A EDUCAÇÃO NACIONAL: INTRODUÇÃO
A educação nacional, largamente derramada e difundida com o superior espírito de ser um fator moral de nacionalismo, poderosissimamente concorreu para despertar no americano o sentimento patriótico. Teve esse grande povo a intuição de que a escola, isto é, a mesma educação prodigamente distribuída a todos os cidadãos, devia de ser a cadeia que ligasse os elementos heterogêneos da nação. E assim, sem obstáculo da federação e do espírito individualista do elemento anglo-saxônico ali predominante, a unidade escolar, unidade de espírito, entenda-se, veio a ser um remédio às fundas diversidades de raça, de religião e de costumes.
Não sucedeu no Brasil infelizmente o mesmo. Além de nunca lhe havermos dado a importância social que lhes mereceu a eles, jamais a espalhamos em relação sequer comparável com o que eles fizeram. E sem impedimento da nossa centralização administrativa e política, a escola brasileira, isolada na espera de uma pura e estreita ação de rudimentar instrução primária, não teve a mínima influência nem na formação do caráter, nem no desenvolvimento do sentimento nacional.
Sem orgulho patriótico - que não merece ser assim chamada a nossa parvoinha vaidade nativista - sem educação cívica, sem concorrência de espécie alguma, o caráter brasileiro, já de si indolente e mole, como que se deprimiu, e o sentimento nacional que luz pela primeira vez na luta com os holandeses e depois nos conflitos de nacionais e portugueses nas épocas que proximamente antecederam ou seguiram a Independência, esmorece, diminui, quase desaparece.
Indagando, com esta minha velha preocupação de nacionalismo, as manifestações desse sentimento nas mais características formas de sentir de um povo, na sua poesia e na sua arte, foram sempre negativos os resultados. Em abono de asserto semelhante, escrevi eu em outro ensejo: “As maiores comoções políticas ou sociais por que tem passado o Brasil, como, e não falo senão de fatos contemporâneos, as revoluções de 17 em Pernambuco e 42 em Minas, os diversos movimentos sediciosos do momento da Independência, a revolução do Rio Grande do Sul, a guerra da Cisplatina ou a guerra do Paraguai, os fenômenos mais característicos da nossa nacionalidade, como a escravidão, não só como instituição jurídica mas como um fato consuetudinário, digamos assim, nada disso deixou um sinal apreciável em o nosso romance ou em a nossa poesia.” (“O romance naturalista no Brasil”, nos Estudos brasileiros, 2ª série, Rio, 1894.)
Várias causas acudiram a estorvar em nós o brasileirismo. Direi das mais salientes.
É a principal a desmarcada extensão do país comparada com a sua escassa e rareada população. Isolados nas localidades, nas capitanias e depois nas províncias, os habitantes, por assim dizer, viveram alheios ao país. Desenvolveu-se neles antes o sentimento local que o pátrio. Há baianos, há paraenses, há paulistas, há rio-grandenses. Raro existe o brasileiro. É frase comum: “Primeiro sou paraense (por exemplo), depois brasileiro.” Outros dizem: “A Bahia é dos baianos, o Brasil é dos brasileiros.” Pela falta de vias de comunicação, carestia e dificuldade das poucas existentes, quase nenhuma havia entre as províncias. Raríssimo há de ser encontrar um brasileiro que por prazer ou instrução haja viajado o Brasil. Durante muito tempo os estudos se iam fazer à Europa, muito especialmente a Portugal. Lisboa e Coimbra eram as nossas capitais intelectuais. As relações comerciais foram até bem pouco tempo quase exclusivamente com aquele continente e com aquele estado. Tudo isto vinha não só da geografia do país, mas também da ciosa legislação portuguesa que de indústria procurando isolar as capitanias, longe de acoroçoar as relações entre elas, preferia as tivessem com o reino. Destes diferentes motivos procede o estreito privincialismo brasileiro, conhecido sob o significativo apelido de bairrismo, que hostilizava e refugava de si o mesmo brasileiro oriundo de outra província alcunhando-o, no Pará por exemplo, de barlaventista.
