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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Domício Proença Filho

Esperávamos todos que assomasse a esta tribuna, para desfrutarmos do encantamento de ouvi-lo, um pernambucano de raiz e devoção superlativa: o Acadêmico Marcos Vilaça. 

Impediu-o a tecedura da imprevisibilidade. Felizmente, já se encontra em plena recuperação. Mas ainda precisa conter os impulsos do seu conhecido entusiasmo.  

Cabe-me, a distinção de substituí-lo nesta grata e honrosa missão. 

Honrosa e difícil. Não disponho de um atributo, precioso na presente circunstância: careço da condição pernambucana. 

Tentarei compensar a carência com o que me é inerente: o carioquismo. Modéstia à parte.  Mas, como se depreenderá, Marcos Vilaça marcará presença nos meandros do discurso.  

É a forma que encontro para fazê-lo participar desta instância da liturgia acadêmica.

 

Senhoras e Senhores:

Especialistas no futuro têm afirmado, com a segurança de quem têm intimidade com o conhecimento: já em 2030, cada indivíduo prestante dominará, pelo menos cinco profissões simultâneas, entre as novas e as que ainda se fizerem necessárias. 

Atentemos para a minúcia cronológica: estamos a apenas oito anos dessa data e o processo de surgimento e de desaparecimento já se encontra, há algum tempo, marcado pela aceleração.  

Em face dessa perspectiva, o Acadêmico José Paulo Cavalcanti Filho, situa-se, ao longo de sua biografia, entre os muitos que antecipam essa condição.

Caracteriza-o uma multiplicidade de desempenhos profissionais. Como acontece com Paulo Niemeyer e assinalou, nesta mesma tribuna, a percuciência de Joaquim Falcão.

 

Revisitemos as estações do seu caminho, destacadas as diferenças singularizadoras, em termos de espaço de atuação. 

Os signos que, como ser social, integram a sua imagem o incluem entre aqueles que dominam inúmeros fazeres em espaços distintos. 

Na biografia de José Paulo Cavalcanti Filho, sobrepõem-se, dominante, o cultor do Direito. Em destaque o jurista e o advogado atuante. 

Nesses espaços, avulta, desde a juventude, a sua inquietação intelectual. 

Lembro, por significativos, alguns fatos de sua formação.

A escola, impõe-se lembrar, por oportuno, é, nos estados democráticos de direito, uma agência educacional dialeticamente conservadora e progressora: amplia conhecimentos e, sobretudo, desenvolve a capacidade de crítica do educando. Amplifica espaços de socialização.  Ensina a conviver com o contraditório. Converte -se em núcleo relevante de aprendizagem de democracia. 

Verdade que, há algum tempo, na realidade brasileira, vem atravessando instâncias de crise. E há muito deixou de ser risonha e franca.

José Paulo começa a frequentá-la no Recife. Desde o curso primário, no Instituto Capibaribe, instituição sem fins lucrativos. 

O ginasial, cursa-o na escola pública, o Colégio de Aplicação. Na sequência, opta pelo curso clássico, agora no Colégio Jesuíta. É já o prenúncio de sua vocação humanística. 

Segue-se a aprovação no vestibular de Filosofia Pura, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Pernambuco. Depois, o ingresso na Faculdade de Direito da Universidade Católica do mesmo Estado. 

De início, aluno laureado, é agraciado com bolsa de estudos e é eleito presidente do Diretório Acadêmico. No biênio 1968/1969. Atente-se para as datas.

     Láurea e desempenho brilhante, não impediram que tivesse o seu direito de estudar e o de outros 27 alunos proibidos pela ditadura militar. 

O retorno aos bancos universitários vem em 1970, em mais uma instituição pública, agora a Faculdade do Direito do Recife, onde se forma, no ano seguinte. Ancoragem em porto claro e iluminador. Formado, mais uma proibição: a do direito de ensinar.

