão.
Ao primeiro, maior glória não coube do que a de haver, na presciência dos videntes, criado o meio peculiar à fecundação da Academia; e esta glória foi bastante para só de si lhe transportar o nome, numa projeção histórica através dos séculos.
Os filósofos da Antiguidade procuravam os jardins de Academus para pensar, como que reconhecendo, na intimidade das árvores, cujo sofrimento à força de silêncios floresce e frutifica, o estado de graça da meditação.
Não tardou que lhes surgisse, para confirmar a predestinação de Academus, a figura apostólica de Platão, de cujo verbo evangelizador, embebido profundamente do iluminismo de Pitágoras e da ética de Sócrates, iria amanhecer por sobre o mundo a verdadeira sabedoria humana.
E da palavra maravilhosa do divino Mestre, pai do idealismo, lançada entre tais discípulos, nasceu a Academia.
Originária de um jardim, a sua finalidade própria era florescer.
Assim o impunha a lógica das cousas. Assim o foi.
Depois de uma existência plurissecular, a Academia de Atenas sobreviveu na grande Escola de Alexandria.
Em Florença, foi instituída, pelos Médicis, a Academia que recebeu o nome do Mestre.
Ainda na Itália, se multiplicaram as Academias, todas obedecendo ao mesmo critério construtivo, talvez um tanto desfigurado, por algumas, na intenção irônica de seus fundadores, que procuravam impressionar favoravelmente o povo, desafiando a maledicência.
Apareceram, assim, dezenas de agremiações intelectuais, como os Intronati, em Siena; a Academia della Crusca, em Florença, tão séria que levou 40 anos a construir o seu vocabulário; os Umoristi, os Lincei e os Fantastici, em Roma; os Oziosi, em Bolonha; os Olimpici, em Vicenza; os Invaghiti, em Mântua, etc.
E, ainda, no Diálogo de Mascurat, de Naudé, se encontra vasta relação de instituições congêneres, ao todo dezoito, que não nomeio, aqui, para evitar o vosso enfado.
O espírito acadêmico era, como se depreende, um sopro criador, por toda parte onde o pensamento humano, então, se iluminava.
E não foi sem uma afinidade oculta dos destinos que, das bodas de Lorenzo Mancini, gentil-homem romano, nasceu a Academia, a princípio, dos Belli humori, e, depois, dos Humoristas, já referida. Tinha, por símbolo, uma nuvem, que, formada de exalações do mar, as mais amargas, volvia à terra transfigurada em chuva suavíssima. Foram sua divisa as palavras de Lucrécio: Redit agmine dulci.
É mister não esquecer, ainda, a Academia dos Silenciosos, tão remota na história da Pérsia, que tomou uma expressão esfumada de lenda.
Embora conhecido, é sempre belo repetir o episódio que a celebrizou:
A um candidato, que lhe bateu às portas, mandaram os acadêmicos um copo cheio d’água, como símbolo de integração, dando-lhe de ver que não havia lá lugar para ele.
À silenciosa advertência respondeu o candidato, servindo-se de outra imagem silenciosa e mais poética. Pousou uma pétala de rosa na superfície da água, que não transbordou. E, destarte, imponderalizado nessa pétala, cuja flutuação não alterou o estado de equilíbrio do volume da água, estava ele, à força de silêncio, logicamente admitido à Academia.
Foi por 1629 que, em casa de Conrart, em Paris, se originou, de uma habitual reunião hebdomadária entre os mais ilustres homens de letras do momento, a atual Académie Française, que, somente cerca de seis anos após, em 1635, ficava oficialmente instituída, por édito real de Luís XIII e sob o patrocínio do cardeal Richelieu.
Chamada, a princípio, por alguns, Academia dos Belos Espíritos; por outros, Academia da Eloqüência, e, ainda, por vários, Academia Eminente, em alusão à qualidade do cardeal seu protetor, nenhum desses títulos logrou longevidade e ela ficou sendo, até hoje, simplesmente, Académie Française, dentro dessa fórmula singela, que, antes, lhe condensa a energia, ou, conforme um verso imperecível do nosso grande Bilac:
A força e a graça na simplicidade.
Ainda em Paris, se funda a Academia dos Goncourts, em atitude reacionária contra o critério chamado dos – expoentes – em uso, às vezes, na Academia Francesa. Desse embate, porém, – não fosse ele um choque de idéias – só resultou mais luz para o ambiente intelectual, pois que as duas Academias, sem prejuízo algum recíproco, florescem, cada vez mais. Remontando a época muito mais afastada, é mister, ainda, para citar uma das mais características, aludir à Academia Palatina, que tanto influiu, intelectualmente, no reinado de Carlos Magno. É preciso referir também a Academia dos Árcades, fundada, em 1690, em Roma, para dignificar o estudo da poesia.
Em nosso grande país, onde as graças virginais da terra tão bem se transubstanciam na inteligência dos homens e nas possibilidades de suas realizações, o espírito acadêmico, apesar da nossa juventude internacional, já constitui tradição.
Na primeira metade do século XVIII, cuja esterilidade literária parecia ocultar a formação de forças latentes, que deviam mais tarde desabrochar na plenitude de sua fulguração, apareceram, entretanto, as Academias: dos Esquecidos e dos Ressuscitados, ou dos Renascidos, na Bahia, a dos Felizes e dos Escolhidos, no Rio de Janeiro, e a Arcádia Ultramarina, em Minas Gerais.
