Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > José Honório Rodrigues > José Honório Rodrigues

Discurso de posse

São antigas minhas relações amistosas com esta Casa, e há muito sou devedor, senhores acadêmicos, de vossa indulgência. O Prêmio de Erudição que me conferistes em 1937 serviu-me de animação por todos estes anos de inteiro devotamento aos estudos de História do Brasil. Com ele abristes e abençoastes uma carreira literária.

Um dos vossos, senhor e dono da minha amizade, que sempre acolheu minha obra na seção de Crítica Literária que então dirigia, agora ausente para tristeza nossa, espírito esclarecido, leal e honrado, humanista de formação, enraizado brasileiro – Múcio Leão, foi um dos primeiros animadores da minha candidatura.
 
Sois, todos vós, credores do meu reconhecimento, e bem sei avaliar a imensa significação cultural da Academia Brasileira de Letras como a mais alta sociedade intelectual do País, como um ministério de comunhão literária e cultural, que inclui a colaboração e a fraternidade, e não exclui a verdade e a humildade.

A entrada para a Academia não significa uma alienação de ideais e princípios literários ou culturais que possuímos. Ela tem sido e é muito mais aberta e ampla que a Universidade, nas Faculdades e Institutos de recente criação.

A Academia Brasileira de Letras não é neutra; é sensível a valores diferentes, a idéias várias, a todos os gêneros e a todas as opiniões. “A inspiração superior que nos congregava”, escreveu Rodrigo Octavio, “era tão alta e salutar que a Academia, reunindo partidários e apologistas de credos políticos, religiosos e sociais adversos e irreconciliáveis, jamais foi teatro do mais ligeiro e sutil desentendimento de seus membros”. E Barbosa Lima Sobrinho disse com seu notório acerto, ao ser recebido em 1938: “Aqui podem caber todas as escolas; aqui se fazem representar os diferentes setores da atividade intelectual.”

Mas aqui, sobretudo, se operam os prodígios da solidariedade e da cooperação, a aventura da convivência e da compreensão. Aqui se pode realizar o diálogo humano, fraternal e pacífico, para que a verdade seja percebida à luz clara do dia e os valores e bens da Cultura sejam promovidos.

Isso não significa que as academias, as universidades e seus membros não sejam influenciados pela História e pela sociedade dominantes, e que sua própria liberdade não dependa de um contexto de permissão que busca suas raízes na teoria da sociedade liberal. As premissas são muitas vezes relutantes, ou limitadas pelas forças da incompreensão e da inércia cultural, e muitas vezes seriamente comprometidas pelos elementos anti-intelectuais que habitam os regimes autoritários.

Nós exprimimos este ideal, como a liberdade acadêmica, ou a busca desinteressada da verdade, ou a Lehrfreiheit. O conceito formal liga o indivíduo ao dever e direito institucionais. A liberdade acadêmica abriga todos os inconformismos e dissidências e só com estes se mantém, se redescobre e se perpetua o passado humanístico e se preparam as inovações criadoras do futuro.

Nada disso foi estranho às três figuras – o patrono e os dois ocupantes – que imortalizaram esta Cadeira, aos quais peço a inspiração que me guie nesta hora.

A história da Poltrona 35, como toda a boa e verdadeira história, é feita de tecido inconsútil. Nela dois traços capitais unem indelevelmente as três sombras acolhedoras que relembro agora: o sentimento paterno e a idéia liberal.

SENTIMENTO PATERNO

O desejo dos dois Rodrigos foi sempre a perfeita identificação paterna. Quando se funda a Academia, Rodrigo Octavio hesita, a princípio, entre Raul Pompéia, seu amigo, moço como ele, morto aos 32 anos, e Tavares Bastos, amigo de seu pai, outro moço morto aos 36 anos.

Ele mesmo escreveu: “Cedi ao Domício o Pompeia e tomei Tavares Bastos. Eu queria para o Raul a honra de ser patrono. Assegurado com a escolha do Domício, pude dar a honra a outro grande nome que ficara esquecido, o melhor amigo de meu pai.”

Entre seu amigo e o amigo paterno, acaba preferindo o segundo, homenageando assim seu próprio pai. Com ele aprendera, desde menino, a ver em Tavares Bastos um vulto de grandeza, como contou no livro Coração Aberto e recontou ao comemorar, em 1939, o centenário do nascimento do grande pensador liberal do século passado. Na profundeza do seu desejo íntimo predomina, muito forte, a autoridade paterna, e em Tavares Bastos estão simbolicamente honradas a imagem do pai e as convicções liberais que ele timbrara em defender.

Em Rodrigo Octavio Filho encontramos o mesmo sentimento, a mesma identificação, a mesma imagem e semelhança paterna. Ao assumir a Cadeira, sucedendo ao pai, escreveu:

Falei-vos comovido e ufanoso, pois que a ele tudo devo: a vida, o destino e o que sou. Falei-vos fielmente por haver sido o mais íntimo companheiro das suas alegrias, tristezas e fadigas... Eu que lhe fiz da sombra o meu caminho, venero-o ainda, como a um apóstolo, e jamais olvidarei a expressão evangélica de suas últimas palavras: “Vai, meu filho, cumpre sempre o teu dever.”

LIBERALISMO, PALAVRA E CONCEITO

A outra característica que une os dois Rodrigos ao pai, representado neste caso em Tavares Bastos, é a inconfundível adesão aos princípios liberais, seja na busca de um equilíbrio entre o sentido político moderno e o sentido humano clássico com que se apresenta em Rodrigo Octavio, seja na valorização do sentido humano, sem repúdio ao caráter político, que Rodrigo Octavio Filho revela.

A palavra liberal e seu derivado, liberalismo, têm uma evolução curiosa e complexa. Vale a pena acompanhá-la para melhor compreender as três figuras desta Cadeira 35 e vê-las numa única linha interpretativa.

No latim da antiguidade, liberalis qualificava a situação social do homem livre, digno de seu mérito, o que convinha a uma sociedade composta de duas classes, os livres e os escravos. Partindo desta significação, tomou ainda o sentido de desinteressado, generoso, munificente, aberto de espírito e de bolsa, e deste modo se aproximou da esfera do civilis, urbanus e humanus, todos vizinhos do nosso moderno conceito de civilização.

