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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Adonias Filho

Posso e quero dizer que, dentre as artes, nenhuma será mais receptiva que o Teatro. E receptiva no sentido da interferência cultural porque se completam na aceitação, a audiência justificando o seu estado público. O espetáculo, que é a cena viva acima das imagens, sempre a representação em natureza de verdade, certamente pertence mais ao povo que ao intérprete e ao escritor. Nesse processo – do texto para o palco e do palco para o público – há uma identificação inteira que, em se fazendo humanidade, absorve os valores sociais na efervescência para movê-los como símbolos e mitos. E será por isso mesmo que, historicamente, configura povos e nações, definindo-os pelo comportamento, associando à sua presença a própria existência nacional. O lado clássico, seja permitido afirmar, confirma a tese quando relaciona os trágicos gregos e franceses, espanhóis e ingleses com o mundo moderno.

As nações, todas as nações, encontraram a revelação no Teatro. A fermentação cultural, a realizar-se enquanto o complexo nacional se compõe, ergue os elementos e os produtos que nele se refletem como a precisar o povo em sua inteligência, sua sensibilidade e sua memória. Em termos de moderna Psicologia Social, na base desse reconhecimento que sonda a formação nacional, temos que admitir o Teatro como nascendo do povo para caracterizar a Nação. É anônima e coletiva sua primeira manifestação, parte da oralidade, a reencontrar-se no fluxo folclórico precisamente porque raízes. E se a pesquisa é feita, no fundo da auscultação que toma culturalmente as fundações, será fatal que o vejamos mobilizando os elementos ficcionais da epopeia para transmiti-los à Novelística nos países velhos. Nos países novos, porém, à própria epopeia substitui, deixando criar-se pelo povo, o principal agente. A matéria ficcional nativa se concentra nessa Dramaturgia primitiva que abre o processo da Literatura Nacional para a ficção erudita.

É fácil verificar, senhores, é muito fácil ilustrar com o Teatro Brasileiro. Os produtos culturais, enquanto por eles se estruturava a Nação, engendravam o Teatro através dos autos populares. A matéria ficcional, as constantes literárias e os movimentos temáticos – sem que possamos esquecer o Indianismo e o Sertanismo – deles se desprendem provando que as causas estão nos três séculos da oralidade. O povo os criava no compromisso do testemunho, inspirando-se em sua própria vida coletiva, para representá-los nos terreiros e praças dos seus territórios. Cronistas falam desses espetáculos e a alemã Ina von Binzer, ainda no fim do século passado, chamava a atenção para o “talento declamatório” do brasileiro.

A eclosão erudita, a iniciar-se com Martins Pena, é um seu resultado e por isso mesmo a consequência inevitável. É desse chão coletivo, no esmagamento pelo sincretismo de todas as contribuições estrangeiras, é do fundo cultural do nativismo dos autos populares – como prova a inquirição folclórica – que surge, com Martins Pena, o Teatro Brasileiro. Ao Teatro que encontra, de repertório estrangeiro, vai transmitir o conteúdo ficcional nativo com única expressão talvez – apesar dos autos catequéticos de Anchieta – nos lundus do Padre Ventura nos meados do século XVIII. Se na metrópole e capitais das províncias as companhias líricas estrangeiras transitam; se as companhias nacionais, como a de João Caetano nessa primeira metade do século XIX, não dispõem de repertório brasileiro, é absoluto o domínio da dramaturgia estrangeira nas pequenas cidades do interior. A vocação do Teatro se comprova, e a confessa Ferreira de Rezende ao informar que raros os moradores que não tivessem feito duas coisas: “ajudar a missa e um papel na ópera”. O Teatro Brasileiro, entretanto, a gerar constantes e elementos para a Literatura Nacional, este se fermentava culturalmente processando-se nas representações dos autos populares. Nos palcos improvisados, nas praças das aldeias e das vilas, nos terreiros das fazendas, aí o povo levantava para si mesmo o Teatro que caracterizaria a Nação. É a festa pública da qual participam brancos e negros e índios, homens livres e escravos, também e sobretudo os escravos que marcam culturalmente o País em formação.