Quase todos os Estados do Brasil possuem a sua Academia de Letras.
Estará em decadência o academismo, apesar das diatribes, que o agridem, periodicamente?
Parece-me que não, principalmente, de certo tempo a esta parte.
Temos, hoje, mercê da atitude sempre generosa do espírito francês, em se tratando de cousas da inteligência, atitude tão bem interpretada, no assunto, pela fidalguia mental do Embaixador Conty; temos, hoje, doada aos nossos jogos florais, uma instalação mais luxuosa do que a da própria Academia Francesa.
Ademais, constantemente, esvoaça pelos meus ouvidos o projeto de uma nova Academia.
E, ainda, os últimos pleitos acadêmicos se revestiram de expressão renhida, apresentando sempre grande cópia de candidatos.
Que quer dizer tudo isso?
Decadência é que não pode ser.
Não. Apesar do esforço de renovação, aliás, muito louvável e até, no caso, característico e indispensável, por isso que a arte é a primavera do espírito e a primavera é sempre renovação; apesar desse esforço lógico, que se tem revelado, entretanto, antes iconoclasta do que reformador, pois que as reformas não podem prescindir do estado de imanência de certas razões de origem; apesar desse movimento de idéias, que todos nós estamos testemunhando, talvez mais acentuadamente no Brasil do que nos demais países de grande cultura, o espírito clássico, que é o princípio da ordem no assunto, continua defendido irredutivelmente, dentro da sua serenidade hierática, pelos valores da inteligência, que definem a probidade mental do país.
Quando digo clássico, não quero dizer quinhentismo, Sá de Miranda, Arrais, etc. Tal significaria, hoje, deformação, estagnação.
Sou, por força, amigo da evolução, que é a lei da vida, mas da evolução, no sentido exato do vocábulo, pressupondo o progresso.
Quando digo clássico, quero dizer: conforme a ordem estabelecida, que vai, naturalmente, variando com as épocas, mas sempre fiel a um cânon.
A Academia Brasileira de Letras nunca me pareceu tão serena, como agora, na sua estabilidade, mercê do carinho ilustre da quase totalidade de seus membros e sob os auspícios da sua insigne Diretoria atual, onde avulta o nome glorioso de Coelho Neto. Sempre que investem contra ela, ocorrem-me as palavras de Vargas Vila, panfletário terrível, inimigo, aliás, do academismo, iconoclasta da moral social, condor do orgulho humano, que me respondeu, quando eu me referia com espanto aos adversários da sua inquestionável genialidade literária:
“Sim, eles me agridem, mas com as estrelas, que me arrancam do diadema.”
A beleza da imagem absolve o desabrimento da expressão.
Assim me parece o caso da Academia.
A quantos tenho ouvido convícios e doestos contra ela, os quais, pouco depois, se transfiguram em sorrisos de solicitação!
Não haja dúvida sobre o seu grande prestígio na sociedade.
Talvez até a sua vitalidade se retempere no entrechoque da luta, como a igreja católica, nau de Jesus Cristo, que, flutuando sobre o oceano das lágrimas humanas, às vezes, inturgescidas e retorsas no ar rebentando tempestades, lá vai, serenamente, incólume, através das eras, iluminando e perfumando de angelitude as solipões profundíssimas da vida.
Templo, igualmente, obedecendo, noutra ordem de condições, ao princípio teológico, a Academia é o recinto sagrado, onde venho, hoje, como viestes, ontem, naturalmente com mais brilho do que eu, mas não com mais íntimo ardor, professar a mesma fé nos destinos da nossa mentalidade, a serviço do Brasil imenso e belo, como o fizeram o fenômeno cósmico e o heroísmo andante dos nossos antepassados.
* * *
Sinto flutuar, em torno de mim, neste ambiente, uma sombra vertiginosa, que não sei bem se me está deitando o fluido espiritual de uma bênção, ou se me está advertindo da minha atual responsabilidade.
É uma projeção do astral, esfumando o vulto egrégio de João Francisco Lisboa.
Natural do Maranhão, ninho de condores, deu-lhe, para logo, o berço as rêmiges para a condição altivolante.
Engenho privilegiado de jornalista e tribuno, os seus Jornais de Timon e as suas orações parlamentares, que arrebatavam o auditório, pela nobreza da linguagem, pelo surto das idéias e pelo acendrado patriotismo, revelado a vida inteira, são de si bastos para perpetuar-lhe o nome na história da literatura brasileira.
Fundou e dirigiu o Brasileiro, o Farol Maranhense e o Eco do Norte, periódicos que lhe registraram artigos verdadeiramente notáveis, pelo sabor analítico sobre assuntos de alta monta, como os trabalhos da assembléia geral legislativa, a liberdade da imprensa e os partidos políticos do Brasil.
Para que bem se possa ajuizar do seu grande merecimento, basta ouvir o conceito que dele formava o seu ilustre adversário no jornalismo – Francisco Sotero dos Reis:
Entre todos esses vultos de talentos superiores que colocamos em lugar próprio nesta espécie de galeria jornalística, o Sr. João Francisco Lisboa, que à força e lucidez de pensamento reúne em subido grau o vigor, a majestade e o colorido da expressão, encarnando as suas concepções sob as formas as mais apropriadas, vestindo-as dos trajes os mais adequados, ornando-as com os matizes os mais delicados, imprimindo-lhe os ademanes os mais expressivos, e animando-as para assim dizer com os traços de sua pena, parece-nos ser o mais preeminente e grandioso vulto, que se apresenta aos olhos do observador.