Deste modo se associou também ao esquema das artes liberais – as artes livres, opostas às servis ou mecânicas –, aquelas faculdades necessárias ao romano livre para exercer sua tarefa no foro, seus deveres religiosos, e a direção de seus negócios rurais. Com este sentido, idêntico ao do Latim Clássico, penetrou e foi usada nas línguas modernas, românicas ou germânicas, seguindo seu curso sem conteúdo político.

Liberal, como termo político, nasce na primeira Proclamação de Napoleão, no seu tempo heróico, no dia seguinte ao golpe de Estado do 18 Brumário, isto é, aos 19 de outubro de 1799.

No Brasil, na linguagem política anterior a esta data, na Inconfidência Mineira, na Devassa no Rio de Janeiro de 1794, na Devassa da Revolução Baiana de 1798 só aparecem: liberdade, livre da sujeição colonial, República; e na última, a mais avançada, ao lado de libertinos, encontramos mais: idéias livres, princípios revolucionários de igualdade e liberdade, democracia, República democrática.

Nem mesmo em 1817, na gloriosa revolução do Nordeste, comandada por Pernambuco, a que primeiro venceu o colonialismo português, a palavra aparece. Foi então comum escrever-se “a infame chamada liberdade”, “o aterrado nome de Patriota”, palavra surgida nesta hora, e chamar aos patriotas de libertinos, e ao seu movimento de libertinagem. Liberal só aparece no sentido clássico.

A expressão libertino, criada em 1525, em plena luta religiosa, significou a pessoa indócil às crenças religiosas. Embora envelhecida, ainda foi usada no Brasil até o começo do século XIX, antes do aparecimento da palavra liberal, contra os inconformados, os dissidentes, os rebeldes, não mais às crenças religiosas, mas às crenças políticas.

Não é somente na forma que libertino corresponde ao latim libertinus, como pensa o grande romanista alemão Walter von Wartburg. Provindo de liberto, o que se deseja, na essência, é marcar a origem desprezível aos olhos sociais dominantes dos que se opõem às crenças religiosas e políticas vitoriosas.

As resistências às inovações foram sempre tão fortes, a opressão e o terror oficiais tão duros, que a expressão liberal só pôde ganhar seu conteúdo político tímida e disfarçadamente. Em 1810, na famosa obra de José da Silva Lisboa, Visconde de Cairu, Observações sobre a Prosperidade do Estado pelos Liberais Princípios da Nova Legislação do Brasil, ela é usada de modo vacilante e impreciso. O emprego vitorioso é o de franquia econômica, abertura de portos, liberdade de comércio e indústria. Era mais fácil, mais aceitável a penetração do termo com sentido econômico: o do liberalismo econômico de Adam Smith, do qual Cairu foi o divulgador no Brasil.

É somente em 1820, em Portugal, que a palavra adquire claro conteúdo político, quer nos opúsculos de combate revolucionário, quer na literatura conselheira real, ainda assim de uso extremamente limitado.

No Brasil, ao que parece, até onde foram as minhas pesquisas, foi num pasquim pregado nas esquinas das ruas do Rio de Janeiro, em setembro de 1821, que nasceu, ou, se não nasceu, cresceu em popularidade a palavra, quando se defendeu, em décimas, a separação de Portugal e se animou o príncipe a tornar-se desde logo Pedro I, com uma advertência:

Seja nosso Imperador,
Com Governo liberal
De Côrtes, franco e legal,
Mas nunca nosso Senhor.

A primeira legislação nacional, os primeiros decretos assinados por José Bonifácio, como o de 18 de junho de 1822 e o Manifesto de 19 de agosto de 1822, atribuído a Joaquim Gonçalves Lêdo, falam nas ideias liberais do nosso tempo, na Constituição liberal, no sistema liberal. No último, creio aparecer pela primeira vez como uma doutrina política o derivado liberalismo.

No Brasil, o triunfo incipiente da palavra, protegida pelo apoio oficial, viu-se rapidamente obscurecido, logo após a dissolução da Assembléia Constituinte, em 1823, o exílio do Patriarca e a Constituição outorgada de 1824. A expressão voltara a ter um sentido revolucionário que limitava seu uso corrente. Não é assim estranho que entre 1823 e 1831, entre a Outorga Constitucional e a Abdicação, liberal volte a ser uma palavra subversiva, apagada e vil.

Ela faz parte constante do vocabulário de Frei Caneca, o principal representante do liberalismo radical no Brasil e de todos os revolucionários de 1824, que viram a luz gloriosa do martírio, e caminharam para a imortalidade pelo caminho da História. Apesar do sacrifício dos heróis de 1824, a palavra, com todo o seu conteúdo, foi abafada e vilipendiada pelo absolutismo que nasce e renasce no Brasil, porque ele é sempre recolonizador, como viram Frei Caneca, Sales Torres Homem, o Timandro de O Libelo do Povo, e o nosso patrono, Tavares Bastos.

Mesmo em 1831, logo após a época heroica da Abdicação, quando se atendeu à máxima liberal de que o Trono não é um direito hereditário, mas uma doação popular, a palavra não tem, no próprio Parlamento, a livre circulação que se poderia esperar. Ela se revela poucas vezes, muito menos que liberdade, porém muito mais que libertino e anarquista, estas duas últimas expressões visando amesquinhar, confundir e depreciar o movimento liberal.

A escura, escura História do Brasil, que, na visão oficial, nunca reconheceu a força do pensamento combativo, glorificou os vitoriosos, baniu os derrotados, esqueceu o trabalho do povo, memorizou o desgoverno, louvou Caim, desamou Abel, hostilizou Benjamim, não foi um campo fértil em que se cultivasse o princípio liberal. Sempre venceram a anti-reforma e a contra-revolução. Sempre uma liderança soturna e aterradora impôs ao povo grandes medos, desfez seus sonhos, aniquilou suas aspirações e esperanças.