Longe estamos do começo do século XVIII quando, observa Varnhagem, atores espanhóis representavam Calderón na Bahia. Os ensaios dramáticos de Araújo Porto Alegre e Gonçalves de Magalhães não conseguem sufocar a oralidade que Martins Pena capta na mensagem brasileira dos autos populares. O ator João Caetano, desviando a linha do seu repertório que vai de Corneille e Gomes Júnior, então zombando “da mania da ópera italiana que reina no Rio de Janeiro”, atende à imposição oral que finalmente, através de Martins Pena, chega ao palco erudito. Não tardam a surgir Joaquim Manuel de Macedo e José de Alencar. E o Teatro Brasileiro, assim nascido de produtos culturais brasileiros, trabalhando a matéria ficcional brasileira, com as raízes nos autos populares brasileiros, abre o percurso – através das experiências literárias por mais de um século – até o vosso encontro, Sr. Joracy Camargo. Havia a responsabilidade no compromisso, vosso e dos outros escritores de Teatro, para a percepção intelectual no extremo dessa fidelidade às origens que se traduz com a criação da Dramaturgia como uma força brasileira.

Seria exagero assegurar que, em sua continuidade, o Teatro perdeu as raízes nativas. Antes de vós e depois do percurso que atinge o movimento modernista – e sempre ao lado da Novelística – não poderia alienar-se porque não o permitiriam as próprias condições de nascimento. O levantamento crítico prova que, sem perder os vínculos com a Literatura Ocidental, refletiu o País na base de problemas, costumes, acontecimentos históricos e tipos sociais. Comediógrafos e dramaturgos tiveram os olhos na terra e na gente. Dentre esses, e vós ainda há minutos o retiravas da morte para nova colocação humana, o exemplo a citar-se é Viriato Correia, vosso antecessor nesta Casa, na Cadeira de Porto Alegre. O compromisso se cumpria, vós o sabeis, precisamente porque o Teatro, na conversão dos produtos culturais em uma Literatura, se afirma em função do “caráter nacional”.

Torna-se necessário voltar a esse passado que já é História, Sr. Joracy Camargo, para a colocação de vossa obra no Teatro Brasileiro. E precisamente por isso tenho que me deter na primeira metade deste século, retomar o Modernismo em sua revolução e acompanhá-lo na experiência definitiva. Havíeis de acreditar em si mesmo, superando vossa humildade de homem, quando a colocação – que é um julgamento – se justificar através da tomada crítica. Aparecestes uma década após o movimento literário, sua peça “Deus lhe Pague” confiada a Procópio Ferreira, oferecendo ao Modernismo a Dramaturgia que lhe faltava. Vínheis do palco, percorrendo o país, um filho do povo que dispunha da consciência do debate. Nos caminhos, ao lado dos atores desse povo, e enquanto o Modernismo se fazia, aprendestes que não há Teatro autêntico sem o genius linguístico. E esse genius, que absorve a matéria ficcional oral, se apoia na fala.

Nessa área, e vós o demonstraríeis na órbita cena, o Modernismo estabeleceu a arena que acabaria por alterar a expressão na Novelística e na Dramaturgia. O movimento não foi revolucionário porque principalmente poético na carga agressiva da cobertura crítica. Não foi revolucionário porque contribuísse para ajustar a Novelística à carpintaria moderna. Foi revolucionário – e de uma revolução que já se aproxima da fase clássica – porque, com a vossa colaboração, Sr. Joracy Camargo, interferiu na Poesia e na Novelística atendendo ao impacto do genius linguístico. Em sua dependência, é fácil observar, estava o Teatro que, condicionado à fala como instrumento literário, não teve como vingar no primeiro ciclo do Movimento. A espera, aquela espera que correspondeu à verificação do êxito linguístico, durou exatamente dez anos.

E aparecestes – vitorioso o genius linguístico pelo Movimento –, ao lado dos romancistas do Norte e do Sul, mas aparecestes para incluir o Teatro na grande revolução.
 
