Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > João Luís Alves > João Luís Alves

Discurso de posse

DISCURSO DO SR. JOÃO LUÍS ALVES

SENHORES:

Não sei o que há de verdade no episódio narrado com tão oportuna malícia por C. A., em uma das suas crônicas semanais, no Jornal do Commercio.

Contou ele que Freycinet, então presidente do Conselho de Ministros, fora, como candidato a uma vaga na Academia Francesa, solicitar o voto de Ernest Renan e que este lhe respondera: “Sim, sr. presidente do Conselho, salvo se o sr. presidente da República for candidato.”

A ocasião em que aqui foi relembrada essa ironia, atribuída ao glorioso filósofo, dá-me agora o direito de dizer que, se não tenho a ridícula pretensão de comparar-me ao estadista francês, consola-me, se com ela pode coexistir consolo, a falta de um Renan para dar-me igual resposta.

Aliás, não vos fiz o desapreço de bater-vos às portas como ministro, posição efêmera, que não pode, por si, dar valor a quem não o tem, mas pode diminuir o dos que já o possuem, por serviços outros, tão ingrata e difícil é a posição de ministro em nossa terra.

Quem aqui veio pedir-vos o agasalho do vosso prestígio e o fecundo convívio do vosso espírito não foi, nem podia ser, o ministro: – fui eu.
Foi, sim, um cultor de letras jurídicas, parlamentares e jornalísticas, e o fez porque acreditava que tais gêneros de cultura aqui lhe permitiriam ingresso.

Que não me enganei, assim pensando, vós o dissestes, elegendo-me, com tanta honra para mim.
Fazendo-o, certamente vos lembrastes daquele autorizado conceito do mesmo Renan, no discurso com que recebeu Lesseps, o imortal engenheiro de Suez, na Academia Francesa:

Le programme de notre Compagnie n’est pas une simple culture littéraire poursuivie pour elle même, et n’aboutissant qu’à de frivoles jeux, à peine supérieurs à ces difficiles enfantillages où se sont perdues les littératures de l’Orient.

Ce sont les choses que sont belles; les mots n’ont pas de beauté en dehors de la cause noble ou vraie qui’ils servent.

Sucedendo, mas não substituindo, a Pedro Lessa e a Eduardo Ramos, na Cadeira de Lúcio de Mendonça, espero não desmerecer da honrosa companhia, embora lhe não possa trazer o brilho de idéias novas, nem mesmo a precedência das de imitação, como as do acadêmico Olivier Patru, o inventor dos discursos de recepção, e, dizem, que do jeton de présence na Academia Francesa.
Perdoareis, portanto, se for obscuro o meu concurso que vos asseguro devotado aos altos e nobres fins desta Academia, em cujo recinto entro, lembrando-me do verso de Dante:

Me degno a ciò né io né altri crede.

Nem eu, nem outros crêem que eu seja digno desta honra e da sucessão que aceitei, formidável encargo para quem vai ocupar a Cadeira de Pedro Lessa, e bem o sabeis vós, que com ele convivestes.
O traço fundamental do caráter de Pedro Lessa, reconhecem todos os seus panegiristas, era a combatividade; o do seu espírito, hão de proclamar os leitores de sua vasta obra, era a sólida cultura filosófica, apurada por uma crítica sem dogmatismo, sem preconceitos e sem temores.
Nessa cultura filosófica se encontra o segredo dos seus merecidos triunfos – como professor, como polemista, como historiador, como jurisconsulto, como juiz.

Não há, porém, ocultar que a sua combatividade foi por vezes apaixonada e algumas outras cruel.
Talvez fosse isso atribuível ao seu pessimismo, que ele não negava, embora contraditório com a sua orientação conservadora e com a sua infatigável ação didática, política e jurídica.
Como professor, conta-se que, irritado – e com razão, contra o ato de um ministro, que abrira larga brecha para os exames nas faculdades de ensino superior, dispensando arbitrariamente exigências regulamentares, reagiu, mas reagiu pelo absurdo: – aprovou com distinção, sem argüi-los, todos os seus alunos!

Força é reconhecer que Lessa foi cruel com os seus discípulos, se verdadeiro o episódio, porque não pode haver maior crueldade para com um estudante do que aprová-lo na sua ignorância, pesado fardo para o resto da sua existência.

Foi, assim, sem o querer, que Lessa se constituiu o precursor atenuado dos exames por decreto, por motivo de gripe, e dos exames por habeas corpus, por motivo de receita para o Tesouro.
Depois disso, como exigir a elevação do nível da nossa cultura e como negar que ela baixa assustadoramente?

O que diria de uma reforma de ensino, entre nós, o senador francês Léon Labbé, membro da Academia das Ciências e professor da Faculdade de Medicina, que confessava com tristeza a Gustavo Le Bon e este consignou em Le Deséquilibre du monde, seu recentíssimo livro: “que pour modifier notre système d’éducation, il faudrait changer d’abord l’âme des professeurs, puis celles des parents et enfin celles des élèves”?