TAVARES BASTOS, IDEÓLOGO DO LIBERALISMO

Aureliano Cândido Tavares Bastos, patrono desta Cadeira, nasceu e se educou sob o domínio conservador, mas se iniciou na Política quando recomeçava, no dizer de Joaquim Nabuco, a encher a maré democrática, que se tinha visto continuamente baixar desde a reação monárquica de 1837, e cuja vazante, depois da maioridade, chegara a ser completa.

Apesar do predomínio conservador, a leitura dominante da elite intelectual era romântica e liberal. Um português miguelista, que aqui viveu entre 1828 e 1842, escreveu com espanto que “Thiers, Guizot, Lamartine e outros, cuja fama não morre, são as leituras e textos dos homens de estado deste País”.

Não posso entrar neste momento no exame das influências românticas e liberais que formaram o espírito de Tavares Bastos, o mais orgânico, o mais sistemático e o mais lúcido pensador político que o Brasil já produziu. Ele não foi só um grande homem, apesar de sua mocidade, mas sobretudo uma Cultura. A extensão e profundidade de seu espírito, a claridade de sua consciência o tornam uma exceção, não somente em sua época, como até hoje, pela capacidade de enlaçar a teoria e a prática políticas e de incorporar toda a cultura de um povo.

Influenciado pela teoria romântica da História, ele se apoia sobre a experiência do passado mais recente e do tempo presente, alimenta-se da história nacional e nela busca o gênio do povo brasileiro. O influxo do pensamento hegeliano, recebido indiretamente, é nele evidente, como foi também evidente em outro pensador político mais interpretativo do passado que construtivo do futuro, Justiniano José da Rocha.

Afirmou Tavares Bastos, nas Cartas do Solitário, publicadas em 1862, quando contava apenas 23 anos:

Conservador e liberal, monarquista e democrata, católico e protestante, eu tenho por base de todas as minhas convicções a contradição; não a contradição mais palavrosa do que intelegível das antinomias de Proudhon, porém a contradição entre duas ideias que na aparência se repelem, mas na realidade se completam, a contradição, finalmente, que se resolve na harmonia dos contrastes.

E acrescentava, logo a seguir: “Guio-me pelos fatos, combino os opostos, encadeio as analogias e construo a doutrina. Não tenho um sistema preconcebido. Não idolatro o prejuízo. Aceito o sistema que os acontecimentos me impõem.”

Vê-se aí o conceito da natureza social das contradições, e o sentido de sua crítica total à sociedade, realizada nos seus livros e folhetos, como forma de uma tensão no seio da própria realidade social. Não é uma lógica conformista que nega a realidade das contradições; é antes uma crítica ao estado existente de coisas, conduzida no próprio terreno das contradições, uma crítica ao sistema, que renega suas próprias promessas e suas próprias possibilidades.

Este é um aspecto fundamental da obra de Tavares Bastos, na qual o processo político é sempre um processo histórico e dialético. O passado, o presente e o futuro estão unidos, e a construção de suas teses se faz de forma inteiriça.

Nos Males do Presente e Esperanças do Futuro, ao iniciar o exame da Ilusão, escrevia: “Poucos, talvez, observam o presente das alturas do longínquo passado, e vão procurar aí o fio desta cadeia de elementos que, a meu ver, explica de uma maneira completa o quadro medonho oferecido à contemplação dos nossos dias.” Bastava o processo histórico, dizia, para demonstrar a toda luz quão grave seja o mal, e quão profunda, antiga e vasta a causa que o tem alimentado.

Os poetas que lê – Lamartine, Victor Hugo, Byron, Gonçalves Dias – são românticos, e neles busca inspiração para a compreensão do gênio do povo. É em Lamartine que provavelmente encontra a idéia da utopia, como verdade prematura (Les utopies ne sont que des vérités prématurées), a que várias vezes se refere.

“Sei que hão de talvez caluniar minhas intenções e apedrejar o que chamarão utopias. Mas eu trabalho por amor do povo, a que pertenço, o povo donde saí.” “Estou sentindo, meu amigo”, acrescenta em outro trecho das Cartas do Solitário, “apedrejarem as minhas utopias.”

O fim da Utopia, que infernizou seus últimos dias, significa a recusa das ideias e teorias que, na história, dela se serviram para revelar possibilidades histórico-sociais concebidas como prolongamento da própria continuidade do progresso, e não como ruptura fatal, qualitativa e liberticida.

O pensamento de Tavares Bastos, portanto, liga-se à corrente utópica, e não à maquiavélica. Estes são os dois tipos principais e dominantes do pensamento político moderno, como procurou mostrar o grande historiador alemão Gerhard Ritter, no seu Die Dämonie der Macht (Os Demônios do Poder).

A bipolaridade do pensamento político ocidental está em O Príncipe de Maquiavel e na Utopia de Thomas Morus. Segundo Maquiavel, Deus ama os fortes, e quem não mata Brutus e os filhos de Brutus não é digno do Poder. Dele e da face demoníaca do Poder se originam todos os absolutismos e autoritarismos que infelicitaram o próprio mundo ocidental romano-germânico. De Thomas Morus, da Utopia, do Estado ideal, da superioridade moral e cultural, nascem o Liberalismo, o Humanismo, o Historicismo, a fortaleza democrática, o respeito à dignidade humana e às garantias individuais que caracterizaram o mundo anglo-americano e as democracias suíça, holandesa e escandinava.

Tavares Bastos, que descendia desta linha historicista, na sua variação romântico-liberal, muito mais liberal que romântica, sente, como sentiu o Historicismo liberal, a influência do Constitucionalismo inglês e da Economia Política clássica. A teoria histórico-política do Liberalismo clássico que formou a sua concepção não é individualista, como é comum afirmar-se. Ele não exige a liberdade pela liberdade, mas porque se persuadiu ser vantajoso para o Estado que todas as forças se meçam em livre concorrência.

