Senhor Presidente, senhoras e senhores acadêmicos, minhas senhoras e meus senhores. Meu querido amigo acadêmico Alberto da Costa e Silva, que gentilmente se dispôs a me receber nesta noite. Seja-me permitido, antes de mais nada, evocar a figura de Guita Mindlin, minha mulher e querida companheira de quase 70 anos. Ela participou do festejo de minha eleição no dia 21 de junho, aqui no Rio, mas o destino trouxe um contraste entre uma grande alegria e uma tristeza profunda, arrebatando-a de nós poucos dias depois. Não podia deixar de lhe render esta lembrança saudosa.
Um discurso de posse na Academia Brasileira de Letras envolve uma grande responsabilidade, qual seja, satisfazer a expectativa de um texto que, de certo modo, justifique a eleição do novo acadêmico. Quando, em 1979, recebi o Prêmio João Ribeiro outorgado pela Academia como reconhecimento de atividades intelectuais, não podia nem de longe imaginar que, passadas quase três décadas, estaria falando, talvez até da mesma tribuna, sobre o prêmio maior, que é o de passar a pertencer ao quadro dos acadêmicos.
Devo, naturalmente, de início, agradecer às senhoras e senhores acadêmicos a generosidade do irrecusável convite que recebi de alguns deles para me candidatar ao preenchimento da vaga da Cadeira 29 e, em seguida, pelo carinhoso acolhimento com que minha candidatura foi referendada por expressiva votação. A tradição da Academia é que o novo membro, ao ingressar no quadro social, faça o elogio ou referências aos seus antecessores. Essa tradição vem da origem de formação da Academia Brasileira de Letras que seguiu o modelo da Academia Francesa, onde esse tema constitui o principal requisito. Poderia segui-lo, tanto mais que foram muito poucos os meus predecessores, a começar pelo patrono Martins Pena e pelos acadêmicos Arthur Azevedo, Vicente de Carvalho, Cláudio de Sousa e, finalmente, o saudoso acadêmico Josué Montello.
Pareceu-me, entretanto, que isso não seria suficiente, e em conversa com o grande crítico e meu grande amigo Antonio Candido, a quem disse que queria tratar de um tema mais amplo, ele não só concordou comigo, como me lembrou o precedente deixado por Buffon, o grande naturalista francês que, ao tomar posse de uma cadeira na Academia Francesa no século XVIII, resolveu tratar em seu discurso apenas de um tema completamente estranho à tradição, fazendo uma conferência sobre o Estilo, da qual a frase lapidar “o estilo é o homem” permanece até hoje como profunda verdade. Buffon não chegou a falar sobre seus predecessores, mas eu não vou tão longe, pois falar dos que me precederam é não apenas um dever de gratidão, como atende a uma preferência pessoal minha. Depois disso, no entanto, minha proposta resultante da conversa com Antonio Candido foi de convidar a audiência, parodiando o velho Xavier de Maitre, a uma viagem em torno de minhas atividades culturais e da Biblioteca, que está completando 79 anos de formação neste ano. Espero que a exposição que daí surgir seja do agrado dos que me estão ouvindo. Coisa semelhante foi feita, de certo modo, pelo novo acadêmico Nelson Pereira dos Santos, que concentrou no cinema a maior parte de seu discurso. A razão de minha idéia é o pressuposto de que o meu amor de vida inteira à leitura e ao livro tenha sido uma das razões que levaram as senhoras e senhores acadêmicos a me eleger. Antes disso, no entanto, vamos olhar um pouco para o passado da Cadeira 29 que neste momento estou passando a ocupar.