É interessante assinalar, pontuaria Marcos Vilaça, que todos os estabelecimentos responsáveis por sua formação estão em Pernambuco ...

     Daí em diante, é o exercício da profissão, é a participação em relevantes centros estrangeiros de estudos: em destaque, a Harvard University. E também a ação do homem público.

 

Nesse espaço, notabilizou-se. 

A tal ponto, que participou e segue participando, com o empenho e a desenvoltura que o caracterizam, de inúmeros conselhos e comissões da Ordem dos Advogados do Brasil. 

Entre muitos outros e muitas outras, como Conselheiro e Diretor do Conselho Seccional de Pernambuco, Membro da Comissão instituída pela Ordem para acompanhar a Revisão da Constituição, nos anos de 1993 e 1994, e, a partir do ano seguinte, como integrante da Comissão instituída para acompanhar a Reforma Constitucional.

Altamente representativa é a sua atuação junto a inúmeras instituições de relevância no âmbito da empresa privada.     

    Seu desempenho como homem público é ainda pontuado por uma sequência de cargos, reveladores da sua alta competência e de sua liderança. Em várias instâncias. 

A semente estava, lá no estudante de Direito, presidente do Diretório Acadêmico. 

Entre muitas atribuições, foi, no governo do Presidente José Sarney, Secretário Geral do Ministério da Justiça, nos anos de 1985 e 1986- atentem para as datas- tempo em que, no primeiro, esteve Ministro interino da mesma Pasta, diria o saudoso Acadêmico Eduardo Portella. 

O Destino, o grande dramaturgo do teatro mundo e seu próprio contrarregra, como lembra Bentinho no capítulo 73 do Dom Casmurro, é mestre em suas artimanhas, às vezes adornadas de ironia. Tanto que fez mais:  levou o antigo estudante cassado e o docente impedido de exercer o magistério à condição de um dos seis membros da Comissão Nacional da Verdade, nomeada pelo Congresso Nacional e pela Presidência da República.

Por sua atuação, a propósito, O Governo Brasileiro o agraciou com a Ordem de Rio Branco, no grau de Oficial.  

          O novo Acadêmico foi também, entre muitos outros cargos, Presidente do Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional. Durante três anos.  

Sua alta eficiência como jurista, pode ser avaliada por um episódio marcante que ele costuma abrigar nas dobras da discrição e da modéstia.

Deu-se quando, por seus méritos, lhe coube redigir, por designação da Presidência da República, o Decreto de Instituição do Patrimônio Oral e Imaterial do Brasil. 

O texto regulador, de sua exclusiva autoria, marcado pelo ineditismo, internacionalizou-se: por iniciativa da UNESCO, tornou-se modelo para documentos similares em vários países. 

          Dizer da sua condição de consultor, em ação efetiva de alguns anos à atualidade, leva-nos a assinalar a sua atuação junto a inúmeras e relevantes instituições do Brasil e do exterior: a citada UNESCO, o Banco Mundial, a Seplan, a Secretaria da Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, a Secretaria de Ciência e Tecnologia de Pernambuco, a OIT, centrada em Trabalho Infantil e Gênero na Mídia do Mercosul e Chile. 

    Acrescente-se o brilhantismo de sua atuação no exercício da advocacia. 

Até esta parte, procurei nuclearizar, num breve esboço, a dinâmica multiplicidade de sua ação na área do Direito. 

A moldura de sua imagem abriga, também em grande, signos de dedicação apaixonada e confessada - partilhada, tranquilizemo-nos, por Dona Maria Lectícia:  O objeto da paixão se chama Fernando Pessoa. E a devoção se traduz em livro: Fernando Pessoa – uma quase autobiografia.   

O título, desde logo, revela a sua consciência da complexidade e da amplitude do propósito: mergulhar nas turvas águas oceânicas do complexo percurso existencial de um dos poetas mais representativos da língua portuguesa.