A campanha e o combate de Tavares Bastos pelas idéias e princípios liberais foram intensos e dramáticos, em tão breve vida. Dos seus 36 anos, sete e meio lutou no Parlamento e dois e meio pelejou na imprensa. De 1861 a 1873, em treze anos apenas, publicou Os Males do Presente e Esperanças do Futuro (1861), Cartas do Solitário (1862), O Vale do Amazonas (1866), Memória sobre a Imigração (1867), A Província (1870), A Situação e o Partido Liberal (1872), A Reforma Eleitoral e Parlamentar (1873).

Nesta obra, Tavares Bastos se revela o maior pensador político que o Brasil já conheceu, comparado em termos relativos a seu antecessores, contemporâneos e sucessores.

Não posso, neste momento, desenvolver esta tese, que me parece de singular importância. Direi apenas que em relação aos seus contemporâneos na Câmara, onde uns avultavam como grandes oradores liberais e conservadores, e outros tiveram exercício duradouro nos projetos, nas emendas, nos debates, ele a todos igualou pelos discursos e projetos e a nenhum temeu enfrentar. Poucos mereceram-lhe a admiração, como José Bonifácio, o Moço, Nabuco de Araújo e Saraiva, liberais na Câmara, e Paranhos, Paulino de Souza e Pimenta Bueno, conservadores no Senado.

Joaquim Nabuco, analisando o espírito político de seu pai, Nabuco de Araújo, escreveu que “na história das ideias políticas, de 1853 a 1878, o que lhe pertence está para o que não lhe pertence em proporção esmagadora”. “Não é só um revelador, é um doutrinador, o maior talvez que teve o Império, sem ser doutrinário, como o foi Pimenta Bueno.”

Desculpe-se a Nabuco a apologia de seu pai, grande entre os raros grandes. Mas revelador doutrinário, na obra escrita, nenhum se compara a Tavares Bastos.

O que distingue Tavares Bastos como ideólogo é a defesa instransigente que fez de muitas idéias, raras vitoriosas em sua vida.

O que é vivo e morto na sua obra?

Ele viu vitorioso seu projeto de abertura do Amazonas ao comércio mundial, embora não tivesse correspondido à expectativa de progresso da região; viu vitoriosa a liberdade de cabotagem, que foi um malogro; combateu o protecionismo à indústria nacional, um equívoco causado pela sua integral adesão ao Liberalismo econômico, que nem os Estados Unidos, que ele tomou como modelo, adotaram e seguiram; promoveu a ligação direta a vapor entre o Brasil e os Estados Unidos, quando estes já eram os maiores compradores do nosso café, o que foi uma vitória; combateu a escravidão e viu apenas a Lei do Ventre Livre; defendeu a imigração e o trabalho livre, e não viu a vitória deste; combateu o excessivo conservadorismo, um dos nossos males, invencível até os nossos dias; pelejou pela federação e a descentralização, viu-as incorporadas no Programa Republicano de 1870, mas não pôde ver os avanços e recuos da idéia; militou pelo sufrágio direto, o voto livre, e não o viu assegurado; advogou, pioneiro solitário da ideia, em 1873, a entrega da apuração eleitoral à Justiça, o que nem Assis Brasil incluiu no seu plano de reforma eleitoral, e só a Aliança Liberal incorporou ao seu programa de reformas, tornando-se realidade em 1932; bateu-se pela divisão territorial e a criação de territórios, e alinhou-se entre os defensores de uma nova capital no interior; defendeu a liberdade religiosa, o Estado livre, a Igreja livre; viu a opressão, o terrorismo oficial e a reação, e contra eles investiu sem sucesso; pregou a independência dos poderes; lutou pela proteção das garantias individuais; bateu-se contra o arbítrio do poder e a favor do habeas corpus; denunciou o imperialismo, denominação com que os liberais caracterizaram o Absolutismo imperial, exercido através do Poder Moderador; acusou o duplo crime do Absolutismo e do Colonialismo, tanto o originário, como o interno.

Esta última tese é fundamental na sua visão dos males do Brasil, liberta de ilusão e pronta para a reforma salvadora. Ele parte do princípio que Portugal estava em lutuosa decadência enquanto nos colonizou; seus reis eram de espírito acanhado, seu governo retardatário, seu regime de trevas, e por isso suas colônias ficaram sendo as piores do mundo. A história da Metrópole, dizia, é a história da colônia, e exemplificava comparando a autonomia das colônias inglesas com o Absolutismo das colônias portuguesas. São páginas de grande vigor e originalidade de A Província, onde escreveu também o melhor estudo, na época, sobre a federação nos Estados Unidos.

Sustentou que o espírito absolutista das tradições coloniais portuguesas sobreviveu na Independência. Não houve por isso ruptura, apesar do sangue derramado. O Colonialismo subsistiu no Absolutismo.

Neste ponto Tavares Bastos se filia ideologicamente ao radicalismo liberal de Sales Torres Homem, que em 1849 afirmara no Libelo do Povo que todo ensaio absolutista é igualmente recolonizador.

A consequência eficiente é que éramos não só uma nação composta de vassalos, sem direitos, ou com direitos usurpados pelo Poder, mas um aglomerado de colônias, onde se agravavam as discórdias provinciais, estudadas nas Cartas do Solitário e em A Província. É o chamado Colonialismo interno, tão estudado modernamente quanto o Colonialismo externo.

A solução ele a oferece em A Província: Descentralizai o governo; aproximai a forma provincial da forma federativa; a si próprias entregai as províncias; confiai à nação o que é seu; reanimai o enfermo, que a centralização fizera cadáver; distribuí a vida por toda parte, só então a liberdade será salva. “Sem o mais completo sistema de garantias individuais”, acrescentava, “sem supremacia do parlamento, sem o governo responsável, sem descentralização, sem este vivaz organismo anglo-saxônio, nada está construído solidamente, nada preserva os povos da ruína e da miséria”.

Tavares Bastos, que tinha tanto desapreço pelo sistema colonial português e investia contra sua sobrevivência no Absolutismo, era um admirador incondicional das instituições e das realizações anglo-americanas. Ninguém, em sua época, foi mais anglófilo e americanófilo. Suas frases são incisivas: “Sou um entusiasta frenético da Inglaterra, mas só compreendo bem a grandeza deste povo quando contemplo a da república que ela fundou na América do Norte. Não basta que estudemos a Inglaterra; é preciso conhecer os Estados Unidos.” “A meu ver, o Brasil caminha para sua regeneração moral e econômica tanto quanto mais se aproxima da Inglaterra, da Alemanha e dos Estados Unidos.” “Queremos chegar à Europa? Aproximemo-nos dos Estados Unidos.”