É o que não se pode discutir ou negar a partir do momento que, em São Paulo, Procópio Ferreira fez representar “Deus lhe Pague” no Teatro Boa Vista. Ela aí permanece, a vossa comédia, após ter percorrido o mundo em muitas línguas, em trinta e cinco anos de vida que a tornaram a peça mais popular de todo o Teatro Brasileiro.

Escrevestes outras peças, como “Um Corpo de Luz” e “Figueira do Inferno”, a verdade, porém, é que sereis para sempre o autor de “Deus lhe Pague”, vosso nome quase um sinônimo do título, talvez jamais se sabendo quem maior, se o criador ou a criatura. O que importa admitir-se, em um tempo de transitoriedade e controvérsias artísticas, é que, do trabalho literário realizado, muito ou quase tudo se perdeu no esquecimento. Vossa comédia, porém, continua o caminho que parece apenas começado.

A duração, a permanência e a atualidade se explicam porque a consagrou o mesmo povo que criou os autos populares para as suas sagas e as suas gestas.A aceitação pelo povo, que basta para eliminar os debates e os preconceitos estéticos, não se realiza emocionalinente no vazio. Há um fundo de intelectualização nessa receptividade. Chegastes no momento em que, imediatamente após a revolução política de 1930 – associada culturalmente à revolução literária de 1922 porque ambas consequências de uma época e de uma geração –, chegastes no momento em que o processo da mudança brasileira impunha reformas para soluções de problemas agressivos. A sombra da Primeira Guerra, engendrando a expansão totalitária e o fanatismo ideológico, obrigava a pressentir a Segunda Guerra, ainda mais trágica porque animal. Uma consciência brasileira, sensível através dessas reações coletivas que levam o povo à participação, julgava as próprias condições do País. Manifestava-se não apenas através do sistema de relações e da reciprocidade de meios e fins que conformam a ação intelectual de um povo. Ideias e sentimentos circulavam como sangue em um corpo e moviam a força intelectiva que reivindicava, na necessidade de organização, uma ordem com base na justiça social.
 
Vossa comédia, Sr. Joracy Camargo, fundiu-se com essa intelectualização popular na aceitação do que foi uma extraordinária receptividade. Não se comprovava apenas que o Teatro é a mais receptiva das artes. Demonstrava-se, com “Deus lhe Pague”, que o Modernismo tinha atingido o povo, vossa peça ao lado dos romances, mas a comédia se situando como um novo ponto de partida precisamente porque intelectualiza o Teatro atendendo às preocupações sociais do povo. Esse, porém, é o lado temático.
 
E havia o outro lado. Em verdade, e desde que absorvia a matéria ficcional oral com apoio na fala do povo, era o genius linguístico que em vossa peça se afirmava. Vosso trabalho de jornalista certamente muito concorreu para que, na necessidade da comunicação imediata e simples, pudéssemos sentir o poder da fala incorporando-a à sua própria linguagem. Não houve exatamente uma aprendizagem mas o uso da expressão conversional que, indispensável ao jornal, como que armava o futuro teatrólogo. Essa fala, língua materna que em vós seria a mesma – na meninice do Engenho Velho, nas redações ao lado de João do Rio e Humberto de Campos, nas ruas de vossa cidade do Rio de Janeiro –, converter-se-ia em base do vosso diálogo. E nela, se guardando para o Teatro anterior e posterior a “Deus lhe Pague”, o que fundia era o genius linguístico. Indispensável, Sr. Joracy Camargo, indispensável dizer-se que em função da matéria ficcional – já apreendida pelos autos populares – o gênio linguístico reflete a configuração que o Português adquire na fala do Brasil. Sua interferência, excessivamente poderosa como entidade social, ultrapassa os aspectos gramaticais para submergir na sensibilidade e no instinto criador do povo. Contendo a expressão, essa expressão coletiva que exterioriza o comportamento brasileiro – com exemplos nos mitos e nos autos populares –, esclarece a própria dinâmica da língua.