Para tanto, adota, como metodologia, procurar a verdade nos documentos, no diálogo intertextual com outras biografias, nas relações com os coetâneos do escritor, nos seus pronunciamentos, nos testemunhos, nos poemas, nos lugares por onde passou. Em destaque, o Livro do desassossego, autobiografia de Bernardo Soares, heterônimo por meio do qual Pessoa desvela, em profundidade, o seu mundo interior, suas dúvidas existenciais, suas angústias, suas perplexidades. De tal forma, que suas indagações ultrapassam a singularidade individual: envolvem questões atinentes à condição humana.   

     O biógrafo José Paulo Cavalcanti Filho apoia suas conclusões, em pesquisa exaustiva, ampla, a partir dos textos dos 127 heterônimos. Perpassa as minudências dos versos.  Divide o seu discurso com o discurso poético e não poético do escritor. Na fronteira, as aspas. Daí o quase da autobiografia, indiciador do seu espaço de titular do texto. O do discurso de Pessoa é indiciado pelo prefixo.  

 Nas suas palavras, o livro

“não é o que Pessoa disse, ao tempo em que o disse; é o que quero dizer, por palavras dele. Com aspas é ele: sem aspas, sou eu”. 

 Nos lugares relacionados com o biografado, colhe e registra referências, constatações pessoais. Um exemplo: a passagem da igreja, em que chega a reproduzir os diálogos que manteve com os consultados ao longo da pesquisa. Revela sua emoção diante da descoberta de papéis importantes. 

Duas passagens do Praeludium, o prefácio por ele assinado, dão a medida do que se propõe. A primeira: 

este livro é: “a biografia de alguém que nunca teve vida”. Apenas “uma espécie de apresentação do homem e da obra”. “Da obra que é o homem”. Pessoa confessa invejar “aqueles de quem se pode escrever uma biografia ou que podem escrever a própria”. É que os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia-proclama Octavio Paz, na abertura de um livro sobre ele. E mais: “Tornei-me uma vida lida”. E custa-me imaginar que alguém possa um dia falar de Fernando Pessoa do que ele mesmo, segundo Eduardo Lourenço. Pela simples razão de que foi Pessoa quem descobriu o modelo de falar de si mesmo tomando-se sempre por um outro. Assim será neste livro, em que o biografado se converte em “historiador futuro de suas próprias sensações”.

A segunda passagem:

 “ (...) Pessoa escreveu, pela vida, perto de 30 mil papéis, tendo quase sempre, como tema , ele mesmo ou o que lhe era próximo. – a família, amigos, admirações literárias, mitologia, ritos iniciáticos. Algo equivalente a quase 60 livros de 500 páginas. Tantas que, em um momento mágico, percebi poder contar sua vida com essas palavras. Usando não as que ele escreveu em sequência cronológica, como um diário, próximo das autobiografias convencionais, mas dizendo o que eu queria dizer, como se fosse ele escrevendo- posto serem mesmo dele ditas palavras” (p 12)

     A explicitação dá ideia do trabalho, hercúleo, exigido pela pesquisa. Sua realização mobilizou grupo significativo de colaboradores, sob seu comando, citados na obra. 

Nas 734 páginas do livro, o leitor percorre a vida de Pessoa guiado pelo autor, em quatro atos, que indiciam a matéria tratada e deixam perceber a natureza do livro. Na titulação, a explicitação à maneira de Cervantes, no Dom Quixote, que se tornou modelar na narrativa ficcional.  

Ato I -“Em que se conta dos primeiros passos e caminhos do     poeta”; 

 Ato II-“Em que se conta da arte de fingir e dos seus     heterônimos”; 

 Ato III- Em que se conta dos seus muitos gostos e ofícios”; 

Ato IV – “Em que se conta do desassossego e de seu     destino”.  

É ver o capítulo III, “donde se cuenta la graciosa manera que tuvo don Quijote em armarse caballero”. 