Não há dúvida que Lessa reivindica para os cursos jurídicos uma grande e salutar influência na nossa vida imperial e republicana, pelo ensino neles ministrados.
Ele o poderia afirmar, bastando o seu próprio exemplo, a sua própria personalidade, que conquistou, depois de dois memoráveis concursos, a que assisti como estudante da Academia de São Paulo, a láurea de professor, através de óbices que então, como hoje, como sempre, entulham a estrada que devem percorrer os homens do seu valor.

Mas, ainda é dele este episódio sobre um seu discípulo.
Ouça a ilustre Companhia a maldade saudável e, se posso dizer, benfazeja, porque visava verberar um grande mal e removê-lo, com que Pedro Lessa nos conta a sua colaboração jurídica nas sentenças de um ex-aluno ignorante:

Tive um discípulo, diz ele, que, apenas formado e decorrido o prazo legal, conseguiu a nomeação de juiz para excelente comarca de um Estado vizinho. Alegando o seu noviciado, pediu-me que nos primeiros tempos examinasse os autos sujeitos à sua decisão e por ele sentenciasse. Acedi, não calculando o imenso labor que me iria pesar sobre os fracos ombros, e iniciei a ímproba tarefa, julgando com a consciência de um juiz. Ao cabo de algum tempo escreveu-me, muito reconhecido, mas ponderando que conviria eliminar das sentenças os textos de direito romano; pois, todos na localidade sabiam quanto eram nulos os seus conhecimentos da língua de Cícero e Ulpiano e estranhavam-lhe as citações latinas.
Pois bem, disse-lhe eu, eliminemos o latim. E o latim foi eliminado. Mais tarde, nova carta, na qual me increpava as citações de escritores estrangeiros. Faziam-lhe todos plena justiça ao seu formosíssimo talento, mas não ignoravam quanto era adverso à leitura dos jurisconsultos estrangeiros, admitindo todos quando muito a possibilidade de ligeiro ou fugitivo trato com um ou outro dos reinícolas.
E foram eliminadas as citações de jurisconsultos estrangeiros.

Decorrido algum tempo, mais outra missiva. Desta vez, delicada e timidamente fazia ver que se notava nas suas sentenças um certo esforço por escrever correntemente a língua vernácula. Esse esforço (nem sempre coroado de sucesso, acrescentarei eu) lhe parecia impróprio de papéis forenses, além de dar azo a que a maledicência a outrem pudesse atribuir as sentenças por ele proferidas: todos, e notadamente os advogados do lugar, lhe aclamavam o brilhante talento, reconhecendo, todavia, que nele mais uma vez se verificava a conhecida incompatibilidade entre as grandes inteligências e qualquer espécie de esforço ou trabalho. Prometi-lhe que eliminaria esse frustrado desejo de ser correto. E assim se fez. Supunha satisfeito e contente o meu querido amigo, quando um dia tenho o prazer de uma de suas visitas inopinadas. Recebi-o alegremente, e quase como quem recebe um filho, que em regra tanto mais estremecem os progenitores, quanto mais débil e enfermiço é, e mais cuidados lhes dá. No decorrer da conversação, da minha parte amável, notava que um pensamento incômodo verrumava o espírito do meu interlocutor.

Afinal, depois de me sondar as disposições, e em mim perceber a bonomia de um confessor indulgente, desabotoou os lábios e deixou escapar o segredo que lhe oprimia o largo peito; ainda não se satisfizera com as repetidas concessões que de mim havia obtido; algumas vezes, quando aludia alguém a uma de suas decisões, divisava no seu longo séquito, em geral composto de advogados, solicitadores, auxiliares de justiça e partes, sorrisos enigmáticos, frases suspensas, ambíguas e importunas reticências, e tudo lhe parecia indicar que pairavam dúvidas acerca da lavra de suas sentenças. Tão visível era o seu pesar, e tanto me confrangia, que ali mesmo tomei uma resolução extrema, lenitiva, para o meu amigo, e a ninguém prejudicial; visto como se não fosse assim, ainda seria pior.

Adquiri uma pequena e artística urna de charão, na qual daí por diante, sempre que recebia do jovem magistrado processos para julgar, depunha dois papelinhos: um dizia “vence o autor”; dizia o outro: “é o réu quem vence”. Feito meticulosamente o sorteio, toda a subseqüente tarefa se reduzia a alinhavar laconicamente, em duas palavras, as razões de decidir.
Desde então não tive mais mãos a medir.