Creio que é importante assinalar que as obras, tanto de Martins Penna, patrono da Cadeira 29, como as de Arthur Azevedo, seu primeiro ocupante, foram leituras que me encantaram em minha remota mocidade e, até hoje, uma releitura é sempre fonte de prazer. Não vou me deter na enumeração e análise de suas obras, assim como das de meus outros predecessores, porque isso já foi objeto não só de muitos discursos acadêmicos, como de grande número de estudos literários que meus ouvintes certamente conhecem. Vicente de Carvalho foi um grande poeta paulista, hoje injustamente menos lido e ouvido, mas que inegavelmente é um dos grandes nomes da poesia brasileira. Cheguei a saber de cor um grande poema seu, “Palavras ao Mar”, e “O Pequenino Morto”, do qual possuo, aliás, o original manuscrito autógrafo publicado em 1904 pelo jornal O Estado de S. Paulo, que alegando não publicar poesia, abriu exceção para o primoroso “Pequenino Morto”, que só foi incluído em livro em 1908, na primeira edição de Poemas e Canções. A tendência de diminuir a importância do Parnasianismo me parece um grande equívoco, pois não foram poucos os poetas que o engrandeceram. O falecimento de Vicente de Carvalho deu lugar à eleição de Cláudio de Sousa, escritor e teatrólogo que teve grande voga na primeira metade do século passado. Uma de suas obras – De Paris ao Oriente – teve uma particularidade curiosa: foi a narrativa de uma viagem que Cláudio de Sousa fez ao Oriente, em companhia de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade. Este se inspirou, com sua irreprimível irreverência, na pessoa de Cláudio de Sousa quando escreveu Serafim Ponte Grande.
Também de Josué Montello parece-me desnecessário enumerar e/ou analisar suas obras que ainda estão muito vivas no interesse do público literário. Tive com ele vários encontros cordiais, nos quais descobri em Josué Montello o erudito bibliófilo e, como acontece nas conversas entre bibliófilos, ele me falava de manuscritos que possuía, deixando-me com água na boca, e que eu procurava compensar com outros de nossa Biblioteca que faltavam na dele, e quem ficava com água na boca nessas ocasiões era ele e não eu. No entanto, o mais importante nos contatos que tive com Josué Montello foi descobrir nossas grandes afinidades literárias, pois ele tinha ilimitada admiração pelos Ensaios de Montaigne que foram também, através da vida, uma de minhas leituras favoritas, tanto assim que uma filha minha, Diana, arquiteta que se dedica às artes gráficas, me fez a surpresa de desenhar meu ex-libris tendo como divisa a frase de Montaigne do capítulo sobre os livros: “Je ne fay rien sans gayeté”. Nem sempre é possível fazer tudo com alegria, mas pelo menos procuro percorrer sempre esta trilha. Um dos orgulhos da Biblioteca é, aliás, a primeira edição completa dos Ensaios, incluindo pela primeira vez o terceiro livro, publicada em Lyon, em 1588. Não foi apenas em Montaigne, entretanto, que nossos caminhos se cruzaram. Houve inúmeros outros, como Stendhal e Flaubert e diria que, principalmente, com Marcel Proust, autor que até hoje me seduz, desde os anos 40, quando li pela primeira vez sua obra fundamental A la Recherche du Temps Perdu. Já a li cinco vezes, com 10 anos de intervalo entre cada leitura, e todas elas trazem descoberta e deleite. Falar de Josué Montello apenas mencionando suas obras seria uma injustiça, pois suas preferências literárias devem tê-lo, certamente, influenciado. Não sei se seria o escritor que foi se não tivesse lido a obra dos autores em que nossos interesses coincidiram.
Vamos agora, se meus ouvintes concordarem, à viagem em torno da Biblioteca e de meus interesses culturais.
Tendo tido o privilégio de crescer num ambiente cultural, meus pais e irmãos mais velhos lendo permanentemente, passei também a ler as obras chamadas “sérias” depois das leituras infantis, começando com as Lendas e Narrativas, O Monge de Cister e O Bobo, de Alexandre Herculano, aos 12 anos de idade. Foi ele o primeiro autor que criou em mim o gosto pela literatura de ficção. Esta foi uma das vertentes de minhas leituras que continua viva até hoje. Duas outras vertentes são a História, principalmente a História do Brasil, e o gosto pelos autores clássicos que me levou à paixão pelo livro raro. São, pois, três vertentes que constituíram o fulcro da Biblioteca que vim a formar através da vida. Curiosamente, esses interesses se definiram muito cedo, pela ficção literária aos doze anos de idade, pois na mesma ocasião li O Ateneu, de Raul Pompéia, e as duas outras aos 13 anos, puramente por acaso. O acaso teve, aliás, um papel extremamente importante em tudo e para tudo que me aconteceu na vida.