O seu talento, equilibrado por uma notável expressão de probidade, posto a serviço da política, irradiou sentenças de profundo humanismo e desvelado amor pela justiça.
São dignas de transcrição as suas admiráveis palavras, a respeito da Sabinada, episódio histórico, que bem conheceis:
Recusamos tomar parte nos regozijos feitos por ocasião de uma desgraçada guerra, e ainda hoje nos honramos de não termos querido dançar ao clarão de um incêndio, sobre os cadáveres de milhares de cidadãos, ao som dos seus gemidos – cidadãos dignos de lástima, quer criminosos, quer inocentes. Era mui cabido um ofício de finados, e em todo o caso as tachas de sangue que deixam os triunfos obtidos sobre os próprios concidadãos devem delir-se com lágrimas e não com o vinho dos banquetes.
É um ferro em brasa aplicado à consciência pública, acendendo ao derredor os clarões dramáticos da guerra fratricida.
O seu espírito, pela multiplicidade das manifestações, era bem um poliedro de cristal: no jornalismo como na tribuna, na jurisprudência como no parlamento, levava sempre as lampas aos seus adversários, ou por vigor de dialética ou no esgrimir motejos e remoques, que os emudeciam pela irrisão.
Reduzido à pobreza, naturalmente pela sua intransigência de caráter, abandonou a política, para dedicar-se, exclusivamente, à literatura e à ciência do direito.
A breve trecho, a sua banca de advogado era uma das mais florescentes do Estado e dava-lhe o necessário para viver o resto da existência, folgadamente, sem que daí adviessem quaisquer suspeitas contra a sua honradez, que continuou ilibada a vida inteira.
A página noturna da nossa história não podia passar despercebida aos olhos do nosso eminente patrício, que a constelou de lágrimas e pensamentos – exalações irmãs da fronte humana; umas destinadas a rolar para embeber a Terra, outras a subir pelo Espaço para indagar do vago a causa imanente do sofrimento universal.
Não lhe podia passar despercebido o borrão de treva com que o destino maculou a história do Brasil: a escravatura.
Entrou de escrever uma obra sobre o assunto. Mal, porém, terminara os primeiros capítulos, surge laureada pela opinião pública a Cabana do Pai Tomás, com vários pontos de contacto idealista e diversos casos de similitude com o seu pensamento.
A sensibilidade da sua estrutura moral não lhe permitiu o prosseguimento da obra, que seria, a julgar pelo início, de molde a incorporar-se com relevo notório à bibliografia do abolicionismo.
As cousas públicas absorviam, profundamente, a sua atenção; e foi inspirado pela influência que exercera em França, durante o período tumultuário da Fronde, a Sátira Menipéia, que deliberou publicar folhetins mensais de análise crítica sobre o movimento irregular da “roda administrativa”. Assim nasceu, em 1852, o Jornal de Timon, cujo primeiro número era de 100 páginas e foi seguido de outros até ao duodécimo, já publicado, em Lisboa, em 1858.
Os quatro primeiros números do Jornal de Timon formam o primeiro volume da segunda edição de suas obras, que é a mais conhecida.
Aí detém-se o grande estilista a estudar os costumes políticos da sua terra natal, em confronto histórico, sob o ponto de vista eleitoral, com a Antiguidade, a Idade Média e os tempos modernos.
São telas admiráveis, onde o autor, numa eloqüência de estilo dificilmente comparável naqueles tempos, alia o vigor expressional de Rubens, no colorido, ao visualismo terebrante de Molière, na observação risível dos homens e das cousas.
O segundo volume analisa, a princípio – e com que graça e critério! – os trabalhos publicados sobre a vida da província; versa, depois, o descobrimento da América e as tentativas para explorar e colonizar o Maranhão; trata, a seguir, da invasão francesa e da holandesa, realçando a vitória das armas portuguesas, em ambas; estuda, em cotejo, as duas invasões, manifestando-se favorável à francesa, cuja tendência era humanitária e civilizadora, ao passo que a holandesa era mercantil e desrespeitosa aos costumes e religião dos colonos; não lamenta, entretanto, que tenhamos descendido dos portugueses; ao revés, dedica-lhes estas expressivas palavras: “os portugueses, de quem derivamos a origem, nação pequena e encantoada nos extremos confins ocidentais do Velho Mundo, podem com razão ufanar-se de ter fundado no novo, em um país ou deserto, ou infestado de hordas ferocíssimas, um império tão vasto como compacto, o segundo por ventura deste continente, onde somente aos Estados Unidos cede a primazia”; faz sentir, em seguida, a vantagem que nisso os portugueses levaram aos espanhóis, cujos recursos eram maiores e que “encontrando civilização adiantada no México e no Peru deixaram, todavia, resultados comparativamente inferiores”; estuda, depois, costumes e usos dos aborígines e termina analisando os atos da Companhia de Jesus.
No terceiro volume, onde a expressão lhe aparece mais trabalhada, continua a investigar a história do Maranhão e o encerra com a narrativa tocante da revolta de Manuel Beckman e outros episódios relativos à administração da Colônia.
Os dois volumes da sua alentada e brilhante obra literária trazem grande cópia de notas e documentos raros.