Era muito para ver a louçania, o garbo quase militar, com que o meu criado, como se fora um bom e belo empregado postal, passava os dias no duro afã de receber e despachar autos, por essa forma decididos. Tive ensejo, alguns anos depois, de ver o meu saudoso amigo. Era notável a sua boa disposição, estava em plena florescência; os olhos animados de um vivo fulgor, o rosto coberto da mais bela e vigorosa coloração, de todo o seu corpo ressumbrava um ar petulante de saúde, de força, de vitória; tinha o apetite de um cidadão romano, na decadência da república. Vede bem, Senhores, conclui Lessa, em que insondável abismo nos podem despenhar a desídia, a indolência, o esquecimento dos deveres e a falta de compreensão da dignidade do cargo, no exercício de uma das mais nobres e altas profissões a que se pode erguer um homem!

Como, porém, negar que Lessa, auxiliando um juiz ignorante e facilitando-lhe a indolência, concorreu para o mal que ele incisivamente causticou nessa página, que não podia ser resumida, sem perder do seu brilho?

Nos Discursos e Conferências há outras passagens como essa, de análise cruel, mas sincera, de psicologia mordaz, mas verdadeira, há também ensinamentos, que bem revelam o filósofo e o pensador.
É ali que o encontramos, na saudação a um ilustre jornalista, dizendo com justeza, da alta função, social da imprensa:

Os jornais, disse ele, devem funcionar principalmente como fios condutores dessas correntes de idéias e sentimentos, que produzidos por uma contínua ação e reação do público sobre o escritor e deste sobre aquele, geram a convergência de pensamentos e tendências, o amálgama de vontades, condição essencial da liberdade das nações, que se chama a opinião pública.

Para a primeira parte desse duplo labor, para sutilmente apreender as necessidades e anelos de várias estratificações sociais, para ser o refletor do pensamento comum, precisa o jornalista de uma inteligência vivamente sensível a todas as trepidações da sociedade, deve ser um desses espíritos sonoros, de que nos fala o grande lírico da França, espírito de mil vozes, que vibram e palpitam ao mais leve sopro, almas de cristal, que reluzem e cintilam ao raio mais fugaz.

Mas, não basta a fina receptividade, que permite bem auscultar o corpo social; é mister possuir o talento, o preparo, o critério e a integridade moral, sem os quais não pode o escritor reagir proveitosa e eficazmente, influindo por sua vez na formação das idéias e dos sentimentos da sociedade, bem orientando a vontade popular, cooperando para que se retifique o pensamento da agremiação, sejam justos os sentimentos comuns e realizáveis com utilidade as aspirações gerais.

Que bela lição se contém nessas linhas, em que se revela a feição conservadora e construtora do espírito educativo do mestre, feição sobre que teremos ainda de insistir!
Já lhe volta, porém, o ardor combativo quando zurze, impiedosamente, às vezes com exagero, mas sempre com patriotismo, os males e vícios da nossa vida política, como no discurso com que paraninfou os bacharelandos de S. Paulo, em 1906.

A própria filosofia – e Pedro Lessa foi um filósofo, no rigoroso significado desse termo – mereceu-lhe esta arrancada de pessimismo:
Tranqüilizai-vos, disse ele: não vos falarei de filosofia. Neste assunto, depois de ter arrastado penosamente os meus discípulos pelos inúmeros corredores do vasto e complicadíssimo labirinto dos sistemas, durante cerca de quinze anos (mais cinco do que o Fausto de Goethe), cheguei ao resultado, precisamente miserável, de adotar, como um desolador transunto da verdade, o conceito de “Fradique Mendes”, em uma de suas “cartas” deliciosas: – um sistema filosófico é mais uma conjectura para se juntar a um imenso montão de conjecturas... Da filosofia, as minhas rudes verdades só terão talvez um pouco daquele acerbo pessimismo, que o incontentável e maledicente Schopenhauer parece ter comunicado a muitos que, nesta época, bem ou mal se ocupam desse gênero.

Há nisto uma injustiça feita a si mesmo, pois havemos de ver que a sua filosofia foi construtora, embora muitas vezes coada pelo filtro da ironia, senão da mordacidade.
Esta é que se nos depara, candente em excesso, quando nos conta que a sua grande aspiração de moço, ao fim do seu curso acadêmico, foi a carreira diplomática.

Dela (escreveu) o dissuadiram parentes e amigos “porque, diziam eles, sem cogitar absolutamente das outras e essenciais qualidades que me faltavam, eu não sabia dançar, eu não sabia palrar, eu não me sabia trajar, com elegância, com os ademanes, com os requintes estéticos, que faziam a essência da diplomacia entre nós. No causticante dizer de um dos maiores estadistas que teve o Império, os diplomatas brasileiros podiam definir-se ‘bacharéis em belas roupas’. A completa vacuidade do cérebro, a perfeita indiferença a todas as coisas da inteligência e da pátria, e a tafularia e casquilhice, têm sido os atributos conotativos da maioria dos nossos diplomatas. Se algum paciente antropólogo se desse ao trabalho de estudar esta surpreendente, e quase fantástica modalidade do ser humano, o cretinismo doirado e feliz, é entre os diplomatas brasileiros que haveria de encontrar os belos tipos da estranha sub-espécie”.