Aos 13 anos, quando comecei a freqüentar os sebos de São Paulo, encontrei uma edição portuguesa do Discurso sobre a História Universal, de Bossuet, publicado em Coimbra, em 1740, data que me fascinou. Foi a semente da busca de livros raros, embora mais tarde tivesse aprendido que a data das edições é um elemento secundário em sua importância. Mas a semente foi Bossuet, que floresceu e cresceu muito além do que eu poderia ter imaginado. No mesmo ano recebi de presente de aniversário um exemplar da História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, o grande cronista do século XVII que detonou meu interesse pelos estudos brasileiros. Era uma edição simples, comercial, da Companhia Melhoramentos, mas muito comentada e trazendo uma considerável bibliografia de obras sobre História do Brasil. Ingenuamente, procurei consegui-las naquela época, mas já eram todas raras e de acesso difícil. Mesmo assim fui, aos poucos, conseguindo exemplares, e hoje a maior parte das obras constantes daquela edição de Frei Vicente se encontram na Biblioteca.
Uma facilidade que tive foi de ler indistintamente em português e francês, que aprendi aos seis anos de idade e se tornou meu segundo idioma e, a partir dos 15 anos, também o inglês. Italiano e espanhol vieram depois, sem maiores problemas.
A partir desse início inesperado, surgiu o processo de formação da Biblioteca sem que, no entanto, ela tivesse sido planejada. Cresceu ao sabor de minhas leituras e a leitura continuou sendo o fulcro e a razão de ser de sua existência. Para seu crescimento, no entanto, foi importante que ela se tivesse tornado um interesse central de vida. Exigiu a leitura de obras de referência sobre a história literária brasileira e estrangeira, leitura de catálogos e na, base disso, o exercício da garimpagem. Os livros não caem do céu: a gente os procura e, coincidentemente e principalmente em matéria de livros raros, eles também nos procuram. A aventura da garimpagem provoca, mesmo em céticos como eu, a suspeita de que alguma coisa sobrenatural possa estar protegendo as buscas do leitor apaixonado. Chego a pensar que embora a leitura seja uma fonte inesgotável de prazer, a garimpagem provoca um prazer diferente, às vezes superior ao outro. Quando se encontra uma obra procurada durante décadas, o coração bate mais forte (felizmente o livreiro antiquário não percebe esse batimento cardíaco...), ao passo que depois de adquirido o livro, já acomodado na estante, seu manuseio e leitura proporcionam prazer, mas a emoção propriamente dita deixa de existir ou não é a mesma.
São numerosos os casos que evidenciam a existência do fator sorte, além do conhecimento. Se os que me ouvem tiverem um pouco de paciência, poderia dar alguns exemplos dentre muitos, em que se pode ter idéia do que representa a atração da garimpagem. Quando chego numa cidade estrangeira, uma das primeiras coisas que faço é procurar nas páginas amarelas os principais livreiros antiquários. Certa vez, em Santiago do Chile, onde só encontrei o nome de um antiquário, fui procurá-lo, mas esbarrei na porta fechada. Voltei mais tarde, e vendo uma pessoa dentro da livraria, fui abrindo a porta de vidro quando o livreiro me barrou: “Estamos en vacaciones”. “Yo también”, respondi. E isso estabeleceu logo uma relação informal. Perguntei se tinha obras sobre o Brasil, mas ele me disse que a especialidade da livraria era literatura e teatro francês, nada tendo sobre o Brasil. Enquanto falávamos, no entanto, vi numa das prateleiras do alto A Arte da Língua Guarani, do Padre Montoya, e disse ao livreiro que aquilo era uma coisa de interesse brasileiro. “Isso”, disse ele, “é o resto da biblioteca de um historiador brasileiro que comprei há muito tempo, um tal de Porto”. “Porto Seguro?”, perguntei eu. O que ele confirmou. “E onde estão esses livros?” “Num depósito, mas não dá para ver agora nas férias”. Sem perder a coragem, insisti e acabei conseguindo marcar uma visita ao depósito no dia seguinte, onde se achavam os livros que Francisco Adolpho de Varnhagen, o Visconde de Porto Seguro, tinha em seu escritório quando faleceu em Viena em 1878. Sua biblioteca tinha ido para o Itamaraty, mas os papéis e livros mais próximos dele foram levados para Santiago por sua viúva, que era chilena. Ali encontrei coisas preciosas, como provas de folhetos corrigidas por ele e que tinham permanecido inéditas, e a segunda edição da História do Brasil com numerosas alterações manuscritas que não figuram nas edições subseqüentes. Um manancial, enfim, dos tais de fazer o coração bater mais forte.