A falta de uma organização consciente da educação pública do mesmo passo cooperou para manter esse isolamento e, como quer que seja, essa incompatibilidade entre os filhos e habitantes das diversas províncias. A educação nacional a que os Estados Unidos recorreram para reduzir e atalhar os perigos que a unidade da nação trouxesse um demasiado espírito local, nunca a houvemos, nem ainda hoje a temos aqui.
Pessimamente organizada, a instrução pública no Brasil não procurou jamais ter uma função na integração do espírito nacional. A escola viveu sempre acaso mais isolada pelo espírito que pelo espaço e topografia. Se nela se tratava da pátria, não era com mais individuação, cuidado e amor que de outras terras. Era antes vulgar merecer menos. A mesma província não foi jamais objeto de estudo especial. Porém essa, ao menos de experiência própria, e por assim dizer intuitivamente, vinha mais ou menos a conhecê-la o natural. Foi durante muito tempo numeroso o êxodo das crianças a estudar fora do país na idade justamente em que se começa a formar o caráter e o coração, e em que se recebem as primeiras e eternas impressões do amor da família e do amor da terra. Nem ao menos vinham a ser úteis esses cidadãos, assim alheados da pátria. Não iam em idade de adquirir outro saber que não aquele galantemente taxado por Montaigne de ciência livresca, e tornavam em geral descaroáveis da pátria e de seus costumes, e profundissimamente ignorantes dela. Muitos desses achavam-se depois imagine-se com que sentimento nacional à frente dos seus negócios.
O iletrado brasileiro, ainda há pouco 84 por cento da população, nada encontrou que impressionando seus sentidos lhe falasse da pátria e a seu modo fosse também um fator da sua educação. Não há museus, não há monumentos, não há festas nacionais. O que frequentou a escola onde lha não fizeram conhecer e amar, desadorando a leitura e o estudo, não procurou fazer-se a si próprio uma educação patriótica. Esta mesma boa vontade ser-lhe-ia aliás difícil realizar, pela falta de elementos indispensáveis. Porque, em virtude mesmo desta indiferença pelas coisas nacionais, conforme vou aqui apontando, de modo algum combatida pela educação pública, é paupérrima a nossa literatura nacionalística.
O nosso jornalismo, quiçá mais numeroso que notável, afora a política e as pequenas notícias, os faits divers, escassamente se ocupa do Brasil. É mais fácil encontrar nele notícia de coisas estrangeiras européias para ser mais preciso que do país; e nas províncias se raro é o jornal de algum valor que não tenha uma correspondência de Lisboa ou de Paris, porventura se toparia algum que a tivesse, não de outra parte do Brasil, mas do Rio de Janeiro. Não possuímos uma única revista que leve a todos os cantos do país os trabalhos dos seus escritores, dos seus pensadores, dos seus artistas e os estudos no país feitos. Não temos ilustrações por onde fiquemos conhecendo os diversos aspectos da variada paisagem brasileira, ou as obras e construções no Brasil e por brasileiros feitas, nem os nossos homens e sucessos notáveis, nem algum raro monumento erigido.
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(A educação nacional, 1890.)
INTRODUÇÃO À HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA
A literatura que se escreve no Brasil é já expressão de um pensamento e sentimento que não se confundem mais com o português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente portuguesa. É isto absolutamente certo desde o Romantismo, que foi a nossa emancipação literária, seguindo-se naturalmente à nossa independência política. Mas o sentimento que o promoveu e principalmente o distinguiu, o espírito nativista primeiro e o nacionalista depois, esse se veio formando desde as nossas primeiras manifestações literárias, sem que a vassalagem ao pensamento e ao espírito português lograsse jamais abafá-lo. É exatamente essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado literariamente, que dá à nossa literatura a unidade e lhe justifica a autonomia.