Não está aí uma página de combatividade demolidora e cruel, de sarcasmo ferino, que das exceções fez a regra, generalizando um tipo que não era geral na carrière?
Felizmente o próprio Lessa atenua o rigor das suas palavras, relembrando o nome de Rio Branco, o moço, a que poderia juntar o de Rio Branco, o velho, e o de Joaquim Nabuco, para só falar de alguns mortos, dos quais o primeiro e o último bem serviram à Pátria, na diplomacia sob o regime republicano.
Não escapei, eu mesmo, na minha obscuridade e desvalia, à mordacidade combativa de Pedro Lessa.
De um trabalho meu, sobre a responsabilidade dos juízes do Supremo Tribunal, definida na Constituição, mas até hoje só teoricamente existente, disse ele que era “um portento de inciência ou de desprezo dos princípios cardeais e das normas secundárias do direito público federal”.

Conhecendo o temperamento do notável juiz, a impulsividade dos seus gestos de agressão contra o que lhe parecia desacertado, não me revoltei com a crueldade da sua frase.
Na mesma revista em que fui atacado, procurei dar-lhe resposta “com boa fé e sem paixão”, demonstrando a injustiça do seu conceito.

Dois fatos me convencem de que o consegui: – um, público, foi o silêncio posterior de Pedro Lessa, coisa rara em quem, por temperamento e por legítimo orgulho, timbrava sempre, nas polêmicas em que entrava, em falar em último lugar; outro – foi a honrosa estima que jamais me negou que tanto me cativava e me enobrecia.

Não quero dizer que tivesse aceitado a minha opinião, mas quero afirmar que o seu espírito de justiça reformou a condenação pejorativa com que, no primeiro ímpeto, a fulminara.
Muita gente que o conhece através somente de algumas fases de agressividade, que não eram raras, pensará talvez que esse seu feitio encontrava imenso campo de expansão nos autos em que funcionava como advogado, e advogado de grande renome e vasta clientela.

Não era assim, porém, no que me foi dado ler e conhecer de seus trabalhos de causídico.
É possível e provável que, em um outro caso, não dominasse o seu temperamento, mas no que pude compulsar (o mais fica sepultado no pó dos cartórios) verifiquei a serenidade sincera da exposição dos fatos, a profundeza dos conceitos jurídicos e a lógica dos argumentos – qualidades que lhe granjearam, por certo, aquela vasta clientela, tão importante e vasta, que é notório que sacrificou o seu interesse pessoal para obedecer ao apelo do Presidente Afonso Pena, seu coestaduano, que, colocando-o no Supremo Tribunal Federal, prestou ao país e ao direito brasileiro, neste simples ato, inspirado pela sua visão de jurisconsulto, que também foi, um dos seus bons serviços, sob o regime republicano.

Do que li, porém, dos trabalhos forenses de Pedro Lessa, há uma página que bem merece aqui lembrar, porque é uma página de boa literatura, dessa que sabe pintar e estigmatizar costumes e apontar vícios sociais, como os pintou e apontou Balzac, analista e ator da desopilante comédia humana de todos os dias, embora às vezes ela possa ter uns tons sanguinolentos de tragédia, para quebrar-lhe a monotonia da galhofa.

Defendia ele os direitos de cliente contra poderosa companhia estrangeira.
Em casos tais é, infelizmente, comum sair o pleito do ambiente sereno do pretório para os comentários apaixonados da cidade, provocados pela sua imprensa.
Foi isso o que, na espécie, irritou o advogado e o que lhe permitiu esta esplêndida crítica de nossos costumes forenses:

Já uma parte da imprensa diária se manifestou favorável à ré, com a mesma convicção e competência com que, em artiguetes laudatórios, encarece as miríficas virtudes dos variadíssimos e problemáticos preparados da vasta farmacopéia de Nova York, no mesmo dia em que publica os respectivos anúncios espalhafatosos, pelas suas colunas pagas.

... Se não demove as pessoas refletidas e sensatas, a propaganda (que reinação!) feita pela ré já tem calado no ânimo de mais de um indivíduo. Assim, por exemplo, um sapateiro sustentava, há dias, entre duas soveladas, que o Egrégio Tribunal, proferindo o primeiro acórdão sobre esta espécie, a augusta sentença que tantas vezes temos citado, julgou com o direito de todas as nações cultas. A ré discorda do sapateiro preopinante, porquanto afirma, no final de suas razões, que o Egrégio Tribunal aplicou o direito estrangeiro, neste ponto oposto ao direito pátrio. Um alfaiate entende que o Egrégio Tribunal, com o magistral acórdão, se afastou do direito romano.