Outra coisa se deu em Paris, em 1946, para onde eu tinha ido formar o estoque de uma livraria de livros raros que um amigo meu, também bibliófilo, me propusera abrir. Inicialmente, ao receber a proposta, eu tinha dito que interessante seria, mas inviável, pois nem ele nem eu tínhamos o dinheiro necessário, ao que ele esclareceu que um primo dele se dispusera a entrar no empreendimento com 500 contos de réis, o que mudou o quadro completamente. Lá fui eu passar 3 meses na Europa comprando livros escolhidos um a um. Dediquei-me especialmente à vertente brasileira, mas trouxe assim mesmo coisas importantes de literatura estrangeira, como a primeira edição ilustrada dos Triunfos, de Petrarca, publicada em Veneza em 1488, ou a Crônica de Nuremberg, publicada em 1493. Mas eu queria especialmente trazer um exemplar da Viagem pitoresca, de Debret. Acontece que havia muitos brasileiros em Paris pois, além de tudo, estava em curso a Conferência da Paz. E quando se entrava numa livraria pedindo livro sobre o Brasil, a resposta invariável era ou que nunca tiveram nada, ou que o que possuíam tinha sido vendido. Assim mesmo, na Rue Bonaparte, resolvi entrar numa livraria, embora na vitrine só houvesse obras estrangeiras. À minha pergunta sobre a existência de obras sobre o Brasil, o livreiro disse que provavelmente eu só estava interessado em obras importantes, mas aí não tinha nada para oferecer. Assim mesmo pedi que mostrasse o que tinha e ele me deixou por uns 15 minutos no escritório, voltando com uns quinze ou vinte livros empilhados sobre os três grandes volumes do exemplar de Debret. Eu estava disposto a pagar, o que naquela época era substancial, 150.000 francos. Mas quando vi o exemplar e perguntei quanto ele pedia, fui surpreendido com uma declaração categórica: “Esta obra, meu senhor, só posso vender por 10.000 francos!” Provavelmente a obra estava havia anos no depósito e a operação tornou duas pessoas felizes, ele e eu.
Comprei alguns milhares de livros e, quando chegavam os pacotes, nossa alegria era grande em ver o que eu tinha adquirido. Acontece, porém, que quando entrava um cliente, ficávamos aborrecidos, pois a idéia de vender não era nada sedutora. Só que tínhamos obrigação moral de vender obras que gostaríamos de conservar, em virtude da contribuição financeira do terceiro sócio. Tive o cuidado de pedir a cada comprador que falasse comigo se algum dia quisesse vender o que estava comprando, e isso valeu para que nos 15 ou 20 anos seguintes (a livraria já não era nossa havia muitos anos) conseguisse recomprar a maior parte das boas obras que tinham sido vendidas para nossa tristeza. Um grande amigo meu, Luiz Camillo de Oliveira Netto, tinha me ponderado que colecionar livros e vendê-los eram duas coisas incompatíveis. Sua observação se mostrou plenamente verdadeira, ou se compram livros, ou se vendem, mas as duas coisas juntas, só muito excepcionalmente funcionam.
Foi aliás, naquela viagem que conheci Guimarães Rosa, que fazia parte da delegação brasileira à Conferência da Paz. Fizemos logo boa camaradagem e, como os trabalhos da Conferência só se iniciassem à tarde, encontramo-nos várias vezes durante o mês em que permaneci em Paris, percorrendo livrarias e tendo boas conversas. Eu o tinha achado simpático e inteligente, mas ele não me deu a menor indicação de que fosse escritor. Sua preocupação com a elegância fez com que eu achasse que não valeria a pena ler Sagarana que, na ocasião, estava fazendo grande sucesso. Só o fui ler quando se publicaram Corpo de Baile e Grande Sertão, por insistência de um amigo grande leitor. Inútil dizer que as obras de Guimarães Rosa passaram a ser, durante toda a vida, leituras apaixonadas e constantes.