A repercussão da obra pode ser atestada pelas sete edições do livro, lançadas entre 2011 e 2012, e pelas edições na Alemanha, Espanha, França, Israel, Itália, Portugal, Rússia, Inglaterra (por enquanto). E mais pelas premiações recebidas. Destaco o Prêmio Jabuti, primeiro lugar; Prêmio da Bienal do Livro de Brasília, também a primeira colocação.   

O fascínio pelo autor heteronimizado do Livro do Desassossego, ouso o adjetivo, evidencia-se também na reunião dos Poemas curtos, coletânea concretizada por José Paulo e pela escritora Maria Lectícia Cavalcanti, uma primorosa edição, acompanhada de um CD com os poemas. Mais uma revelação da cumplicidade do casal e da relação afetiva especial pelos poemas pessoanos. 

Nas palavras do Acadêmico: pelo “tanto que conseguem revelar, em poucas palavras, o que sentia bem dentro. As incertezas da alma. A epifania da vida. A grandeza manifesta da natureza humana”. 

Uma leitura do poeta no poema. Na mobilização, o prazer do texto. Ao fundo, talvez, os conhecidos versos de Pessoa, que me permito recordar:

                O poeta é um fingidor

                Finge tão completamente

                Que chega a fingir que é dor

                A dor que deveras sente

     É nos espaços dessa dor escondida na carga semântica dos versos, nas confissões de Bernardo Soares e nos textos reflexivos de Fernando Pessoa que a leitura de José Paulo Cavalcanti busca surpreender a dor sentida pelo poeta, no seu “eu profundo”.  

Referi-me, frases acima, à sua discrição.  Permito-me, por pertinente, acrescentar outros atributos que lhe são próprios e se evidenciam na proximidade do convívio.

Conheço-o faz poucos anos. Mas o suficiente para a vivência de uma amizade antiga. 

Tenho consciência, entretanto, de que estou muito longe da visão totalizante e aguda de Marcos Vilaça.  

Abro aspas, então, para o que, sobre ele escreve no prefácio de Adeus Penderama, livro de José Paulo Cavalcanti: Aspas abertas:

    “Homem inclinado aos afetos, um tolerante que não perde o senso     de justiça, cultiva-o em preservação quase obsessiva. Ser amigo é     para ele não ter sossego. Chega junto sempre. Apoia, combate. Se for     preciso, não o intimida o cheiro de pólvora. Estende as mãos e se as     apanhamos, não as largamos jamais. 

    Especialista no contraditório, por vezes quase agride, na veemência     que usa, tudo para retirar hesitações de quem esteja do outro lado.     É confrontador nas demandas jurídicas e nas peladas do futebol, que     lhe são inseparáveis, e, de certo modo, rivais do amor à admirável     Maria Lecticia”.

Avaliação precisa. Exata. A que acrescento a memória prodigiosa. 

São esses atributos, prezado Acadêmico que, estou certo, se evidenciarão com sua presença nesta Casa do bom convívio. Não sem razão um de seus livros, publicado em 2003, se chama Aos amigos tudo.

Seja-me permitido, apenas um reparo, por oportuno: o texto de Vilaça data de 2007. A esta distância cronológica, penso que Dona Maria Letícia não se preocupa, no que concerne aos prélios futebolísticos, de modo nenhum com a rivalidade assinalada por Marcos Vilaça...Se ainda fossem partidas de tênis...

Em Adeus Penderama, estão reunidos textos dimensionadores de sua atuação como cronista publicados em periódicos.     

A crônica, sabemos todos, nucleariza-se no comentário do autor sobre fatos da realidade próxima ou distante.  

Ainda uma vez, divido esta fala com a palavra concedida a Marcos Vilaça.  

Ele conhece bem essa dimensão da atuação do escritor José Paulo. Por esse motivo, trago a percuciência de sua leitura crítica a esta festa celebratória.