Como o alfaiate é italiano, um caloiro por troça pôs-se a ler-lhe o volume da tradução de Glük, em que explana a doutrina romana; mas, o alfaiate não se convenceu. Um tanoeiro descobriu que o Egrégio Tribunal, ao lavrar a memorável decisão, rompeu com a uniforme e estável jurisprudência, firmada pelos tribunais pátrios, que em inúmeros feitos já haviam sentenciado que as vítimas dos desastres oriundos de culpa, ou negligência, das companhias de estradas de ferro, não têm direito a indenização alguma. A todos levou as lampas um experto engraxate, o qual (dizem), vendo reluzir alguns níqueis da ré, de tão fremente entusiasmo ficou possuído, que logo se pôs a gritar, com grandes aplausos do rapazio que o cercava, que a ré não devia pagar indenização nenhuma, que não devia pagar – porque tinha a seu favor a legítima defesa.

Eis aí, Senhores, como, no foro, o advogado Pedro Lessa combatia, com indiscutível verve, pela causa dos constituintes.
Mas, agora vamos vê-lo, na austeridade serena do magistério, nessa cadeira de Filosofia do Direito, cujo estudo revolucionou para o bem, tirando o ensino do limbo da metafísica de Balmes ou do racionalismo de Ahrens, para o ambiente sadio da observação científica dos fenômenos sociais, de que o direito é, ao mesmo tempo, causa e efeito.

Para dar-vos idéia do que era o ensino da Filosofia do Direito no meu tempo, baste dizer-vos que poucos anos antes de Pedro Lessa transformar o ensino em São Paulo, como Tobias Barreto o transformou no Recife, o ponto sobre que tive de dissertar, através de todos os imperativos categóricos de Kant e de todas as sutilezas da concepção medieval da lógica, foi este, e dele jamais me esqueci:
“O milagre é a suspensão das leis naturais. Deus pode fazer o milagre.”
Foi isso, no meu segundo ano jurídico, isto é, no ano da graça de 1886!
Aquele ponto lá estava no compêndio da época e pode verificá-lo quem duvidar. Parecia que eu estava num seminário, fazendo exame de teologia!

Fácil é avaliar qual foi o esforço do meu espírito para aprender comigo mesmo aqueles princípios de sã filosofia jurídica, que os meus caloiros bebiam embevecidos na fonte cristalina das lições de Pedro Lessa, sobre cuja estréia de professor pôde Carvalho Mourão dizer com verdade:

Jamais me esquecerei da encantadora surpresa que foi para nós essa lição de estréia, terminada por uma espontânea ovação; ovação que nos deu, logo, a impressão de uma rajada sadia de ar fresco e oxigenado a varrer as vetustas e sombrias salas do antigo convento – amigo da imobilidade e do silêncio. Pode dizer-se que com ele penetrou no adormecido recinto da Faculdade paulista o espírito do século, com todas as suas ânsias de aspirações humanas e as suas largas visões do futuro, pois só ele iniciou e completou um curso animado, todo, por um sistema de idéias modernas e progressistas... Tinha então Pedro Lessa 28 anos e, desde logo, ficou consagrado mestre e jurisconsulto, porque jurisconsulto só o é quem, com espírito de filósofo, vê no direito não um código misterioso de regras hieráticas, mas uma força propulsora da vida para os seus fins ideais.

E agora ides ver o professor, derrocando com profundeza, naquelas trinta páginas da sua “filosofia do Direito”, a velha filosofia de Kant, para concluir que a Crítica da Razão Pura assenta em uma série de afirmações e que não menos divorciados da verdade são os fundamentos da Crítica da Razão Prática.
Logo em seguida, o encontrareis combatendo a escola histórica de Savigny, que “observa e induz, mas não atinge as mais elevadas generalizações da ciência”, pelo que nela “não há lugar para os princípios fundamentais, universais e permanentes. Nem tão pouco se compreende o direito ideal”.

Não lhe resiste à análise de Ihering, que “tem o defeito capital de nos dar mais uma doutrina sem base científica, para se juntar às inúmeras de que está repleta a literatura jurídica. Vê-se que o pensamento de Ihering oscila entre o livre arbítrio e o determinismo. Não há na Evolução do Direito uma convicção precisa e segura no que toca a esta magna questão filosófica, que os espíritos frívolos desdenham, mas que para os pensadores, dignos deste nome, é ‘o problema filosófico por excelência’, a chave que nos dá a solução de inúmeras dificuldades das ciências sociais”.