A sua melhor produção: A Vida do Padre Antonio Vieira esteve fadada ao mesmo destino do livro, apenas iniciado, sobre a escravatura. Depois de sua morte, encontraram-na num maço de manuscritos, cujo invólucro assim dizia: “Estes papéis devem ser queimados, sem serem lidos, quando eu o determinar.” Tratava-se, entretanto, do melhor trabalho até hoje conhecido, em Portugal e no Brasil, sobre a existência do grande pregador missionário.
Era esse historiador notável, esse estilista finíssimo, cuja obra se incorporou, definitivamente, ao patrimônio mental do país, quem produzia estas linhas, em resposta a um amigo que o acoroçoava a escrever a história do Maranhão: “Como não tenho fé robusta no meu aliás prodigioso talento, nunca fico satisfeito do que produzo e escrevo.”
Apesar disso, que é qualidade, aliás, própria dos grandes espíritos, modéstia – “sombra do valor”, como lhe chamou alguém, o eminente publicista, orador, político, historiógrafo, filósofo, biógrafo e jurisconsulto mereceu fé, por vezes elevada ao fanatismo, a quantos se manifestaram, publicamente, sobre o seu talento; e entre estes podem contar-se: Francisco Otaviano de Almeida Rosa, Antônio Henriques Leal, Domingos Gonçalves de Magalhães, Joaquim Manuel de Macedo e Gonçalves Dias.
São ainda de sua lavra diversos folhetins e outros trabalhos literários, em torno de cujo merecimento não seria justo fazer silêncio, neste, aliás, simples esboço biográfico de tão brilhante personalidade. Estão nesse caso os folhetins: A Festa de N. S. dos Remédios; A Festa dos Mortos ou a Procissão dos Ossos; Teatro São Luiz; o discurso sobre a anistia aos pernambucanos revoltosos; o artigo político A Questão do Prata e a Biografia de Manuel Odorico Mendes.
* * *
A aparição, porém, de outros vultos notáveis, que me precederam nesta honrosa investidura, aos quais devo, igualmente, trazer uma coroa votiva, não permite, sem ofender a vossa paciência em me ouvir, maior desenvolvimento ao presente estudo.
Ao grande estilista brasileiro, que foi João Francisco Lisboa, adotou José Veríssimo por patrono da sua Cadeira nesta Academia. Maior elogio não se lhe poderia fazer.
Quem conhece as obras do colendo crítico nacional e, mais do que a elas, conheceu o seu temperamento pessoal de uma sinceridade inflexível, que se não designava de ir até à rispidez, quando preciso fosse, em prol da beleza; propugnador intemerato do classismo, que, em matéria de arte, exaltava, como os cavaleiros andantes, a noção da beleza a um grau quase desconhecido, pode bem aquilatar do mérito daquele que lhe pareceu digno de assumir o padroado mental da sua Cadeira na Academia.
José Veríssimo infundia-me terror, quando comecei de publicar os meus primeiros versos.
De uma feita, seu companheiro de viagem à maravilhosa gruta de Maquiné, primeira vez em que me sentia ao seu contacto social, passou por nós, no trato agreste, que medeia entre a gruta e a estação de Cordisburgo, um cansado carro de bois, cujo gemido, cada vez mais lancinante, se perdia, ao longe, como se fosse o ai de desolação daquelas solidões profundas.
Ocorreu-me, de golpe, o magnífico verso de Mestre Alberto de Oliveira:
Quanto mais peso tem mais alto canta
e José Veríssimo, por observar talvez a minha emoção, fitou os olhos no rústico veículo e disse-me, apontando-o:
“Depois do fogo a maior invenção do homem é a roda.”
Não sei se pela beleza da expressão, se pela simpatia, que me inspirou aquele elogio, em tom profético, feito por um Mestre, em tão longínquos rincões, pacificados por uma profunda nostalgia bíblica; elogio à roda, que era a condição material da minha função pública de engenheiro ferroviário, o certo é que se me desvaneceu todo o terror que o Mestre me incutia.
E daí por diante fiquei sendo seu ledor assíduo, e seu admirador estrênuo, pois que, sem dúvida, a par de suas brilhantes qualidades de cronista e historiador, forma ele na escassíssima falange dos críticos de grande notoriedade do país, ao lado de Araripe Júnior, Sílvio Romero, João Ribeiro – valores culminantes da erudição brasileira – e de quem, pelo seu talento, pela sua cultura, pela sua probidade mental elevada até aos desassombro, muito me desvanece com receber-me, hoje, nesta Academia: Osório Duque-Estrada.
A José Veríssimo, como que exprimindo os desígnios ocultos que formam a lógica dos acontecimentos, sucedeu, aqui, um grande estadista, que vinha com a majestade expressional da sua figura sancionar, publicamente, os méritos do seu antecessor.
Era o Estado que trazia o seu beneplácito à literatura.
Mas não se diga que o Barão Homem de Melo foi, apenas, o preclaro homem de governo, que todos vós conheceis. Historiador e geógrafo entre os que mais o foram em nosso país, seu nome, como o rio, que, de tanto procurar o mar, se integra nele, tanto ilustrou o registro cronológico dos nossos homens e cousas, em linguagem tão tersa e em conceitos tão elevados, que de historiador passou à História.
Será preciso dizer mais?
Não, sobre ele, mas sobre Alberto Faria, que lhe sucedeu e me precede na Cadeira João Francisco Lisboa.
* * *
Ao grande poeta dos Símbolos e Contemporâneas, Augusto de Lima, cujo estro sempre me dá o sabor de uma vertigem cósmica, Mestre da lírica nacional, único até hoje que soube tirar o efeito maravilhoso de correlação entre a ciência e a poesia, devo o conhecimento pessoal de Alberto Faria.