    Aspas abertas:

    “Tenho certeza de que José Paulo, melhor dito, Zepaulinho, foi sempre um leitor apaixonado de Machado. Só assim será possível entender várias facetas deste livro. Por exemplo, o balanceamento do humor que escapa na sua crônica, alternância do deboche à brasileira com o formato irônico muito à moda de Machado. 

    Enquanto ajuda a pensar a contemporaneidade de uma forma muito respeitável, sorri e faz sorrir.

    O leitor encontrará - a muitos será um estupendo reencontro – nas crônicas deste livro um autor que exibe sem exibicionismos, experiência de vida, sentimentos dosados de racionalidade que alcançam uma valorização do homem. 

    Aí aparecem homens e episódios, como numa construção atraente, pelo que instiga e dá prazer. É de fazer inveja. E mais, num preciso juízo de valor.

    José Paulo equilibra o próximo e o longínquo. O equilíbrio vem da análise constante do seu entorno e dos valores que acumulou desde longe, na sua dedicação ao conhecimento. 

    Ele sabe o que é o acontecer no mundo.”

 Esse juízo também integra o prefácio citado. A referência ao “estupendo encontro” refere-se seguramente às 91 crônicas selecionadas entre 1598 e publicadas anteriormente sob o título de O mel e o fel. O adjetivo atesta a extensão do juízo crítico a essa primeira coletânea.   

     O título pode provocar, eventualmente, algum estranhamento. Para evitar o risco, valho-me, novamente, da palavra do autor para explicitá-lo, num texto breve, com sabor de crônica: 

        Engenho Penderama, onde nasceu meu pai. Não sei o que quer dizer esse nome. Melhor então considerar que tenha, de agora por diante, o sabor de perdidas ilusões, esquecidas marcas de um início distante, caminhos que não voltarei a percorrer, pedaços de alma que andam perambulando por aquele terraço e aqueles campos. Voltei depois ao que um dia foi um cenário grandioso, em minha memória, e encontrei só o presente dilacerado. Procurei minha infância e encontrei só restos do que fui ou sonhei ser. Procurei lembranças de meu pai e encontrei apenas o barulho das brincadeiras e algumas crianças tristes. Então fui embora me despedindo de alguns velhos, que me olhavam curiosos, sentados nos degraus de uma calçada. Sem nem pressentir que, com aquele aceno, estava dizendo adeus a um pedaço da minha vida. E olhei pela última vez a paisagem que já começava a se dissolver, silenciosamente; mas só desaparecerá, então completamente, quando afinal desaparecer o menino que um dia ali viu seu pai, sentado em uma velha cadeira, sorrindo.”

Seu pai, José Paulo de Souza Cavalcanti. Imagino, prezado José Paulo, a emoção de Dona Maria Lia, sua mãe, diante desse seu texto...

Muitos dos traços apontados por Marco Vilaça, afianço-lhes, permanecem na continuidade de sua produção de cronista.

Não sem razão assinou e assina, na condição de articulista contratado, textos dessa modalidade literária em inúmeros veículos da mídia impressa brasileira. Entre eles, a Folha de São Paulo, a Folha de Pernambuco, o Diário de Pernambuco, o Jornal do Commercio.

Em alguns desses textos, ultrapassa, efetivamente, os limites da crônica:  configuram-se dimensões de artigos. Vale dizer, revestem-se de perspectivas de análise crítica, implícita ou explícita. O Presidente Merval Pereira conhece como poucos esses matizes.

O amplo e seguro conhecimento da atividade jornalística de José Paulo Cavalcanti, a propósito, faz dele membro de Conselhos Editoriais de inúmeras revistas, em plena circulação. Quase uma dezena.

Mobilização do riso, ênfase no coloquial, dominam as mais de quinhentas miniestórias das Conversas de meio-minuto, em fase de publicação. Titular da narrativa, como na crônica, o autor. 