Foi, naturalmente, essa convicção que fez com que a obra filosófica de Pedro Lessa se condensasse, culminando nas lúcidas e exaustivas páginas da sua monografia sobre O determinismo psíquico e a imputabilidade e responsabilidade criminais.
Aí, depois de uma erudita síntese crítica dos sistemas filosóficos sobre o livre arbítrio e o determinismo, desde a filosofia grega, com Sócrates e Aristóteles, a filosofia teológica e medieval, com Santo Agostinho e São Tomás de Aquino, a filosofia moderna, com Hobbes, Locke, Descartes, Leibnitz, Hume e Kant, até à filosofia contemporânea, com Augusto Comte, Spencer, Stuart Mill, Alexandre Bain, Schopenhauer, Fouilléé, Renouvier e tantos outros, Pedro Lessa, passando em revista as escolas penais, a clássica, com Carrara como pontífice, e a positiva, com Lombroso, Ferri e Garófalo como apóstolos, estabelece com clareza e argumentação cerrada as razões da sua filiação à escola determinista.

Para ele, o homem não tem livre arbítrio nas suas ações. Estas são sempre determinadas por um motivo.

Esse motivo pode encontrar-se na educação, que “é o principal de todos os elementos que concorreram para a formação do caráter, para a constituição psíquica, para o etos”.
Os códigos de religião, os códigos de moral e os códigos de direito positivo são, com as suas recompensas e penas, o viveiro de motivos determinantes das ações humanas, quando outro motivo não é mais forte para provocá-las, levando ao pecado, ao vício e ao crime.
“O determinismo psíquico reconhece ao lado dos instintos, das inclinações, dos sentimentos, das paixões, das influências do meio, do temperamento e outras, mais estes fatores da volição: a idéia, o pensamento, o raciocínio, os conhecimentos científicos.”

Todos os sistemas de moral, ensina Lessa, procuram assegurar o cumprimento de seus preceitos pelas penas e recompensas, que nada mais são do que motivos artificiais, factícios, de mais fácil compreensão, mais adaptados à inteligência da generalidade dos homens, auxiliando-se com essas sanções a sanção natural dos atos humanos, que é a conseqüência boa ou má, que decorre necessariamente da prática dos nossos atos voluntários. Os legisladores, os estadistas, os jurisconsultos, implicitamente aceitam todos a teoria determinista, porquanto vivem a criar motivos artificiais, que sejam impulsores artificiais para a vontade da maioria dos homens.

Verificadas as necessidades sociais, averiguado que tais atos são condições de conservação e progresso da sociedade, e tais outros contrários à vida, ao bem-estar e melhoramento da agremiação, os legisladores e os estadistas nada mais fazem do que, aplicando a doutrina do determinismo, adicionar à sanção natural, à conseqüência necessária dos nossos atos voluntários, sob o aspecto da vida e desenvolvimento da coletividade e dos indivíduos, as sanções artificiais, as penas e recompensas jurídicas, os diversos meios de coação do Estado, outros motivos, outras tantas idéias, acompanhadas de uma emoção, que servem para impedir a nossa atividade psíquica ou determinar as nossas volições.

Eis, aí, a síntese da concepção filosófica de Pedro Lessa – quanto à moral e ao direito.
É nela que devemos encontrar a explicação de sua atitude, preconizando, em outro estudo, “a utilidade ou necessidade de uma religião” e defendendo, para a nossa pátria, a religião dos nossos maiores.

...Se a religião é necessária, dizia ele, mantenhamos a que foi sempre abraçada pela imensa maioria da nação, a que a tem sempre consolado nas angústias e nas dores, e santificado todos os júbilos e vitórias nacionais, a religião daquele que, na frase de um de seus adoradores sem fé, há de ser sempre o evocador dos incomparáveis sonhos, o mágico dos eternos adeuses, mestre das consolações inesperadas, príncipe dos perdões infinitos.

À obra do filósofo junta-se a do jurista construtor e a do historiador dotado de profundo senso crítico.
A do jurista é vasta e variada: o direito constitucional, o direito administrativo, o direito civil, o direito comercial, o direito penal, o direito internacional e o direito processual devem-lhe páginas de excepcional valor, que o colocam com destaque na plêiade dos jurisconsultos de que nos orgulhamos, dos Teixeira de Freitas, dos Lafayette, dos Nabuco, dos Ribas, dos Carlos de Carvalho, de Rui Barbosa, para só falar de mortos.

Algumas dessas páginas, ele as enfeixou em Dissertações e Polêmicas, onde me permito destacar o seu estudo de direito constitucional sobre a liberdade religiosa e as suas conseqüências, no qual estabelece de modo irrecusável estes dois fecundos princípios:

O que prevalece e está consagrado no direito constitucional vigente é o regime da ampla liberdade para as corporações e fundações. Foi uma das raras inovações felizes que fez a Constituinte de 1891. Repeliu-se a velha doutrina das limitações à liberdade de associação para fins religiosos.
Se, tendo em atenção o modo como há sido entendida a liberdade religiosa na América do Norte, estudarmos o § 7.o do art. 72 da nossa Constituição Federal, a conclusão a que havemos de chegar forçosamente é que a regra aí contida não veda que os Estados subsidiem os hospitais e casas de instrução, dirigidos pelos religiosos.