Discutiam os dois, por essa ocasião, sobre o transunto em português de um remotíssimo original latino; e eu pude observar a erudição com que ambos versavam o assunto.
Alberto Faria afigura-se-me um bandeirante da linguagem, capaz dos maiores heroísmos em holocausto ao seu ideal.
Aérides e Acendalhas, obras de sua autoria, lançadas mais para os estudiosos da língua e dos costumes brasileiros, apreendidos nas fontes virginais da sua formação e desenvolvidos até aos nossos dias, através de farta e erudita documentação, põem de manifesto um grande labor minaz de investida subterrânea, no anseio terebrante de atingir aos penetrais, onde se ocultam os tesouros maravilhosos. E o abnegado bandeirante volta, de cada feita, banhado de sol, erguendo no ar, vitoriosamente, as gemas rutilantes da sua intrépida conquista. Toda a sua obra literária tange, a cada passo, o folclore, cuja influência é fundamental na formação de uma literatura. O folclore é a própria alma do povo, cantando, ingenuamente, as suas mágoas. Parece que há nele a confidência das origens, evaporando um perfume de virgindade. Murmuram nele as fontes líricas da raça.
Relicário das lendas e cantigas, que embalaram a infância das nações, ele merece a todos o carinho, que dispensamos às crianças, vendo e sentindo nelas florescer, em graça e inocência, todas as fatalidades do destino humano.
Não é sem razão que o folclore tem preocupado, e, ultimamente, mais do que nunca, a atenção dos estudiosos.
Nos Estados Unidos, na Itália, na Espanha, na Bélgica, na Holanda e, de um modo geral, em todos os países setentrionais, tem ele feito notáveis progressos, que se acentuam, na Finlândia, onde existe o organismo folclorístico centralizador.
De origem inglesa, folk: povo, e lore: conhecimento, estudo, a expressão folk-lore significa a ciência que tem por objeto estudar o povo.
Tangendo com o regionalismo, o folclore é, entretanto, um estudo de natureza mais independente, na investigação dos fatos de feição puramente popular, porque, ao revés daquele, prescinde do fenômeno político e de outros elementos como o econômico, o demográfico, etc.
A constituição sistemática do folk-lore, com foros de ciência, remonta a Thomas Brown, em 1646, na Inglaterra, e a Jean-Baptiste Thiers, em 1667, na França.
No tocante aos contos populares, a França apresenta, ainda, um nome notável, em 1697: Perrault, a quem todos nós devemos o enlevo angélico das horas de leitura em que ele nos sorriu, na infância, através dos seus “Contos de Fadas”. Pertencem-lhe, ainda, as “Histórias ou Contos do tempo passado”.
A escola literária instituída por ele foi, a seguir, ampliada com a tradução das maravilhosas Mil e Uma Noites, que até hoje rejuvenescem a minha alma, iluminando-a de esplendor oriental, sempre que as releio. Apareceu, ainda, na França, no século XVIII, longa série de contos populares, em trinta volumes: Cabinet des Fées, que alcançou êxito ruidoso. Surgiu, depois, o Magazin des Enfants, de Mme. Leprince de Beaumont, que, a exemplo daqueles, de Mme. d’Aulnoy, encerram narrativas repassadas de ternura ingênua.
Os verdadeiros continuadores, porém, de Perrault foram os irmãos Grimm, que fundaram a dialetologia germânica.
Na Inglaterra, Walter Scott acompanha, igualmente, Perrault, fundindo, ao sabor da fantasia popular, algumas lendas e costumes locais.
Na Grécia, foi Pausânias um dos grandes precursores do folclore. A sua Descrição da Grécia é uma obra específica no assunto e sobreleva, evidentemente, às páginas congêneres de Heródoto.
Há, no folclore, uma finalidade sociológica, que lhe dá um conspecto muito mais ilustre do que parece, a princípio. Verifica-se nele uma relação de imanência entre o indivíduo e o povo. Daí, fácil é concluir a sua relevante importância em todos os domínios das instituições humanas.
O seu desenvolvimento, que conta já, hoje, várias publicações, e museus, na Hungria, na Boêmia, na Áustria, e dispõe da ação investigadora dos panslavistas, na Rússia, e dos pangermanistas, na Alemanha, obteve esta conquista irrefragável: a produção literária popular é um elemento da atividade social, a cuja organização se junta, menos por necessidade estética do que por utilidade.
Os temas populares incorporam-se à literatura desde os tempos da Alta Antiguidade. Há milhares de anos já eles apareciam, embora escassamente, nos textos da Assiro-Babilônia e nos papyrus egípcios. Entretanto, como o folclore data de época, relativamente, muito mais aproximada dos nossos dias, perderam-se inúmeras versões de valor característico.
No ano 1500 antes de Jesus Cristo, já existia, no Egito, a lenda dos Dois Irmãos, de feição flagrantemente folclórica. Bem assim, a da Gata Borralheira, derivada do episódio relativo ao furto da sandália de Nitaqrit ou Ródope dos gregos, por um gipaeto, que a deixou cair ao colo do Faraó, em Mênfis. E, ainda, as Memórias de Sinuhit e todo o ciclo de Satni-Khamois.
Não esquecendo os Celtas, devo citar os File ou videntes, que se dividiam em dois grupos, desde o Oblairo, que não sabia mais que sete histórias, até o Olam, que narrava trezentas e cinqüenta.