Para um espírito de tão firmes e enraizadas convicções democrático-liberais, os Estados Unidos, ainda durante a ensaguentada guerra civil, constituíam o modelo político por excelência, a realização de seus sonhos, de sua Utopia.

Deve, assim, ser compreendida neste contexto sua extremada afirmação – ele pouco afeito aos extremismos – de que devíamos acabar com os nossos prejuízos europeus e despir as nossas vestes portuguesas.

“O Brasil”, escreve ele, “carece de espírito ianque, deste arrojo, desta atividade, dessa energia, desse másculo espírito de invenção e progresso; carece de fundir os seus prejuízos portugueses e clericais em ideias generosas de liberdade ilimitada.”

A ruptura com o sistema colonial português e a aceitação do modelo anglo-americano não significavam cortar a tradição, aniquilar a história? perguntava. E respondia, nas Cartas do Solitário:

Não, mas desarraigar a rotina, parasita do movimento e pedir ao governo que seja só governo, que distribua Justiça, mantenha a ordem, puna o crime, arrecade o imposto, represente o País, mas que não se substitua à sociedade. É impossível, respondem. O governo, como no tempo do rei, deve presidir o povo, dirigir o povo, ensinar tudo ao povo, seu pupilo, isto é, percorrer a escala de todas as opressões sociais.

Ele estava convencido, como disse na Câmara, em 8 de julho de 1862, de que mesmo sob o ponto de vista político as relações com os Estados Unidos são aquelas que mais convêm ao Brasil. Devemos cultivá-las e desenvolvê-las, sobretudo porque depois da presente luta (a guerra civil, 1861-1865), luta gloriosa, porque é a da liberdade contra a servidão, a do progresso contra a barbaria, está reservada à grande república de Washington um papel incalculável nos destinos do mundo.

Sua política liberal nunca o afastou do povo, da sua sorte, da sua miséria. Combato pelo povo, dizia ainda nas Cartas do Solitário, propondo que se estudasse a miséria e a fome, a dos escravos e a dos homens livres. “Para nós só há uma política possível, um dever, um culto: melhorar a sorte do Povo.”

Nesta longa série de idéias, tudo se prende e se liga.

Sua fórmula geral, a liberdade. Seu resultado final, o bem do povo. A liberdade é a verdadeira grandeza, a liberdade é a obreira do futuro, a liberdade é o desenvolvimento, a liberdade é o progresso, a liberdade é a lei suprema. Só o triunfo da liberdade, só as avenidas da libertação nos conduzirão ao Futuro.

É assim com essas frases, que são suas, que ele, sem abjurar a história, compreendendo a melhor, canta a liberdade, domina o presente e vê o Futuro. Como nos versos de Carlos Drummond de Andrade, ele poderia escrever:

O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens
[presentes, a vida presente.

E afirmar, como em outros versos do mesmo grande Poeta:

Ó vida futura; nós te criaremos.

RODRIGO OCTAVIO

É este canto à liberdade que une Rodrigo Octavio de Oliveira Meneses, “jovem advogado e ardente liberal”, a Tavares Bastos. Amigos e aliados, participaram, com outros companheiros, do Centro Liberal, do Clube da Reforma e do jornal A Reforma. Morto Tavares Bastos, o primeiro Rodrigo pronuncia, em 1877, no Clube da Reforma, uma conferência (publicada em A Reforma) em que reafirma, sob a mesma inspiração liberal e com a mesma fidelidade partidária, todos os princípios do grande defensor do Liberalismo no Brasil.

É natural que seu filho, Rodrigo Octavio Langaard de Meneses, o fundador desta Cadeira, educado nos mesmos princípios, cheio de ternura pelo pai, procurasse manter as tradições liberais. Não há nele a paixão, o arroubo que dominava Tavares Bastos. Seu modelo liberal era de harmonia e tolerância, com evidente equilíbrio entre o Liberalismo político e o Liberalismo como forma de relação social. Mas o princípio liberal seleciona seus temas e domina sua prosa.

Seus autores prediletos são todos liberais, republicanos e nacionalistas. Em Portugal, seu inspirador é Oliveira Martins, figura saliente do Liberalismo moderado e do Republicanismo lusitano; na França, Guizot, que possuía a mesma paixão e servia à mesma causa liberal; no Brasil, Tavares Bastos e Sales Torres Homem, não o conservador dos últimos tempos, mas o liberal radical de O Libelo do Povo.

Em 1893 publica as Festas Nacionais, obra dedicada à Educação Cívica, que alcança grande êxito editorial. E um pequeno compêndio de História do Brasil inflamado de Nacionalismo, por influência de Raul Pompéia. Aí castiga Rodrigo Octavio o “espírito sanguissedento” do Primeiro Imperador, que fuzilara os patriotas de 1817 e impusera o Absolutismo com a dissolução da Assembléia de 1823; fustiga o espírito maquiavélico do Príncipe, que enxertara na Carta de 1824 o poder moderador, “elemento de degenerescência de todos os demais poderes”, “porta aberta para todas as violências”; “caminho curto e fácil para o advento do cesarismo”; louva o Ato Adicional, “aquele esplêndido triunfo da política liberal”, base de toda a interpretação de Tavares Bastos; defende as ideias liberais, as liberdades populares, e manifesta sua simpatia mais por Osório, o general liberal, do que por Caxias, o general conservador.

O livro não era um fruto ocasional da paixão partidária; na verdade se filia ao Liberalismo radical e anticolonialista, tão vinculado a Tavares Bastos. O prólogo de Raul Pompéia define esta raiz. Amortecida mais tarde, não desliga Rodrigo Octavio de suas fontes nacionalistas. “O quadro histórico”, escreve Pompéia, “é constantemente a cruel afirmação da pátria vencida. A alma nacional segue sofrendo, dia-a-dia, o suplício de todas as dores”.