A livraria, que se chamou Parthenon foi, no entanto, apenas um acidente na formação da Biblioteca cujo crescimento foi se processando continuamente, desde 1927, tanto com aquisições no Brasil como no exterior, nas viagens que minha mulher e eu fazíamos e onde ela me encorajava nas extravagâncias que eu hesitava em fazer. Parece-me interessante falar mais de leituras e de minha relação com escritores e leitores amigos. Antes disso, no entanto, creio que devo mencionar a importância de 1930 em minha vida. Ainda outra vez por acaso, entrei na redação do Estado de S. Paulo com quinze anos e meio, sendo o mais moço dos redatores e repórteres do jornal. Esse trabalho teve grande importância em minha vida, não apenas porque aprendi a escrever com simplicidade e clareza para ser acessível a um público médio, como comecei a adquirir uma visão da vida brasileira em que a Revolução de 30 modificou a conformação do país. O Estado de S. Paulo foi, aliás, um núcleo da conspiração da Revolução de 30 e aí se deu um episódio curioso. Eu era o único na redação a falar inglês e por isso o Dr. Júlio de Mesquita Filho, diretor do jornal, me chamava para sua sala para transmitir mensagens a Vivaldo Coaracy, chefe da redação do Rio, a fim de driblar a censura que era feita por escuta telefônica, sem que os censores soubessem inglês, pois a língua estrangeira predominante na época era o francês. Com isso, eu menino de quinze anos e pouco, fui tendo conhecimento de mensagens confidenciais. Passei a conhecer os meandros da política e da sociedade, o que me proporcionou a possibilidade de acompanhar desde aquele ano o desenvolvimento brasileiro, suas lutas e conquistas. Vivi duas ditaduras - o Estado Novo e o Regime Militar - e minha tendência liberal me direcionou politicamente para a oposição ao autoritarismo e para o respeito aos direitos humanos, violados tanto num regime como no outro.
O jornalismo da época era bastante distinto do de hoje em dia. As redações eram menores, o Estado era visitado diariamente por políticos de oposição e pelos principais intelectuais da época, o que tudo ajudou bem cedo meu desenvolvimento pessoal. Assim como o ano de 1927 permitiu a formação das vertentes principais da Biblioteca, o ano de 1930, e os que se lhe seguiram, foi fundamental para meu conhecimento da literatura brasileira e estrangeira. Já mencionei a leitura, aos 12 anos, de Alexandre Herculano e Raul Pompéia. Logo em seguida li Iracema e O Guarany, de Alencar, assim como A Retirada da Laguna, do Visconde de Taunay. Ele me entusiasmou a ponto de ler toda a sua obra, o que valeu a pena, apesar de um tanto excessivo. Comecei a ler os autores nordestinos – José Lins do Rego, Jorge Amado, Amando Fontes, Graciliano Ramos e Rachel de Queiroz, entre outros. Paralelamente, nessa década li integralmente a obra de Anatole France e os principais romances de Romain Rolland, o grande escritor pacifista que na Primeira Guerra teve de deixar a França por essa sua convicção política. A leitura desses dois autores teve aspectos curiosos. Estava no maior entusiasmo com Anatole France quando dei com uma observação de Romain Rolland sobre ele, dizendo que Anatole podia ser comparado aos gigantes que, não conseguindo romper as cadeias que os prendem, divertem-se com elas. Isto amainou um pouco meu entusiasmo por Anatole France, mas voltei a considerá-lo um escritor muito sedutor e, nos dias de hoje, a meu ver, injustamente esquecido, pois suas sátiras políticas e descrições históricas, como Les Dieux ont Soif, sobre o terror na Revolução Francesa, são magistrais. O destino de Romain Rolland foi, aliás, parecido com o de Anatole, pois seus grandes romances Jean Christophe e L’Âme Enchantée, obras admiráveis, também hoje estão injustamente esquecidas.
A década de 30 foi profícua em matéria de leitura brasileira e estrangeira. Dos nossos, além dos ficcionistas nordestinos, li Casa Grande & Senzala e Os Sertões. Lembro-me que achei empolada e de leitura difícil a linguagem de Euclides, e um tanto prolixa a de Gilberto Freyre, mas em releituras posteriores consegui ver a importância destas duas obras, assim como das de Sérgio Buarque de Holanda. Na leitura dos Sertões creio, aliás, embora isso possa parecer uma heresia, que não seria nada mau começar a leitura pela parte da Guerra, depois o Meio e, por fim, o Homem. Na leitura convencional, imagino que muita gente não vá até o fim.