E assim completa o seu pensamento:

Se todas as confissões, fundadas nos princípios fundamentais do cristianismo, têm direito a uma proteção igual, nunca se poderá censurar o legislador, que, respeitando o princípio da igualdade, propulsar entre nós o desenvolvimento do catolicismo; porquanto devemos dizer dele o que do cristianismo, em geral, repetem frequentissimamente todos os bons publicistas norte-americanos: se não é hoje a nossa religião oficial ou legal, é inquestionavelmente a religião nacional do Brasil.

É a mesma orientação a que já anteriormente aludi, revelação do espírito conservador de Pedro Lessa, que terei de documentar em breve.

Aos que estranhem esses conceitos na sua pena de filósofo determinista, responderei com a autoridade do professor Bunge, da Universidade de Buenos Aires, que no seu livro O Direito É a Força escreveu:

A herança de uma longa série de ascendentes, todos mais ou menos místicos, gravou em nossa alma uma tendência religiosa que se enfraquece hoje, mas que dois ou três séculos de cepticismo não eliminarão facilmente. Pelo que, é perfeitamente possível, neste momento, que – mesmo entre temperamentos positivos, mesmo entre homens incrédulos – existam sentimentos religiosos sinceros. Darwin freqüentava o templo. Gladstone, chefe do partido liberal inglês, escreveu, mais com boa vontade do que com erudição, o livro intitulado O Rochedo Inexpugnável dos Evangelhos.

A subordinação de Pasteur às suas crenças religiosas é bem conhecida... O caso destes sábios, deste homem político, oferece exemplos de um dualismo sui generis, eminentemente atual: – a coexistência do espírito crítico e do sentimento místico. Esta coexistência é razoável. Com efeito, qualquer que seja a extensão dos conhecimentos científicos, estes deixam sempre, com o Incognoscível, uma porta aberta para o espiritualismo... Os sentimentos religiosos e a crítica científica têm sua utilidade respectiva e mesmo sua utilidade comum.

Longe de se contradizerem, devem fiscalizar-se. Enquanto os sentimentos religiosos mantêm um ambiente de moralidade favorável, a crítica, com o auxílio desse ambiente, avança no caminho do progresso.

É ainda no mesmo livro, Dissertações e Polêmicas, que se encontram os artigos de Pedro Lessa a respeito da competência dos Estados para legislar sobre o processo das justiças locais.
No nosso mundo jurídico não foi esquecida a memorável e elevadíssima polêmica entre Lessa e João Mendes sobre a difícil questão, em que o primeiro firmou a solução pacífica na doutrina, nas leis e na jurisprudência, sobre a distinção entre o que impropriamente se chamou direito adjetivo, delimitando a competência legislativa da União e dos Estados em matéria de direito e de processo.

A História teve em Pedro Lessa um exímio cultor, não dessa história que é a cronologia árida dos fatos, mas da que consiste no estudo, através deles, da evolução de um instituto, de um povo ou de toda a humanidade, permitindo tirar do passado “materiais para as induções das ciências sociais”.
É assim o seu capítulo da “História do Direito no século XIX”, nas Dissertações e Polêmicas.
São assim os seus estudos sobre o historiador pátrio Francisco Adolfo Varnhagen e sobre o escritor maranhense João Francisco Lisboa, assim como o seu laudo na contenda relativa à data comemorativa da Confederação do Equador.

Onde, porém, Pedro Lessa se eleva e se revela com o profundo espírito filosófico e crítico dos historiadores da raça dos Mommsen e dos Sumner Maine, é na sua “Introdução” à tradução, por Adolfo Melchert, da História da Civilização na Inglaterra, de Buckle.

“A História antes de Buekle”, “A História no conceito de Buckle”, “Mais algumas teorias. O conceito real da História”, são os três capítulos fortes, eruditos e construtores, daquela “Introdução”.
No primeiro, depois de uma rápida crítica dos historiadores gregos – Tucídides e Xenofonte, e romanos – Suetônio, César, Tito Lívio, conclui que “a história, para os gregos e romanos, é um gênero literário. A amplificação oratória, as ficções, o maravilhoso épico, inçam as narrativas, desfigurando os fatos, e subtraindo-os à justa apreciação dos mais claros e seguros entendimentos”.
A Idade Média nos legou alguns toscos esboços de história universal, modelados pelos escritos de Eusébio, Osório e outros historiadores católicos.