A tese de Raul Pompéia, inspirada no livro, é a de que as datas escolhidas registram não as vitórias, mas as derrotas nacionais. O grande inimigo histórico, dizia, era a sobrevivência colonial, a obstrução colonizadora. Todas as forças que reagiam contra a República, afirmava, não eram mais que o remorso social de culpa do Segundo Reinado, que continuava a torturar-nos.

Também Carlos Drummond de Andrade escreveu, no poema “Museu da Inconfidência”, que “toda história é remorso”, intuindo, assim, com o seu gênio poético, toda a História do Brasil e o malogro da sua liderança, que se desenvolve à custa do subdesenvolvimento popular.

A retirada do prefácio de Raul Pompéia na segunda edição das Festas Nacionais e a atenuação de certos ardores críticos não desviam Rodrigo Octavio do caminho liberal. Consciente ou inconscientemente, a voz liberal vai continuar a gerar sua escolha de temas e interpretações.

O livro Felisberto Caldeira: Crônica dos Tempos Coloniais, relembra as Memórias do Distrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos, não só pelo encanto romanesco, mas porque representa um libelo contra os abusos e os excessos do Colonialismo português. O objetivo de Rodrigo Octavio foi afastar do nome do liberal mineiro, contratador de diamantes, a fama que lhe criaram de um criminoso vulgar. Mostra não só a altivez, coragem e energia de Caldeira, como a aura de bonança e liberdade que os mineiros sentiram pela primeira vez durante o seu contrato. Refere as opressões, injustiças e iniquidades do Absolutismo português, que Caldeira procurou aparar.

O estribilho liberal ressoa sempre. Escrevendo A Balaiada, livro baseado em depoimento colhido na tradição oral do lado vencedor, Rodrigo Octavio condena, como todos os liberais, aquele movimento de rebeldia das camadas mais modestas do Maranhão e do Piauí.

As conferências sobre Le Brésil, sa Culture et son Libéralisme (Genebra, 1912), e sobre o centenário do Manifesto de 6 de agosto de 1822, escrito por José Bonifácio, mostram sua permanente adesão aos temas históricos prediletos dos liberais e revelam a evolução do seu pensamento. É assim o ensaio sobre a Constituinte de 1823. Aí, depois de afirmar que o projeto de Constituição de Antônio Carlos consignara todos os grandes princípios liberais, escreve que D. Pedro I não podia ser liberal.

As manifestações de seu espírito nesse sentido foram certamente uma transação inconsciente e talvez sincera, com as circunstâncias do momento, com a atmosfera do dia. Mas não se nasce liberal; é a Educação e a Cultura que geram o Liberalismo e isso faltava inteiramente ao Príncipe.

O Liberalismo de Rodrigo Octavio parece ser agora não somente um sistema político, a que se adere independentemente da condição social e cultural, mas uma ideologia própria de homens educados e livres, uma ideologia das artes liberais e não servis. Sua transição para o Liberalismo no velho sentido clássico, e não político do século XIX, começa a formar-se com a moderação da idade e o equilíbrio inspirado pelos novos cargos e responsabilidades.

Mas não é somente na sua obra de escritor que Rodrigo Octavio mantém a fidelidade e a inteireza de seus princípios. Em várias de suas obras jurídicas, nos Pareceres de Consultor Geral da República, em votos no Supremo Tribunal Federal, ele se recusa a aceitar a onipotência e o absolutismo do Estado, afirmando expressamente seu espírito liberal.

Em Os Selvagens Americanos perante o Direito condena a violência, o rigor, a submissão, as guerras que ensanguentaram a nossa História, e louva todos os precursores da defesa do índio, desde José Bonifácio, até o Marechal Rondon, sem esquecer o seu e o nosso Tavares Bastos.

O maior de seus livros, como criação literária e como depoimento de sua época e de seus amigos, Minhas Memórias dos Outros, mantém a mesma coerência, a mesma fidelidade aos seus sinceros sentimentos liberais. Nelas vive o homem bom, que ensina a modéstia, sem um traço de amargura. Uma sombra mansa e leve abençoa tudo o que viu no seu caminho livre e puro. E nelas prevalecem as figuras liberais de Prudente de Morais, Carlos de Carvalho, Joaquim Nabuco, Raul Pompéia, Ferreira Viana, Rui Barbosa e Lafayette.

No segundo volume, tratando de Caxias, ele conta como assistiu à cena inesquecível da chegada triunfal ao Rio do General Osório, com quem simpatizava mais, declara, “pelo feitio romântico e muito por Política, sim por Política”. E esclarece: “Eu, aos dez anos, era liberal, como Osório; Caxias, ‘cascudo’, como então se chamava aos ‘conservadores’, não era do meu partido. Apesar disso, eu tinha uma admiração fulgurante pelo Duque de Caxias.”

A vida e a obra de Rodrigo Octavio são uma lição de Liberalismo e Humanismo, um casamento feliz da evolução semântica da palavra liberal. A voz do Poeta, do alto e grande humanista Augusto Meyer nos servirá para dizer:

As águas correm, os homens morrem e as folhas caem.
Pensa nas vidas que vão nascer.

RODRIGO OCTAVIO FILHO

Se em Rodrigo Octavio preponderou a faceta política do liberal, em Rodrigo Octavio Filho atua o lado generoso, livre, heterodoxo, humanístico. Em ambos não há mais o vigor, a força do doutrinador Tavares Bastos, mas ambos participam, com ele, da crença de que a persuasão basta para convencer, reformar e melhorar. Outro ponto comum é a fé na natureza essencialmente privada da felicidade e no papel negativo do Estado em promovê-la.

Em Rodrigo Octavio Filho os traços essenciais do Liberalismo político, evidentes ainda em Rodrigo Octavio, desaparecem, mas permanecem os formais, como a escolha temática, por exemplo. Florescem, por outro lado, as características primárias e originais da palavra, no apelo à tolerância, no respeito pela opinião divergente, no desengajamento, na certeza de que a vida da inteligência é a verdadeira encarnação da liberdade, e na valoração da felicidade, que consiste não em ter prosperado, mas em prosperar. Esta regra, salientada pela filosofia do individualismo existente no próprio Liberalismo, não entra em constraste com o cultivo das relações sociais, antes o anima.