George Frazer, considerando o folclore como a sobrevivência dos processos antigos de pensar e de agir, formando o conjunto das crenças e costumes tradicionais de um povo, reconhece a sua influência entre os hebreus e interpreta todo o Antigo Testamento, ao sabor folclórico.
Villemarqué, na sua história poética da Bretanha, região onde a poesia tem um perfume de angelitude; onde a vida humana transcorre ungida de candura e de lirismo; onde o povo julga a poesia, segundo um seu provérbio, mais forte que as três cousas mais fortes: o mal, o fogo e a tempestade; onde a noção do dever é tão sagrada que ninguém acha prematura a morte, quando se morre, cumprindo o dever; onde os peregrinos pagam, em canções, à porta das casas, a hospitalidade que se lhes dá; Villemarqué, na sua colheita de cantos populares dessa região abençoada, fornece ao folclore um dos mais preciosos contingentes da matéria.
Fauriel, igualmente, nos seus Cantos Populares da Grécia Moderna, obra de interesse radical para os pesquisadores do assunto, revela toda a expressão folclorística dos gregos, entre os quais é também tão cândido o sentimento da poesia que um cantor, não sabendo ler e não querendo esquecer o deleite que lhe causara uma lenda, fez dela uma canção, para a conservar de memória.
E no Brasil? Que dizer sobre as toadas que correm todo o nosso vasto território, como um perfume cantante, exalando a frescura virgem da nossa alma contemplativa?
Juvenal Galeno, Couto de Magalhães, Sílvio Romero, João Ribeiro, Melo Morais Filho e, ainda, Catulo da Paixão Cearense, grande poeta da brasilidade, bastam para fixar o folclore nacional, tão vasto, aliás, e tão rico, principalmente, nos Estados do Norte.
Originário da emoção indígena, como prova, entre outras obras, a Poranduba, que quer dizer história popular, de autoria do nosso patrício Barbosa Rodrigues, ele decorre, principalmente, sob a feição do conto popular, das criações mitológicas da família tupi-guarani. Assim é que influíram, profundamente, na formação do conto brasileiro os tipos entre pitorescos e trágicos do Curupira, do Matin-taperê, da Mãe-d’água, do Mboitatá, do Saci-pererê e as lendas do jabuti, da mucura e da iara.
Ao revés, no que concerne às cantigas do povo, ou, melhor, à modinha, pode afirmar-se que toda a nossa poesia popular é de origem portuguesa, deriva da serranilha galiziana. É na modinha que bem se caracteriza a sensitividade poética do povo brasileiro. Sente-se nela uma influência, mais remota, da xácara dos trovadores e, mais recente, do fado português.
Para encerrar esta simples referência ao folclore brasileiro, rendo homenagem ao lirismo nacional, repetindo aqui alguns dos seus momentos de verdadeiro estado de graça, nas seguintes trovas, das mais belas que possuímos:
É verdade e não parece,
Mas é verdade patente
Que a gente nunca se esquece
De quem se esquece da gente.
(POPULAR)
Sou jardineiro imperfeito,
Pois no jardim da amizade,
Quando planto o amor-perfeito
Sempre nasce uma saudade.
(ADELMAR TAVARES)
Num arbusto que murchava
Teu nome escrevi, Dolores;
Após dois dias estava
Coberto o arbusto de flores.
(LINDOLFO GOMES)
Vida que és o dia de hoje
O bem que de ti se alcança
Ou passa porque nos foge,
Ou passa porque nos cansa.
(VICENTE DE CARVALHO)
Eu quero dar um conselho
A quem o quiser tomar:
Quem quiser viver no mundo
Há de ouvir, ver e calar.
(POPULAR)
Minha viola, morena,
É uma gaiola de pinho
Adonde canta e soluça
Tudo quanto é passarinho.
São Pedro diz que a viola
Foi feita num desafio
Da canoa em que ele andava
Com Cristo a pescar no rio.
Não foi feita da canoa,
Mas porém da sua cruz!
A viola ainda sofre
Tudo o que sofreu Jesus.
(CATULO CEARENSE)
Quanto mais tempo se passa
Minh’alma mais queixas tem,
Por ela ser ofendida,
Sem ofender a ninguém.
(POPULAR)
Até nas flores se encontra
A diferença da sorte!
Umas enfeitam a vida,
Outras enfeitam a morte!
(POPULAR)
Certos pontos luminosos
Que dão brilho à minha sorte,
Têm semelhança com o raio
Que ilumina e deixa a morte.
(POPULAR)
Alma no corpo não tenho;
Minha existência é fingida;
Sou como o tronco quebrado
Que dá sombra sem ter vida.
(POPULAR)
Onde anda o corpo da gente
A sombra vai pelo chão,
É assim também a saudade,
A sombra do coração.
(ADELMAR TAVARES)
Ei-lo de todos os casos
O mais estranho do Mundo...
Como nuns olhos tão rasos
Cabe um olhar tão profundo?
(PEREIRA DA SILVA)
Há uma espécie de plantas
Que vingam sem ter raízes:
Assim são certos sorrisos
Nos lábios dos infelizes.
(POPULAR)
Dizem que as almas não morrem,
São imortais... não têm fim...
A minha faz exceção
’Stá morta dentro de mim!
(POPULAR)
Mas já é tempo de terminar esta digressão, que outro intuito não teve senão o de realçar uma das principais atividades literárias de Alberto Faria.