A leitura incluiu os principais autores brasileiros do século XIX e os grandes romances da literatura francesa de Stendhal a Flaubert. Foi, como se vê, uma leitura um tanto desordenada, mas que me deixou um resíduo cultural básico, mesmo em minha visão de hoje. Em meio aos que posso classificar de modernos, houve também Platão, Plutarco, o teatro grego e romano, Homero e Virgílio, de quem ainda hoje sei de cor alguns trechos em latim. Naturalmente, não faltou Shakespeare, a trindade francesa Molière, Racine e Corneille e os grandes autores russos, especialmente Tolstói e Dostoievski .Boa parte desses autores, li durante as aulas na Faculdade de Direito que freqüentei de 1932 a 1936. A maior parte dos professores lia durante 50 minutos, em voz monótona, suas preleções, cujas apostilas eu lia em casa em 15 minutos. Sentava-me, pois, no fundo da sala e mergulhava nas leituras de minha preferência. Ia me esquecendo de Montaigne que, na faculdade, li pela primeira vez.
Não é fácil esquematizar a seqüência das leituras década por década, mas parece-me que vale a pena tentar algumas indicações. Marcante na década de 40 foi a descoberta de Proust. Quando iniciei sua leitura esbarrei no que me parecia ser uma dificuldade insuperável – a falta de parágrafos. Deu-se então uma coisa curiosa. Em casa de Luiz Camillo de Oliveira Netto encontrei uma noite Tristão de Athayde, nosso grande Alceu de Amoroso Lima, que tinha sido, com Rubens Borba de Moraes, um dos introdutores de Proust no Brasil, já nos anos 20. Mencionei a dificuldade que sentira e, numa tentativa de ser espirituoso, que geralmente não funciona, disse que Proust descrevia o sono tão bem que o leitor adormecia. “Você está muito enganado rapaz”, disse-me Tristão de Athayde. “Você deve ler as 50 primeiras páginas com toda a dificuldade que possa encontrar e, se no fim dessas 50 páginas, não tiver penetrado no universo de Proust, leia mais 50 com o mesmo esforço e nunca mais você deixará de ler Proust”. Segui o conselho e vi que ele tinha razão, tanto que, como disse lá atrás, já li 5 vezes a Recherche, com dez anos de intervalo entre cada leitura.
Autores menores, mas mesmo assim ótimos, como André Gide e Roger Martin Du Gard, também foram descobertas da década de 40 , assim como as Mil e uma Noites e o Decameron, de Bocaccio. Na década de 50 li toda a Comédia Humana, de Balzac, o que me permitiu ver o gigantismo do escritor. Sua descrição da sociedade, dos tipos humanos, das intrigas do funcionalismo, entre muitas outras coisas, é ainda hoje de surpreendente atualidade. Lidando com mais de 2.000 personagens, algumas aparecendo em primeiro plano e outras como pano de fundo, o que se reverte em outras obras, vê-se claramente a incrível fertilidade de Balzac. É surpreendente como ele, não tendo filhos, pôde escrever, por exemplo, o Père Goriot, onde penetra nos mais profundos arcanos da maldade humana.
Na década de 60, as principais leituras foram de autores latino-americanos , de Borges a Octavio Paz, com os principais autores de cada país entre eles. Continuar a seqüência cronológica tornaria a lista de leituras grande demais, de sorte que só vou destacar mais alguns nomes, ficando subentendido que li as principais obras de literatura inglesa, italiana, russa, alemã e espanhola, além da literatura portuguesa, de onde Camões e Gil Vicente não podem ser ignorados e Saramago entrou nos anos oitenta, já eliminada a dificuldade da falta de parágrafos que eu tinha vencido com a leitura de Proust. Saramago, a meu ver, bem mereceu o prêmio Nobel e se praticamente todos os seus livros são bons, o Memorial do Convento e o Evangelho Segundo Jesus Cristo se destacam esplendorosamente. De Saramago, tenho uma carta enviada enquanto ele escrevia o Evangelho, curiosamente dizendo que este lhe metia medo. Ficamos amigos através dos livros, como aconteceu com vários escritores, mas não vou entrar nessa seara, lembrando apenas o saudoso Francisco de Assis Barbosa que foi, aliás, quem me saudou quando recebi, aqui na Academia, a Medalha João Ribeiro, além de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Manoel de Barros.
Falando da Biblioteca, seria cansativo para os que me ouvem, ou talvez até pretensioso, estar mencionando as principais raridades mas, além das duas versões da primeira edição dos Lusíadas, uma com o pelicano à direita do leitor e a outra à esquerda, creio que deve ser dito que a Biblioteca possui o Sonho de Poliphilo, publicado em 1499, por Aldus Manucius, erudito editor de Veneza, que revolucionou o mundo editorial da época, tornando-se um dos mais belos livros publicados em todos os tempos.