Na ficção oral, com base no repositório folclórico, o gênio linguístico – se contém a expressão coletiva – não pode evitar a representação. Os dois ciclos constitutivos da ficção, a Novelística e o Teatro, se tomam inevitáveis. O narrador dos contos populares, em consequência da entonação e da mímica, é um ator. O auto popular, em sua representação, constitui um espetáculo. Em qualquer dessas representações, ambas revelando a Novelística e o Teatro como decorrência da sensibilidade e do instinto do povo, é a fala do que sobressai. A dinâmica da língua oral, com fonemas, entonação e ritmos brasileiros, adquire aí sua maior plenitude porque reflete o temperamento nacional no comportamento artístico. É o gênio linguístico que faz refletir-se na fala à grande, a enorme alma do povo.

Cada língua tem no seu gênio uma força de espontaneidade e um tipo de beleza, observaria Herbert Parentes Fortes, que se exercem pela sensibilidade e o instinto dos que falam. É a expressividade fônica que, na voz do narrador dos contos populares ou na representação dos autos, acompanha a evolução dos vocábulos e segue o desenvolvimento do étimo, no campo semântico, prova que o gênio linguístico se insere na própria formação do povo e, participando do seu comportamento artístico, extravasa na representação ficcional através da fala e do conteúdo temático. O cunho idiomático da língua, surgindo da alteração do Português em consequência do seu contato com a formação social – provocando o fluxo etimológico originário do Brasil –, manifesta-se efetivamente na matéria ficcional sujeita à representação.

É normal, em consequência, que a matéria ficcional, em seu conteúdo temático – na dependência dos produtos culturais responsáveis pela conformação do caráter nacional –, modifique-se simultaneamente com a fala. Do “Auto dos Pagés”, por exemplo, cantado em língua indígena, ao auto do “Bumba-meu-Boi”, cantado em linguajar popular, a lenta evolução da fala pode ser verificada. Em relação ao “Bumba-meu-Boi”, aliás, os autos de origem ibérico-índio-africana, como o dos “Fandangos”, dos “Congos” e dos “Pagés”, perdem os modismos característicos. Se a particularização portuguesa sobressai nos “Fandangos”, se a indígena sobressai nos “Pagés”, se a africana sobressai nos “Congos” – o auto do “Bumba-meu-Boi” já não dispõe de particularização porque se expressa através das variantes dialetais brasileiras.
 
Vós, Sr. Joracy Camargo, trabalhando a fala, tínheis que ser um agente do gênio linguístico brasileiro. O Teatro assim o exigia com o palco na dependência da fala. E quando muito antes de “Deus lhe Pague”, ao tempo ainda de “A Menina dos Olhos” e de “O Bobo do Rei”, já se pressentia que o autor de Teatro começava pela fala – a infra-estrutura do diálogo – para penetrar na mecânica da Dramaturgia.

Agora, com vosso perdão, quero estabelecer uma pausa.

Nós, eu e vós, fomos professores na mesma Escola de Teatro, aquela Escola da Fundação Brasileira de Teatro promovida por Dulcina de Morais e esse a quem recordo com enorme saudade, Odilon Azevedo. Vizinhas as nossas salas, eu inúmeras vezes silenciei a minha voz para escutar a vossa. Professor de Teoria de Teatro frente aos alunos que reclamavam a auscultação crítica dos textos, inúmeras vezes também ilustrei as aulas com as vossas peças. E, face ao vosso Teatro, que ultrapassa cinquenta peças, exatamente como agora, informava que na fala tinha origem a mecânica da vossa Dramaturgia.
 
Um gênero literário, gênero ficcional, o Teatro. E da epopeia primitiva que, retirando os principais componentes – a personagem, a fabulação, o cenário, a atmosfera –, adquire a estrutura própria pela exigência da vivência episódica na área cênica. A vivência é direta nessa área precisamente porque o episódio literário se converte em representação. Na análise de uma peça, e sabeis em vossa experiência, e talvez por isso fostes ator a medir os dados psicológicos das figuras, há de surgir a personagem como o elemento insubstituível da comunicação para os problemas. Ela é quem transporta os problemas, reprojetando-os, concentrando-os no que possa ser a revelação, o debate e a tese. Não há Arte Literária, sobretudo restrita ao Teatro, sem esses problemas. Tornam-se, por isso mesmo, os elementos transmissíveis. A atmosfera e a fabulação se realizam como veículos.