O credo político de Rodrigo Octavio Filho está, assim, na prática, reduzido à tolerância, à moderação, ao “viva e deixe viver”, mas ele permanece, na preferência dos estudos publicados, totalmente adstrito à linha liberal.

Seus trabalhos ou seguem a linha paterna, como “A Constituinte de 1823” e as biografias desenvolvidas de Tavares Bastos, Prudente de Morais e Ubaldino do Amaral, ou encaram temas novos, prediletos dos liberais, como “O Panorama Político da Guerra dos Farrapos”, “O Ato Adicional”, “O Reconhecimento da Independência do Brasil pela Inglaterra”, “A Princesa Isabel”.

A Revolução dos Farrapos foi, nas suas palavras, “vibrante episódio da nossa História, primeiro facho de Liberalismo político e Democracia administrativa que iluminou a Pátria brasileira”.

O Ato Adicional veio “traçar as linhas mestras da Democracia brasileira, aplicando os princípios liberais inatos ao espírito do nosso povo”. Reafirma em várias passagens as tendências democráticas e liberais do Ato, como reflexo da qualidade do povo brasileiro. Faz, inclusive, um paralelo entre a dissolução da Assembléia de 1823, que resultou na Abdicação de D. Pedro I, e a dissolução do Congresso de 3 de novembro de 1891, que provocou a renúncia do Marechal Deodoro.

No estudo “A Princesa Isabel”, o acento principal é sobre a Redentora e a Lei Áurea, para ele resultante da emotividade da Princesa e do liberalismo do Príncipe Gastão de Orléans.

No volume Figuras do Império e da República, dos seis estudos biográficos, quatro são velhas admirações paternas, todas elas figuras liberais: Osório, Tavares Bastos, Prudente de Morais e Ubaldino do Amaral.

Da sua obra histórica, independentemente dos aspectos liberais a que nos temos referido, pode-se dizer que procurou realizá-la com acerto, tentou a síntese, deu ênfase às descrições do aspecto físico, aos traços psicológicos, e ao lado pitoresco das personalidades estudadas.

Na coletânea Missão do Escritor e Outros Discursos (1957) domina a mesma tônica liberal, a luta contra o fanatismo, o princípio da liberdade, o humanismo. No “Discurso à Inglaterra”, ali incluído, ele escreve, lembrando o entusiasmo de Tavares Bastos: “Este é, ao meu ver, com efeito, o País, dentre todos, onde a liberdade tem a sua maior glorificação, porque é aquele onde a liberdade é mais perfeita, onde o direito é mais seguro, onde o indivíduo é mais independente e onde, por isso mesmo, o homem é mais feliz.”

Admira politicamente a Inglaterra, mas o país de seu coração foi a França, à qual serviu devotadamente, divulgando a sua Cultura. Em 12 de junho de 1944, poucos dias depois do desembarque das forças aliadas na Normandia, ele manifestava em palavras cheias de vibração, lidas pelo rádio, sua alegria, sua fé e esperança:
 
“Valha-nos o consolo de que, apesar do colapso político em que viveu estes últimos quatro anos, a França pôde manter, em toda a parte, a luz transparente de sua alma latina.” A saudade da França, dizia, pairava sobre o mundo.
 
O Simbolismo e o chamado Penumbrismo dão à personalidade de Rodrigo Octavio Filho, sobretudo pela sua sensibilidade, um relevo individual ao movimento que não deve ser esquecido. Na “Última Página” do seu primeiro livro de versos, ele evoca a Felicidade, tema predileto do Liberalismo individualista:

Vem alegrar o meu olhar tristonho,
Vem, para sempre, caminhar comigo,
na alameda noturna do meu sonho...

E ela o seguiu com tal fidelidade, que Alceu Amoroso Lima pôde dizer do amigo morto: “Sua missão foi cumprida; mostrar-nos a todos que a felicidade não é um mito.”

A essa época de transição poética, dedicou Rodrigo Octavio Filho não só o estudo O Poeta Mário Pederneiras (1933), seu tio querido, e a antologia Mário Pederneira: Poesia. (1958), como o ensaio “Sincretismo e Tradição: O Penumbrismo”, inserto em A Literatura no Brasil, dirigida por Afrânio Coutinho.

Depois a vida o levou para outros caminhos. Alceu Amoroso Lima, seu amigo de 57 anos, em comovido artigo, logo depois de sua morte, escreveu: “A Poesia, que não chegou a florir em grandes obras, como que nele se diluiu subconscientemente, em todas as atitudes, em todos os atos mais terra a terra de uma existência de homem de ação”.

Rodrigo Octavio Filho assistiu, sem ser tocado, à grande mudança da moderna sensibilidade poética, à nova tendência estilística, à criação do cenário e da metamorfose do Modernismo.

Seu perfil psicológico foi esboçado por todos vós, senhores acadêmicos, na “sessão da saudade” e em artigos de jornal, com que vos despedistes do vosso amigo e companheiro. Sua amabilidade, sua bondade, sua discrição, sua cordialidade, sua beleza viril foram por todos vós destacados.
 
A descrição de Pyramus, no Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, poderia ser a de Rodrigo Octavio Filho: a sweet faced man; a proper man, as one shall see in a summer’s day, a most lovely, gentleman-like man.

O trato suave, o encanto pessoal, a sabedoria de viver mais se evidenciavam na presença dos filhos, netos e bisnetos, que o cercavam e à sua dedicada companheira de 52 anos de casamento, na amenidade de uma família incomum, singular, honrada e digna.

Outra constante de Rodrigo Octavio Filho era a amizade. Sobre seus Velhos Amigos (1938) escreveu um livro que leva como epígrafe a frase de Abel Bonnard: L’amitié c’est le pain quotidien du coeur. Dedicou-o a D. Laura, sua amiga de todas as horas.