Comum a todas a base na realidade vivida e observada. Vivências. Situações. Retratos, instantâneos de episódios do cotidiano, reveladores do jeito de ser brasileiramente, flagrados e registrados pelo autor. Acentuado o anedótico. Em todas, o desfecho carregado de humor, e de alguma ironia.  Vá um exemplo:

Luís Fernando Veríssimo, escritor. Entrando no Beijupirá, em Porto de Galinhas. Grupo grande, com gente de fora. Millôr e outros. Um famoso político do interior pernambucano, então presidente da Câmara dos Deputados, gritou no fim do restaurante:

              - Luís Fernando Veríssimo, amigo velho, o que há de novo?

Silêncio absoluto. Todas as mesas pararam suas conversas, na    espera da resposta. Dava para ouvir as moscas. E ele, que não gosta de falar, respondeu apenas:

        - O que há de novo, deputado, é essa nossa amizade.

        O restaurante bateu palmas.

        Outro exemplo, revelador de suas aptidões, nessa modalidade de narrativa:

Padre Edvaldo, da paróquia de Casa Forte. Fez bela homilia sobre a Virgem Maria. Pouco depois, mandei para ele esse bilhete:

                Meu caro amigo pastor

                Este pobre pecador

                Vem lhe pedir um favor

                Pra quem vive andando ao léu

                O de falar com Maria

                Para ver se ela podia

                 Num gesto de cortesia

                Me fazer entrar no céu.

Observem os traços do estilo. O culto da frase curta. A pontuação pautada numa inflexão singular. As palavras rigorosamente necessárias ao que pretende comunicar. 

A historinha deixa perceber a intimidade do autor dos versos com as manifestações da cultura popular. Em especial nordestinamente pernambucana. Como profundo conhecedor. Como apreciador. Como criador. Como divulgador. É ver seus textos registrados em letra impressa e em gravações.

A leitura de uma composição de sua autoria no gênero dá a medida de sua arte nesses espaços:

         Tem quem cala e o que mente

         O da sombra e o do dia

         O que sabe e o que confia

         O que nega e o que consente

         Pois há dois lados somente

         No trajeto do oprimido

         E no barro percorrido

         Mais vale o corpo suado

         Que o tempo do outro lado

         É o tempo não vivido.

O domínio do criador e conhecedor se revela, por exemplo, no esclarecimento que acompanha a composição:

    “Bilhete a cientista político sobre frase sugerida por ele, “o tempo do outro lado é o tempo não vivido”. No gênero mote de sete – décima com versos de sete sílabas, em que os dois versos finais correspondem ao mote dado por terceiro”.

 

    Outro exemplo, por ainda mais elucidativo:

 

            Criança com fome e um pedaço de pão

                       O grito do gol, o apito de um trem

            O tempo que vai, o apito que vem

            O papel em branco, a caneta na mão

            O céu do pecado, o mar do perdão

            A dor de pedir, o prazer de cantar

            O riso inocente, a pena do olhar

            Assim dois amigos é o par perfeito

            Me sinto contente, estou satisfeito

            Cantando um galope na beira do mar

Trata-se de uma composição “no gênero galope à beira-mar” típico das cantorias nordestinas.  E o cantador José Paulo Pernambuco didatiza:

        “É décima de onze sílabas que imita o som do galope de um     cavalo. Criado pelo cantador José Pretinho, depois foi aprimorado     por João Siqueira do Amorim e José Virgulino de Souza ( Mergulhão).     Inspira-se na poesia dos trovadores medievais, sobretudo ibérica”

        Não resisto à leitura de um terceiro exemplo, para dar a medida da variedade de formas, a riqueza da arte poética do povo brasileiro:

                Eu pedindo, ela negando

                Eu querendo, ela com medo

                Eu contando o meu segredo

                Ela nem tava escutando

                Eu ficava perguntando

                Ela não me respondia

Tudo quanto eu mais queria

                 Era o que ela negava

                    Quando eu ia ela voltava

                    Quando eu voltava ela ia.