Os trágicos gregos os selecionaram no fundo do canto homérico; os frades medievais os recrutaram na doutrina da Igreja; os trágicos cristãos os recolheram na saga bíblica; os elizabetanos os apanharam na crônica histórica. Com a expansão do Romance no século XVIII – e é curioso verificar como se definia, na observação de Thibaudet, em oposição ao Teatro, que era o gênero privilegiado –, sobretudo com a ascensão sobre os gêneros clássicos no século XIX, a personagem pôde revalorizar os problemas inclusive à peça e ao palco. Há, porém, o que esclarecer.

E acrescento que, descendendo da epopeia – sempre os poemas épicos que inspirariam o Teatro Grego e, equivale dizer, o Teatro Ocidental de Ésquilo aos contemporâneos –, o Romance, nem por ser o mais recente gênero literário, perde sua natureza clássica. Na motivação clássica é que se vai apoiar, já em nosso século, a sua grande revolução. Incorporando-o à Arte Moderna, erguendo-o em consequência ao plano da Poesia e das Artes Plásticas, atualizando-o na linguagem e na carpintaria, James Joyce o integrou na percepção que capta as vibrações do nosso tempo. O revestimento, para tanto, seria homérico. Debruça-se sobre o poema épico e o que realiza – modernizar o Romance através do exemplo clássico – firma de fato o Romance no ciclo artístico moderno. Esse contato, entre James Joyce e a base homérica, não comprova apenas que o fundo clássico é inevitável. Comprova principalmente, através da epopeia, a semelhança de origem do Teatro e do Romance. Se o Teatro apreende a representação dramática, o Romance apreende a movimentação episódica, sombra homérica atinge a Tragédia grega do mesmo modo que o Romance do século XVIII.
 
Essas fundações, que robustecem a estrutura da Ficção, já explicam por que a peça aceita os problemas. Nos problemas, em consequência, repousa a vitalidade do Teatro, sobretudo do Teatro Moderno. Não importam os elementos exteriores – do monólogo lírico ao aproveitamento da farsa e do coro com o palco atendendo todas as exigências técnicas. Os problemas – da vida, da morte, do crime, da justiça, da culpa, da paixão – são esses abismos movediços que transmitem condição literária à peça porque põem no palco a criatura humana. É a personagem, Sr. Joracy Camargo, a vossa personagem, sendo Anastácio ou Maria Cachucha, que possibilita a comunicação. Na dependência da peça, pois, petrifica-se o intérprete se a personagem que vive, não dispondo de qualquer problema, volteia como um boneco. Sabemos todos que, ao escrever, tínheis em vista o processo: boneco será o ator se o autor não permitir a comunicação por falta do problema. O próprio palco ao autor a isso obriga porque, erguendo-se entre contribuições meramente decorativas, a cena é ativa por natureza e são os problemas que a movimentam. Veículos da comunicação – única força a identificar o intérprete com a personagem e o espectador com o intérprete –, quando escasseiam, os problemas enclausuram o gênero literário.
 
A personagem, em consequência, é decisiva. A peça sugere o palco e o palco não será tragédia, drama ou comédia sem que nele se movimente a criatura humana. E nessa personagem uma personalidade, e nessa personalidade um caráter, e nesse caráter – como queria Bernard Shaw –, as crises morais, os debates intelectuais, uma consciência da vida e do mundo. É a interrogação do homem sobre si mesmo. E não será preciso identificar a voz socrática quando André Malraux define essa interrogação como a mais profunda atitude da Arte.