Senhores acadêmicos:

O grande historiador Johan Huizinga, no seu livro Geschunden Wereld (O Mundo Difamado), assinalou que muito antes de predicar o Cristianismo as três virtudes teologais, o espírito grego havia concebido uma série de quatro virtudes, chamadas mais tarde, na doutrina cristã, virtudes cardiais. Algumas delas foram menosprezadas durante o Renascimento, desprezadas durante o Romantismo, revalorizadas pelo Liberalismo e novamente aviltadas na época atual. Todas elas constituíram, nos últimos dois mil anos, até o aparecimento da Psicanálise, um dos instrumentos mais poderosos para conhecermos a psicologia humana.

Faltava a Rodrigo Octavio Filho a fé, disse Alceu Amoroso Lima.

Mas ele foi dotado, e bem dotado, de esperança e caridade, de prudência e justiça, de fortaleza e temperança.

LIBERTICIDAS E LIBERTÁRIOS

Como vedes, creio sinceramente que a Cadeira 35 tem uma história una e indivisível. A ascensão e o declínio do Liberalismo marcaram sucessivamente a vida destas três personalidades. Um sopro de renovação acompanha agora a vaga inquieta do mar ideológico que agita o mundo. O Liberalismo refaz-se, diante da luta impiedosa entre liberticidas e libertários.

As tendências dominantes e divergentes coexistem, originadas do mesmo terreno e estrutura da época. Enquanto no Ocidente, liderado pelos Estados Unidos, mantém-se a essência do Liberalismo, o regime representativo e as garantias individuais, e manifesta-se no mundo socialista a aspiração liberal, no mundo subdesenvolvido ou em desenvolvimento o que vemos é a total negação desta essência, o liberticídio, que significa o fim da Utopia e gera a coexistência com o libertarismo.

Também a Igreja traz o seu reforço ao Liberalismo. Karl Rahner, o grande teólogo alemão do Concílio Ecumênico, defende a existência de uma teologia liberal e a coexistência de uma história da salvação, que é a da graça de Deus, com uma história da salvação que é a da dignidade do homem na terra.

Defende-se, assim, para todos a liberdade da salvação na terra, que deixa de ser um vale de lágrimas. A pobreza é um pecado danado não porque seja um sinal do desfavor divino, como pensavam os calvinistas, mas porque é um crime humano e social.

Outro teólogo alemão, Johan Baptist Metz, depois de citar as palavras da promessa do Velho Testamento, a consciência, a unicidade e a indivisibilidade do futuro na escatologia cristã, afirma que a Igreja não é o não-mundo (Die Kirche ist nicht Nicht-Weit). Justifica, assim, a participação da Igreja na proteção da liberdade e da dignidade humanas.

A esperança do Evangelho tem uma relação polêmica e libertadora com o homem presente, com a vida prática e com as condições sociais em que vive o homem.

A emancipação da forma autoritária socialista é defendida por Jürgen Habermas, neomarxista alemão-ocidental, autor, entre outros estudos, de Erkenntnis und Interesse (Conhecimento e Interesse), saudado pela crítica inglesa como o corpo filosófico mais impressionante da década dos sessenta.

Habermas reexamina Hegel, a revitalização dos conceitos e valores que o Liberalismo e o Socialismo tinham em comum, mostra a capitulação do Liberalismo diante da nova autocracia, a confissão de sua impotência e a transição para o autoritarismo.

Sua crítica ao anarquismo utópico de Marcuse e às extravagâncias de Heidegger reflete o pensamento historicista e humanista. Ele descreve o conhecimento como libertador na luta para tornar a pré-história subumana numa autêntica história.

A violência da opressão e a violência dos libertários dificultam sobrepujar o contraste e tornam difícil a reconciliação. A capacidade para resolver o dissídio não está no desenvolvimento técnico e científico, disfarçado como uma ideologia do futuro século XXI para estabelecer a ordem tecnocrática, que perpetua a alienação do homem e desintegra de substância humana a Democracia política. A natureza humana é condicionada pela História e se desenvolve na História.

As oposições fantoches, do tipo beatnikhippies e outras aberrações levarão ao nada.

O poder do pensamento negativo não pode ser simplesmente desconhecido ou suprimido pela violência. Será que a possibilidade histórica da reconciliação não está inscrita na situação contemporânea? Será que o contraste entre o idealismo de Morus e o demonismo de Maquiavel não poderá ser resolvido?

Creio que a compreensão recíproca pode permitir que o Estado retome seu papel salutar e a quietação construtiva, e não opressiva, seja recuperada.

 Espero que a harmonia entre o poder e o povo, a justiça e a sociedade, será a tarefa a que as novas gerações se dedicarão, com a genuína missão de restaurar, em todo o mundo, especialmente na parte não privilegiada dele, os direitos do homem, a libertação do homem, a salvação do homem.

SAUDAÇÃO FINAL

Ao finalizar, quero agradecer ao meu amigo e vosso companheiro de tantos anos, Barbosa Lima Sobrinho, a honra que me fez e a benevolência com que me agracia, recebendo-me nesta Casa. Sempre considerei como um modelo e um exemplo sua bravura cívica, sua dignidade, integridade, cultura, competência e experiência.

Folgo muito ainda seja Marques Rebelo, o singular e vigoroso romancista da alma desta minha querida cidade, quem me distingue colocando-me o colar de membro desta Academia.

Não vim senão para servir, para servir com a consciência das minhas modestas forças, a esta Instituição e à Cultura do meu País.

Trago sempre na lembrança aquelas palavras de Duarte Coelho, escritas a D. João III, em 24 de novembro de 1550: “E creia, Senhor, de mim, que tudo o que tomo a cargo, tomo e faço como o próprio pastor, e não como mercenário.”

A rajada de vossa generosidade cria um sentimento inapagável de gratidão, que vos devo e não vos nego. Não esqueço a lição de Jesus, no Evangelho de S. Lucas: “Pois qual é o maior? Quem está à mesa ou quem serve? Porventura não é quem está à mesa? Eu, porém, entre vós, sou como aquele que serve.”

5/2/1969