A nossa literatura colonial manteve aqui tão viva quanto lhe era possível a tradição literária portuguesa. Submissa a esta e repetindo-lhe as manifestações, embora sem nenhuma excelência e antes inferiormente, animou-a todavia desde o princípio o nativo sentimento de apego à terra e afeto às suas coisas. Ainda sem propósito acabaria este sentimento por determinar manifestações literárias que em estilo diverso do da metrópole viessem a exprimir um gênero nacional que paulatinamente se diferençava.
Necessariamente nasceu e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento da portuguesa e seu reflexo. Nenhuma outra apreciável influência espiritual experimentou no período da sua formação, que é colonial. Também do próprio meio em que se ia daquela formando lhe não proveio então qualquer influxo mental que pudesse contribuir para distingui-la. E como assim foi até quase acabar o século XVIII, não apresenta períodos claros e definidos da sua evolução nesse lapso. As reações que daquele meio porventura sofreu foram apenas de ordem física, a impressão da terra em seus filhos; de ordem fisiológica, os naturais efeitos dos cruzamentos que aqui produziram novos tipos étnicos; e de ordem política e social, resultantes das lutas com os holandeses e outros forasteiros, das expedições conquistadoras do sertão, dos descobrimentos das minas e consequente dilatação do país e aumento da sua riqueza e importância. Estas reações não bastaram para de qualquer modo infirmar a influência espiritual portuguesa e minguar-lhe os efeitos. Criaram, porém, o sentimento por onde a literatura aqui se viria a diferençar da portuguesa. As divisões até hoje feitas no desenvolvimento da nossa literatura não parece correspondam à realidade dos fatos. Mostra-o a sua mesma variação e diversidade nos diferentes historiadores da nossa literatura, e até mesmo no principal deles, incoerente consigo mesmo. Após curado estudo desses fatos tenho por impossível e vão assentá-los em divisões perfeitamente exatas ou dispô-los em bem distintas categorias. Fazê-lo com êxito importaria o mesmo que descobrir outros tantos aspectos diversos e característicos em uma literatura sem autonomia, atividade e riqueza bastantes para se nela passarem as alterações de inspiração, de estesia ou de estilo que discriminam e assentam os períodos literários; uma literatura que em trezentos anos da sua existência apagada e mesquinha não experimentou outras reações espirituais que as da metrópole, servilmente seguida. Assim sendo, é evidente que os únicos períodos literários aqui verificáveis seriam os mesmos ali averiguados. Quando começava aqui a literatura, lá havia terminado, ou estava terminado, o Quinhentismo, a melhor época da portuguesa. Principiava então lá o seiscentismo, prematura e rápida degradação daquele brilhante momento, cuja brevidade era aliás consoante com a da época de esplendor nacional, revendo tudo o que de ocasional e fortuito houvera nos escassos cem anos da dupla glória portuguesa. Mas, como acertadamente nota um novo crítico, “o seiscentismo não terminou em 1699, no último dia do ano, perdurou até a segunda metade do século XVIII, e a Arcádia e suas imitações não encerram o século XVIII; a Arcádia de Antônio Diniz só se fundou em 1756. No segundo quartel ainda Antônio José satirizava o gongorismo, que era uma atualidade”. (Fidelino de Figueiredo, A crítica literária em Portugal. Lisboa, 1910, p. 99.)