        Na explicitação do autor, ainda uma vez:

        “Verso que fiz para o disco Cantorias de Pé de Parede. No gênero Quando eu ia ela voltava. originário do mote de dois pés. Décima tradicional em sete sílabas, foi cantado pela primeira vez em disco por Zé Vicente da Paraíba e Passarinho do Norte no início dos anos sessenta.  Depois, em sua forma atual, por Ivanildo e Severino Feitosa. Em ambos os casos ainda sem o duplo sentido. Depois generalizou-se a ideia de, por associações, provocar situações ambíguas. Usualmente opondo homem e mulher – prática comum em músicas de duplo sentido, no interior do Nordeste”.   

     Mas isso segue dizendo pouco.

        A sua inquietação intelectual encontrou tempo, em meio as atividades explicitadas, para a atuação como coautor de 22 livros, 36 prefácios, posfácios e apresentações de livros entre outros escritos, também para o exercício do magistério. 

        Talvez seu organismo tenha incorporado a necessidade da alta carga de adrenalina que experimentou nos idos da juventude. Acreditem, senhoras e senhores:  o jovem José Paulo foi o primeiro surfista do Nordeste. E consagrado com participação em uma série de dez programas de televisão centrados no esporte.   

         Deixei para o final uma última profissão, acrescida de um alerta:

José Paulo Cavalcanti é senhor de uma vocação superlativa pela música! Desde a adolescência. Começou pelo piano. Chegou a participar de concertos. Quem ouviu o pianista, não economizou encômios. Na sequência, passou a dominar todos os instrumentos musicais. Na culminância, tornou-se maestro! Não duvido que tenha ouvido absoluto. Cuidemo-nos, tenores e barítonos discretamente escondidos nos espaços da moldura que nos trouxe a esta Academia. Acautele-se Gilberto Gil...

 

    Senhoras e Senhores, 

     Teci breves considerações sobre o jurista, o advogado, o gestor,  o pesquisador, o biógrafo, o professor, o cronista, o autor de miniestórias de humor, o jornalista, o poeta, o cultor e conhecedor da cultura popular, o surfista, o músico, o maestro. 

    Hannah Arendt afirma que “o divertimento, assim como o trabalho e o sono, constitui, irrevogavelmente, parte do processo vital biológico. ”(p. 258). 

    Como se depreende, o Acadêmico José Paulo Cavalcanti Filho não terá nenhum problema, daqui a oito anos, em termos de equilibrar o seu metabolismo. Até porque, ao que sei, cultiva, sistematicamente, o hábito da sesta vespertina.

    Mas sua ação múltipla e diversificada certamente deve muito à cumplicidade de dona Maria Lectícia. Ao longo de mais de cinquenta anos de casamento. A companheira, lado a lado. A parceira intelectual. A conselheira nos momentos decisivos. Senhora dos seus espaços. A conhecedora como poucos, do fazer e da essência da culinária pernambucana, a que dedica vários livros. A conferencista. A historiadora, autora entre outras obras, da História dos sabores pernambucanos e de Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos, reveladores de um discurso de leitura deliciosa. Que tem, no prelo, A mesa de Deus e, no Brasil e em Portugal, Açúcar-uma história. E que não faz por menos: ocupa uma Cadeira na Academia Pernambucana de Letras, eleita, como o cônjuge, por unanimidade. 

           Maria Lectícia Monteiro Cavalcanti é uma das grandes damas de Pernambuco. Da grei da saudosa e querida Maria do Carmo Vilaça, companheiras solidárias, no árduo e difícil percurso do existir. A mesma estirpe a que pertence a amazonense Ana Maria Maciel.      

 

    Senhor Acadêmico José Paulo Cavalcanti Filho:

    Permita-me a reiteração, relacionada à nossa Academia. É sempre pertinente fazê-lo. 