A descrição da Biblioteca também seria fastidiosa, mas creio que uma referência ao critério com que foi sendo formada seria necessária. Disse, de início, que ela cresceu ao sabor de minhas leituras e que estas foram indisciplinadas, mas cedo me convenci de que alguma ordem deveria existir sob pena de ela se transformar numa acumulação desordenada de livros. Isto me levou a estabelecer certas vertentes que são basicamente as seguintes: livros sobre o Brasil, dos mais variados assuntos, para formar um acervo de estudos brasileiros. Esta vertente, que inclui Literatura, História, Viagens, História Natural, Arte etc., é quase por si só uma biblioteca. As outras vertentes são a literatura universal, as obras de referência e a história do livro, com exemplares do que este foi desde o século XV até os nossos dias, pois tenho especial interesse pela arte gráfica, não sabendo se fui gráfico numa encarnação anterior ou se virei a ser numa encarnação futura.
O setor de obras de estudos brasileiros acabou formando um conjunto indivisível, o que levou muitos amigos a nos perguntarem qual seria o seu destino. Isso também nos preocupou durante muitos anos, e chegamos à conclusão de que um conjunto dessa natureza deveria se tornar um bem público, pois tinha excedido o que seria razoável para uma propriedade particular. Além disso, não podia correr o risco de ser fragmentado, pois o material nele contido constitui fonte de pesquisa que, sem falsa modéstia, acho que posso qualificar de importante. Decidimos então, Guita e eu, e nossos quatro filhos, doar nossa Brasiliana à Universidade de São Paulo, que está construindo um prédio para recebê-la e formou uma unidade universitária denominada Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Com isso esperamos formar no futuro um centro de estudos brasileiros composto por nossa Biblioteca, pelo acervo do Instituto de Estudos Brasileiros da USP e pela Biblioteca de Rubens Borba de Moraes, de quem adiante falarei, tudo representando uma fonte de estudo e pesquisa que não existe em nenhuma outra universidade brasileira e, muito menos, fora do Brasil.
Tive a veleidade de ser uma espécie de editor bissexto, publicando fac-símiles de obras difíceis de se encontrar de literatura brasileira, especialmente do Modernismo, pois que, não tendo sido este tomado a sério pelo grande público na ocasião, as obras não se conservaram e se tornaram raridades, como a Revista de Antropofagia, a Verde de Cataguases, ou A Revista, de Carlos Drummond de Andrade, além de outras. Essas reedições foram feitas sempre com a colaboração e programação gráfica de minha filha Diana. Quando fui Secretário de Cultura do Estado de São Paulo publiquei uma série de obras de problemático sucesso comercial mas de grande interesse intrínseco, como a obra completa de Amadeu Amaral ou as Memórias de Paulo Duarte, assim como ensaios literários sobre o Modernismo e Guimarães Rosa.
Tenho também uma desculpável obsessão por manuscritos e procurei reunir, na Biblioteca, alguns de destacados escritores da era pré-computador. Posso mencionar originais manuscritos ou datilografados com numerosas correções autógrafas de Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre, Banguê, de José Lins do Rego, Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, O louco do Cati, de Dionélio Machado, Epigramas Irônicos e Dentimentais, de Ronald de Carvalho, e isto sem falar de duas estrelas que são Vidas Secas, de Graciliano Ramos e Grande Sertão, de Guimarães Rosa. São numerosos também os manuscritos históricos e cartas e documentos autógrafos dos principais escritores brasileiros.
Classifiquei a Biblioteca de indisciplinada porque considero que os livros são feitos para nós e não nós para os livros, de sorte que as vertentes não são rígidas e quando encontro alguma obra que me seduz mas não se enquadra em qualquer das vertentes, nem por isso deixo de comprá-la. Da vertente Literatura não falei em poesia que tem um papel importante na Biblioteca e em nossa vida. Tanto a poesia brasileira desde Gregório de Mattos e autores mineiros, até os principais poetas do século XIX e do Modernismo brasileiro se encontram nas estantes, assim como os grandes nomes da poesia universal, da qual se tivesse de destacar um nome, escolheria Baudelaire, de cujas Flores do mal a Biblioteca possui a edição original com as peças censuradas e até uma pré-edição parcial publicada na Revue des Deux Mondes. Sempre tive a mania de ler poesia em voz alta, com a sorte de minha mulher preferir ouvir a ler poesia, o que permite imaginar quanta poesia foi lida em casa nestes quase setenta anos de convivência.