O que, portanto, havia no Brasil era o seiscentismo, a escola gongórica ou espanhola, aqui amesquinhada pela imitação, e por ser, na poesia e na prosa, a balbuciante expressão de uma sociedade embrionária, sem feição nem caráter, inculta e grossa. Que o era, o mais perfuntório exame, a leitura ainda por alto dos versejadores e prosistas dessa época o mostrará irrecusavelmente. Não há descobri-lhes diferença que os releve na inspiração, composição, forma ou estilo das obras. Sob o aspecto literário são todos genuinamente portugueses, por via de regra inferiores aos reinóis. A única exceção apresentada, a de Gregório de Matos, é impertinente. Da sua obra a só porção distinta, e estimável por outras qualidades que as propriamente literárias, é a satírica ou antes burlesca. A inspiração e feitio desta não destoa, porém, quanto se tem presumido da musa gaiata portuguesa do tempo, ilustrada ou deslustrada por D. Tomás de Noronha, Cristóvão de Morais, Serrão de Castro, João Sucarelo, Diogo Camacho e quejandos, todos mais ou menos discípulos e imitadores, como o nosso patrício, do espanhol Quevedo, mas todos a ele inferiores. Como aos comuns motivos de satirizar de seus êmulos portugueses juntasse Gregório de Matos o estímulo do seu descontentamento de colonial gorado nas suas ambições e malogrado na sua vaidade, é talvez o seu estro satírico mais rico e, para nós, muito mais interessante que o daqueles. Não é, porém, nem mais original, nem mais subido. A singularidade, mesmo a superioridade de Gregório de Matos, ainda quando bem assente, não bastaria aliás para desabonar o conceito de que o seu exemplo não prejudica a regra geral da nossa evolução literária no período colonial. Um só escritor, uma só obra, salvo proeminência excepcional e de efeitos averiguados, não anula um fato literário como o verificado. A parte séria das composições de Gregório de Matos é genuinamente do pior seiscentismo, como pela língua, estilo e outras feições o é também a sua porção satírica. De resto o seu caso foi único e isolado, incapaz, portanto, de alterar como quer que fosse a continuidade do nosso desenvolvimento literário. E os fatos provam que em nada o alterou. Simultânea e posteriormente continuou aquele como se vinha fazendo.
Somente para o fim do século XVIII é que entramos a sentir nos poetas brasileiros algo que os começa a distinguir. E só nos poetas. Distinção, porém, ainda muito escassa e limitada e também parcial. Por um ou outro poema em que se revê a influência americana, há dezenas de outros em tudo e por tudo portugueses. Os mesmos poetas do princípio do século XIX, sucessores imediatos dos mineiros e predecessores próximos dos românticos, são ainda e sobretudo seiscentistas, apenas levemente atenuados pelo arcadismo. Esta procrastinação do seiscentismo aqui, como o gongorismo que lhe era consubstancial, e é acaso congênito à gente ibérica, além do motivo geral da mais lenta evolução mental das colônias, poderia talvez explicá-lo o ter aqui vivido, se exibido e influído o mais poderoso engenho português dessa época, o padre Antônio Vieira. A sua singular individualidade, exaltando-lhe os insignes dotes literários, supera a desprezível feição literária do período e a ampara e defende se não legitima. A corroborar-lhe a má influência, continuada pelos pregadores seus discípulos, vieram as Academias literárias, focos e escolas do mais desbragado gongorismo. Somente com os primeiros românticos, entre 1836 e 1846, a poesia brasileira, retomando a trilha logo apagada da plêiade mineira, entra já a cantar com inspiração feita dum consciente espírito nacional. Atuando na expressão principiava essa inspiração a diferençá-la da portuguesa. Desde então somente é possível descobrir traços diferenciais nas letras brasileiras. Não serão já propriamente essenciais ou formais, deixam-se, porém, perceber nos estímulos de sua inspiração motivos da sua composição e principalmente no seu propósito.
As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período colonial e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio de transição, ocupado pelos poetas da plêiade mineira (1769-1795) e, se quiserem, os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada, porém, em conjunto a obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética portuguesa contemporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr nela. No primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me arbitrária. Nenhum fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais que algum levíssimo indício de “desenvolvimento autonômico”, insuficiente em todo caso para assentar uma divisão metódica. Ao contrário, ela é em todo esse período inteira e estritamente conjunta à portuguesa. Nas condições de evolução da sociedade que aqui se formava, seria milagre que assim não fosse. De desenvolvimento e portanto de formação, pois que desenvolvimento implica formação e vice-versa, é todo o período colonial da nossa literatura, porém, apenas de desenvolvimento em quantidade e extensão, e não de atributos que a diferençassem.
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(História da literatura brasileira, 1916.)