Não era, porém, o grande folclorista, somente, notável, por essa feição do seu dinamismo mental.
Chamaram-lhe com justeza de observação – beneditino das letras.
O seu espírito pesquisador comprazia-se com a perscrutação das origens.
Bibliófilo apaixonado, conhecia como poucos a história literária brasileira.
A sua nomeada no versar assuntos ilustres da linguagem e da tradição cultural do nosso pensamento, começou de irradiar, desde que redigia, sob o pseudônimo Adélio, a antiga secção “Ferros Velhos”, na Cidade de Campinas.
São dignas de nota as controvérsias que ele animava, quase sempre com vantagem, na discussão de temas filológicos.
Como crítico, dos mais argutos que temos possuído, vem a propósito lembrar a página magistral que escreveu, sob o título: “Versos de um Artista”.
Na defesa do Classicismo, de que era paladino invencível, afirmava: “A reação contra o classismo produziu, na Inglaterra, o eufemismo, na França, o preciosismo, na Itália, o marinismo, na Espanha, e reflexamente em Portugal, o culteranismo ou gongorismo, cuja degenerescência se caracterizou por extravagâncias de forma, iludindo falta de concepção nos escritores medíocres.”
Na esplêndida crônica “O Amor Descoberto”, onde revela vastíssima leitura, põe de manifesto o seu pendor poético, de que, aliás, raramente se utilizava. Como exemplo, devo aqui transcrever as belas quadras que produziu, embora na qualidade de tradutor, interpretando, em nossa língua, o sentido lírico-irônico da linda serenata grega, que deu título ao seu trabalho:
Cerrada era a noite, quando
Teus olhos beijei, falando:
“Isto pode ver alguém
Mais que as estrelas d’além?”
Pois de linda estrela o ciúme
Nos havia de perder!
Lá do céu – cadente lume –
Ela ao mar o foi dizer.
E, entre sorrisos de espuma,
A um remo as ondas do mar
Buscaram, uma por uma,
Para o caso lhe contar.
O remo tudo passou
Ao barqueiro, sem demora,
E este (que à casa chegou
Antes do romper d’aurora),
Apenas o sol fulgiu,
Quanto a estrela do alto viu
A mulher disse lampeiro...
Logo o soube o mundo inteiro!
É mister, ainda, aludir à perícia com que se houve em outras traduções poéticas, notoriamente, de Heredia. E, ainda, na prosa, muita vez, se lhe nota o sentimento da poesia, como nestes períodos de sua crônica “Adivinhas”:
Consoante a uma piedosa lenda cristã, as abelhas nasceram das lágrimas de Jesus, vertidas do negregoso madeiro alçado no Calvário: nenhuma rolou ao chão, todas ganharam asas, voando para os homens, a trazer-lhes da parte do Salvador certa doçura moral – o mel da crença. No dualismo da criação, elas opõem-se às vespas, que são obra diabólica.
Referindo-me às suas qualidades de tradutor, não me fora possível esquecer uma das mais formosas crônicas de Aérides: “A voz dos mortos” na qual se verifica a sua tradução do conto de Maupassant: “A defunta”, que é, sem dúvida, uma obra-prima, cuja emoção estética e cuja linguagem nada ficam devendo ao original.
Em “Cigarras”, magnífico trabalho de erudição e poesia, que constitui uma das melhores páginas de Acendalhas, há trechos de beleza, como estes:
Anacreonte, que aproxima as cigarras dos deuses, disse satisfazer-se ela com o orvalho, presumivelmente pela relação mítica entre este e o néctar servido aos moradores do Olimpo. Além do que, Titão – o sol, amante da Aurora, – a deusa das manhãs radiosas, – foi convertido em cigarra.
O supremo regulador moral do Universo, não alheio à poesia, designou um buraco escuro para encerro perpétuo da formiga e mandou florir uma olaia para eterna habitação da cigarra...
De nosso turno, ao ouvirmos a primeira cigarra de cada ano sonorizando a grimpa de um ipê amigo, que setembro costuma toucar de ouro, temos ímpetos de dirigir-lhe convite gentil, resumível nos decassílabos, tão saudosos do lirismo remoto:
Vamos reler Teócrito, senhora,
ou, si lhe apraz, de Téos o citaredo.
É que nas páginas desses antigos, de grácil ingenuidade cheias, encontramos, antes de manusear outras, a reabilitação poética da cantora da luz, menosprezada pelos homens práticos da Idade Moderna.
Mas... que pena, grande e querido Alberto de Oliveira, as cigarras serem analfabetas!
Entre os seus melhores trabalhos de Acendalhas avulta a crônica “Concepção Poética da Conceição”, onde o eminente filólogo traça um largo e variado comentário em torno da célebre quadra:
No ventre da virgem-mãe
encarnou divina graça:
entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça.
Aí se encontra a interessante correspondência epistolar trocada entre o insigne humanista e D. Carolina Michaëlis de Vasconcelos, cujo grande espírito não se dedignou de encomiar o autor de Aérides e Acendalhas.
Além desses volumes, deixou Alberto Faria os seguintes trabalhos: Discursos pronunciados na Academia; L’Homme du sonnet; Cartas Chilenas; Palestra sobre Francisco Octaviano; Estudo sobre J. M. de Macedo e Joaquim Caetano; as conferências: Fagundes Varela; Os Sinos; Nariz e Narizes; O Galo através dos Séculos; Andorinhas e Beija-flores; Cousas do Arco-da-Velha.