Em vossa arte, Sr. Joracy Camargo, se aquela interrogação clássica permanece, irrompe novo reconhecimento que documenta vossa colocação – não apenas no Teatro –  mas na Literatura Brasileira. Impossível não admitir que, mantendo relações com a Poesia e a Oratória, definitivamente relacionado com a Novelística – com a qual completa a ficção –, o Teatro não se isola como gênero literário. Sua importância, por isso mesmo, é extrema no sentido da correlação. Se na área cênica vai relacionar-se com as Artes Plásticas, aplicadas em função da Dramaturgia, na área literária essa Dramaturgia se relaciona com a Novelística, a Poesia e a Oratória. A Dramaturgia, em consequência da correlação, distende-se em contatos exteriores que têm como eixo a obra teatral. Foi esse universo da obra, que dispõe de uma realidade a ser transmitida, como já observara Étienne Souriau, impondo as relações do Teatro com os outros gêneros literários, que permitiu a vossa colocação na Literatura Brasileira – como um dos responsáveis pela fase moderna. Temos que associar à vossa obra teatral, e o faço com rigor crítico que não perturba o meu entusiasmo, a abertura da moderna Literatura dramática no Brasil. Abre-se, primeiro com “O Bobo do Rei”, e a seguir com “Deus lhe Pague”, abre-se o grande espaço que, absorvendo os valores universais através da experiência, impôs a escavação do território nativo na sondagem de todos os alicerces que o sustentam. É uma inquirição imensurável que, indo do fabulário aos costumes, percorrendo normas e condutas do povo, configura definitivamente a área cultural. Herói, símbolo ou criatura comum, a personagem que veio daquela abertura reflete, em ressonância maior ou menor, os tecidos psicológicos que compõem a alma brasileira.
 
Esse novo Teatro, que tem uma das matrizes em vossa obra, não recusou a penetração, isto que se chamará de a marca nacional. A evolução temática se processa, com ou sem regionalismo – no fundo de um complexo de sentimentos, crenças e valores –, mas se processa à sombra de uma cultura determinada. Há um Teatro, e esta a vossa maior contribuição, o Teatro Brasileiro que, tomando a motivação brasileira, empregando a língua em sua inflexão brasileira, refletindo problemas brasileiros, dele não se pode ocultar a nacionalidade. Observemos, porém, que, situado no mesmo nível da Novelística, acompanha a ficção em todas as suas conquistas contemporâneas. E a observação a ser feita é a de que não sustentaria o lastro nacional, não o superasse precisamente para robustecê-lo. A configuração nacional, sendo indispensável, é incompleta. Completa-a a densa inquirição dos valores humanos – em qualquer que seja a perspectiva filosófica – sem a qual a ficção não subsiste.
 
A temática, que concorre para assegurar o Teatro Nacional, abre com esse ciclo uma zona imensa. Entre suas fronteiras – e pela primeira vez na Literatura dramática brasileira – os grandes debates especulativos começam a se mover. Teses e ideias, opiniões e doutrinas flutuam nas peças e realizam a sondagem no abismo da criatura. E o círculo comum a todas as literaturas. Processando-se no Teatro Brasileiro acima dos formalismos, não hesita em engendrar a problemática que coincide com a problemática do nosso tempo. As grandes linhas do pensamento contemporâneo, no sentido da participação nas preocupações da inteligência, enquadram-se nessa problemática. Intelectuais, sociais, éticas, essas preocupações se tecem em aproximações da maior importância.

A problemática, como se sabe, é ilimitada. Valoriza mesmo, do ponto de vista crítico, o trabalho literário em seu poder de apreensão. Em um certo aspecto pode-se aferir a significação de uma obra e um autor através da extensão que a apreensão adquira. Ela pode conter uma época, uma civilização, uma cultura. Em Homero, o estranho mundo pré-homérico que C. M. Bowra localiza nas tradições do Mito e da História. Em Eurípedes, o pensamento grego do seu tempo. Em Dante, o espírito místico medieval. Em Ibsen, a projeção do individualismo que caracteriza o século XIX. Neste sentido, o novo Teatro Brasileiro não foge ao círculo moderno. Sua problemática, sem a menor dúvida, é universal. Enraíza-se progressivamente nas grandes linhas do pensamento contemporâneo.
 
Vê-lo, a esse Teatro assim grande em força e legitimidade, é encontrar-se a vós, Sr. Joracy Camargo, em uma obra que já constitui referência histórica. Temos que agradecer, pois, a vossa contribuição. E, quando a nossa Academia Brasileira de Letras vos recebe – após a concessão do Prêmio Machado de Assis –, sabe que a si mesma se valoriza. E sabe mais, eu quero afirmar. Sabe que não começa agora a vossa imortalidade porque imortal já era quem ao povo devolveu o seu próprio Teatro.

16/10/1967