    Sobretudo quando comemoramos os seus 125 anos de história numa época de mudança planetária e acelerada de paradigmas, de visões de mundo, de ideologias em confronto, de radicalismos. 

    A Casa que ora o recebe também tem incorporados signos marcantes no traçado da imagem que a identifica como instituição.  Peço vênia ao presidente Merval Pereira, às senhoras acadêmicas e aos senhores acadêmicos para, ainda uma vez, assinalar, com breves reflexões, que A Casa de Machado de Assis  

    Privilegia o conhecimento. Uma tomada de posição carregada de humanidade. Herdeiros do Iluminismo, jamais poderíamos imaginar o surgimento, na atualidade do nosso viver e conviver comunitário, de uma perspectiva regressora na visão do mundo. O grande dramaturgo e contrarregra antes citado costuma surpreender com os seus testes de resiliência. No caso, ainda em dimensões endêmicas.  Mas não menos ameaçadoras.   

    Integra tradição e modernidade, em seu sentido mais amplo. Nessa instância, abre-se ao novo sem descurar dos traços que nos identificam como povo. Atenta à Cultura feita e à cultura fazendo-se, na realidade brasileira e na realidade mundial. 

    Celebra a memória. Ou seja- parodiando os versos da “Dança da desilusão”, samba de Marisa Monte e Paulinho da Viola: quando pensa no presente e no futuro, não se esquece do passado. E amplio ainda mais, com apoio na citada Hannah Arendt, o campo semântico deste enunciado: o que nele se explicita aplica-se à nossa condição de seres individuais, de seres sociais e de seres humanos. Nesse contexto, converte-se em contraponto do desiludir-se e da solidão: pensar no futuro sem esquecer o presente e o passado é poderoso nutriente da Esperança. É tempo de cultivá-la. Sobretudo diante da possibilidade de que certos signos que aflorem no presente fraturem a moldura que abriga a nossa condição brasileira de ser.  A lição é antiga e costuma ser garantia de sobrevivência. 

    Cultua a língua portuguesa e a literatura nacional, sem descurar de sua relação com a literatura universal. Atenta ao português brasileiro, norma paritária, do idioma português, entendido como um sistema comum a várias comunidades espalhada pelos cinco continentes. Até que os rumos do tempo a  conduzam a outras configurações. Quem faz a língua, um fato cultural,  é o povo.  

    Promove e estimula a prática da leitura de textos literários e não literários. 

        Desenvolve, há algum tempo, ampla atuação social, com presença acentuada na comunidade fluminense, mas que estende a outros estados brasileiros.  

    Estimula o convívio comunitário com as práticas estéticas. Assume, nesse mister, dentro e fora das suas dependências, espaços de formação de leitores de literatura, de plateias para o teatro e o cinema, converte-se em agente de divulgação por meio da internet. Dentro e fora da Academia.  

        Cultiva a convergência na divergência: uma de suas marcas  é a harmonia na construção do consenso entre seus pares. É uma Casa em que se cultiva a Amizade.

     Tudo isso e muito mais.  É o que a nutre. É o que a fortalece. É o que assegura a sua permanência e a sua atualidade. Até que a dinâmica do processo cultural em que se insere eleja outros valores e outra forma de existir e de atuar. Viver é adaptar-se.

    Da conjunção dos signos assinalados, emerge a aura com que a agraciou o imaginário do povo brasileiro. Desde o seu décimo ano de existência. 

         Somos as acadêmicas e os acadêmicos, imantados por ela. Sem a embriaguez das jactâncias. E plenamente conscientes de que nos compete manter permanente a sua luminosidade.  É nosso dever. É nossa obrigação.  

     Bem-vindo, Senhor Acadêmico José Paulo Cavalcanti Filho à Casa de Machado de Assis, doravante a sua Casa, a nossa Casa, uma instituição para o Brasil: a Academia Brasileira de Letras!

    Gratíssimo pela paciência e pela atenção.

                                    Domicio Proença Filho

                                10 de junho de 2022