O seu espírito sempre afeito a locubrações em torno de assuntos de alta erudição, comprazia-se, por vezes, com a ironia esfuziante.
De certa feita, em polêmica travada com adversário ilustre, que se jactava de versar o grego e o latim, Alberto Faria desfechou este feliz remoque:
“Em grego, como em latim, o Sr. ... declina.”
No curso do mesmo prélio cultural, recebeu ele esta invectiva:
“Tais polemistas são invencíveis. Com eles não se discute... é dar-lhes uma pancada, uma só, mas de cego, como quem deseja matar cobra...”
Respondeu ele, servindo-se de um adágio:
“Sombra de vara torta não mata cobra...”
A atividade literária de Alberto Faria data quase da sua infância, pois que, aos quatorze anos, fundava, na cidade de São Carlos, o jornal: A Alvorada. Começou de pensar e sentir, publicamente, numa “Alvorada”, como era natural. Deixou de pensar e de sentir, como foi profundamente ilógico, noutra alvorada. Raiava a madrugada de 8 de setembro de 1925, quando a morte material encerrou a sua fecunda existência, na ilha de Paquetá. Um sorriso fugitivo transcoava-lhe da face a derradeira expressão da vida, que se lhe desvanecia no éter, em holocausto à beleza das cousas, naquele ambiente maravilhoso. Morreu de tanto contemplar o mar. Era-lhe a última volúpia passar os dias, esquecidamente, em colóquio com a imensidade.
Como Victor Hugo ungia de esplendor cósmico a sua solidão, no alto dos penedos de Guernesey, aprofundando os olhos e a alma no Infinito, Alberto Faria provava o sabor metafísico do Universo, deixando-se estar, horas a fio, ao contacto do oceano, em meditação.
Deve ter morrido de êxtases, forma transcendental da eutanásia. E a sua morte, assim, deve ter sido, antes, uma transfiguração.
* * *
Organização complexa, mal interpretada por quem lhe não conhece a fundo a larga expressão cultural, Alberto Faria era um valor acadêmico específico, porque, sintetizando as múltiplas manifestações da sua atividade mental, a fórmula que bem o definia era esta: homem de letras.
Se algumas vezes o ardor das suas afirmações lhe incendiava, dramaticamente, a atitude, é que o caráter – “lâmpada interior” – como lhe chamava Victor Hugo, lhe explodia de revolta contra as imperfeições morais da vida.
O caráter – integração de todas as virtudes – é bem a claridade da alma, como o talento o clarão do espírito.
Feliz de quem, a exemplo do preclaro humanista, pode iluminar-se a si próprio externa e internamente, pelo esplendor do espírito, que projeta o indivíduo além da espécie; pela claridade da alma, que alumia as sombras germinais do instinto.
Não há beleza que prescinda do sentimento; e este é qualidade da alma, domínio metafísico, a que o espírito não atinge, senão ainda confusamente, pelos processos experimentais, mas pela razão pura ou intuição. Daí, fácil é concluir a imanência da condição moral no fenômeno da beleza, sempre sensível, nem sempre visível.
Quando, portanto, o clarão do espírito pressupõe a claridade da alma, dá-se no indivíduo o equilíbrio social, que o torna, aliás, pela raridade dessa conjunção luminosa, um ser de eleição, na sociedade.
Assim o foi o sábio Alberto Faria. Elegendo-o, a Academia o reconheceu. Desaparecido, materialmente, dentre nós, ele nunca se ausentará da nossa consciência, que o imortalizou pela fortitude do seu espírito e do seu caráter.
A derradeira ocupação literária de Alberto Faria foi um estudo que ficou interrompido pela morte, sobre a personalidade de Raimundo Correia. Quis o destino, expresso na generosidade da ilustre família de Raimundo, que eu entrasse aqui prestigiado por um remanescente glorioso daquele grande Poeta, cujo espírito, ligando, dessa forma, os últimos instantes de Alberto Faria aos meus primeiros passos entre vós, vem, de algum modo, legitimar a relação de sucessão, nesta Academia, entre o grande humanista e aquele que, mercê da vossa benevolência, tem a honra de vir substituí-lo.
O espadim, que integra o meu uniforme, na presente solenidade, pertenceu ao maravilhoso artista do verso, cujo elogio se torna desnecessário, feito agora por mim, depois que ressoa, cantado por toda parte, pela voz do povo. Mestre, que sempre admirei com entusiasmo, Raimundo Correia exerce sobre a poesia nacional a ascendência hierática de um símbolo.
Duplo, portanto, é o meu conforto moral, ao ser recebido, hoje, por vós.
Primeiro, em virtude de sentar-me ao lado daqueles que são os eleitos da cultura brasileira; segundo, por entrar, aqui, como venho: ferido de uma cintilação transcendental, ao contacto deste espadim – raio de estrela, que, se me não pertence, me comunica a sua estranha fulguração de glória eterna, armando-me cavaleiro do ideal.
– Ninho de relâmpagos – será bastante agitá-lo no ar, para que dele se desprenda uma revoada de claridades vertiginosas...
E é sob a impressão fascinadora dessa taumaturgia luminosa, que só podem exercer no mundo a divindade e o gênio, que eu juro, à fé de cavaleiro, beijando a poesia nacional neste espadim sagrado, despender, na Academia Brasileira de Letras, toda a minha energia mental, a serviço da beleza.