Tive dois grandes interlocutores durante a formação da Biblioteca, que me fazem falta até hoje: Luiz Camillo de Oliveira Netto, que foi diretor da Biblioteca do Itamaraty, da qual foi demitido por ter sido um dos autores do Manifesto dos Mineiros, escrito em 1943, contra o Estado Novo, químico de formação, homem de grande cultura literária, histórica e musical, com excelente biblioteca. O outro, - o primeiro, aliás – foi Rubens Borba de Moraes, autor da Bibliographia Brasiliana que contém a descrição de todas as obras raras sobre o Brasil, de 1504 até 1900, obra que se pode classificar de monumento de erudição, e de outros livros sobre bibliografia brasileira, além de um delicioso livrinho publicado em 1924, Domingo dos Séculos, em que já fala de Proust. Rubens possuía uma excelente biblioteca brasiliana que nos deixou em testamento Foi diretor da Biblioteca Nacional, onde o substituiu Josué Montello e logo depois convidado para formar e dirigir a Biblioteca da ONU. Foi um leitor incansável da literatura universal, como Luiz Camillo, ambos dotados de grande senso de humor, o que certamente foi um dos elementos de nosso fraterno entendimento.
Um terceiro amigo que foi muito mais do que interlocutor, um verdadeiro irmão mais moço, é nosso grande Antonio Candido. Nossas afinidades se encontraram quando ambos ainda éramos solteiros e se prolongaram através da vida inteira até hoje. Foi esta amizade que me levou a conversar sobre minha entrada nesta Academia e a trocar idéias com ele sobre o discurso de posse em que ele deu o palpite que de início mencionei. Uma de minhas frustrações na vida foi não ter sido seu aluno, mas creio poder dizer que com ele aprendi muita coisa em nossos freqüentes encontros, que espero se prolonguem ainda por alguns bons anos.
Falando sobre amizade, ia me esquecendo de mencionar aqueles autores que conheci quando trabalhava na redação do Estado de S. Paulo, dos quais me tornei amigo, por exemplo, Guilherme de Almeida, Antonio de Alcântara Machado, Léo Vaz e Affonso Schmidt, entre outros. Os amigos que tive através da vida são numerosos mas se se considerar que a leitura de um bom livro faz sentir uma afinidade e uma amizade virtual com o autor, então meus amigos, como resultado da leitura, são inúmeros. Tenho pena, por exemplo, de ter tido apenas um contato superficial com Mário de Andrade, mas isso não impede que de certo modo ele faça parte de minha vida. Ora, posso dizer que o mesmo acontece com Machado de Assis ou Proust, em que a falta de conhecimento pessoal não diminui o papel que até hoje exercem em minha vida. E isso multiplicado pelos milhares de livros que li no curso da existência, faz com que eu pertença, na realidade, a este mundo admirável que é o mundo dos livros e que também virtualmente tenha contato através dos livros com numerosas academias de letras pelo mundo afora. Isso acontece aliás, também com as senhoras e os senhores acadêmicos. Daí o prazer que senti ao ser eleito para esta casa onde, aliás, tenho a alegria de contar com muitos e bons amigos. Mas estou consciente de que isso envolve uma grande responsabilidade. Ainda não tenho uma idéia clara dos trabalhos que aqui se processam, mas os de que tenho conhecimento são de alto nível cultural e declaro-me pronto a colaborar em tudo quanto esteja ao meu alcance, para dar a esses trabalhos e a outros que venham a ser empreendidos, minha colaboração. O estímulo à leitura e ao livro está na ordem do dia como uma responsabilidade social interativa. Teria grande interesse em saber se uma atividade neste sentido faz parte dos programas culturais da Academia. Se faz, tanto melhor, mas se isso ainda não está sendo feito, gostaria de encerrar este pronunciamento com uma primeira proposta de cooperação pois, despertar na grande massa o interesse pela leitura, antes de tudo como fonte de prazer, constitui, a meu ver, um fator essencial de desenvolvimento.
Aqui se reúnem grandes valores literários a que estou longe de poder me comparar, mas será para mim motivo de prazer participar de trabalhos que pretendam realizar.
Agradeço, mais uma vez, senhoras e senhores acadêmicos, sua generosa acolhida.
José Mindlin