A prática das glosas, tão útil ao desenvolvimento do direito, no período medieval, transplantada para o estudo e composição da História, foi fecunda em resultados, especialmente na sua aplicação às coleções de documentos e às dissertações críticas. E cifrou-se nisso, diz Lessa, o progresso da História na Idade Média...

Na Renascença, Maquiavel bosquejou a sua original concepção da História, baseada em um abstruso semi-fatalismo, a que serviu de pólo oposto a de Bossuet, para quem, observa Lessa, “Deus intervém na direção das coisas humanas, obrigando constantemente a natureza a sair das leis por ele próprio estabelecidas”.

Começa com Vico a pretensão de fundar a Filosofia da História.
Para Pedro Lessa, porém, nem Vico, com a sua “Scienza Nuova”, nem Niebuhr, nem Voltaire, com os seus Essais sur les mœurs, nem Montesquieu, com os seus livros clássicos sobre o espírito das leis e as causas da grandeza e decadência do povo romano, nem Condorcet, como o seu Esquisse d’un tableau historique des progrès de l’esprit humain, podem ser considerados como tendo feito Filosofia da História.

É a Herder que ele atribui a primazia de uma tentativa dessa filosofia, embora declare logo que as Idéias sobre a Filosofia da História da Humanidade são apenas “um dos mais famosos subsídios prestados ao tentâmen de formar a Filosofia da História”.

Antes, porém, de chegar ao objetivo principal do seu estudo, que, divulgado em outras línguas, imortalizaria um escritor fora dos círculos acadêmicos, Pedro Lessa observa que “um pouco antes de Buckle na Inglaterra, já em França o filósofo extraordinário, com o qual mantém uma certa afinidade o historiador inglês, tentara determinar a lei fundamental da História, e erigi-la à categoria de ciência; mas, o gênio assombroso de Augusto Comte e a admirável solidez de seus conhecimentos científicos não lograram evitar à filosofia positiva a sorte dos ensaios anteriores do mesmo gênero”.
A lei fundamental da História é para Comte a lei dos três estados. “É certo, é cientificamente certo que o espírito humano começou pelo estado teológico, passou pela fase metafísica, entrou definitivamente no período positivo? Podemos com segurança dividir a história nessas três épocas?”

E Lessa responde:

Em verdade a reflexão sobre os fatos históricos, desde a mais alta antiguidade, nos convence que as idéias teológicas, metafísicas e positivas, têm sempre coexistido. As três ordens de concepções não assinalam períodos sucessivos do pensamento humano, porém modalidades sincrônicas, posto que diversas, direções várias, posto que coevas, das idéias que formamos sobre os fenômenos, apreendendo-lhes numerosas leis, de ordens diferentes de conhecimentos; como reconhecem Comte e Stuart Mill, no período atual, denominado positivo, as concepções teológicas e metafísicas subsistem perfeitamente, ao lado das verdades científicas.

É então que Littré, o discípulo revoltado, procurando corrigir a lei dos três estados, inventa a teoria das quatro épocas: a idade das necessidades; a da religião; a das artes; e, finalmente, a da ciência, teoria cheia de falhas e erros, maiores do que os da doutrina do mestre.

No segundo capítulo, Lessa examina a teoria de Buckle, filiada à escola do determinismo psíquico, e aproveita o ensejo para mais uma vibrante defesa dessa escola, que qualifica como “a teoria regeneradora da humanidade, a doutrina do bem, da moral, da salvação”.
Esse entusiasmo basta para marcar a sinceridade de uma convicção meditada e consciente, como só podia ser a do seu lúcido espírito.

Dessa convicção deduz que, “se o determinismo psicológico é a expressão da verdade, Buckle tem razão, quando logo no limiar do seu majestoso edifício coloca esta epígrafe significativa: “temos, pois, que o homem modifica a natureza, e a natureza – o homem; e dessa recíproca influência devem necessariamente decorrer todos os acontecimentos”.

Ficasse nesse postulado e com ele desenvolvesse os capítulos da sua história da civilização e estou que o meu inigualável antecessor, com a sua argumentação diamantina, não teria que destruir as pretendidas “quatro leis fundamentais da história”, formuladas por Buckle, nem que contestar a sua ideada “base da Filosofia da História”, isto é, “a grande divisão da civilização em européia e não européia”, deduzida de que “a tendência da história da Europa é no sentido de subordinar a natureza ao homem; fora da Europa, no sentido de subordinar o homem à natureza”.

Seria, na verdade, uma fórmula muito simplista e muito cômoda. Mas, eis que surge o cristianismo demolidor de teorias, com que Lessa, pensador autônomo e filósofo por conta própria, sabe combatê-las, para em seguida construir, embora aqui o combate tenha o apoio de Littré:

Para se poder dividir a civilização em européia e extra-européia, fora mister que a civilização européia fosse autóctone. Mas, a Europa inteira se conservava ainda bárbara, quando a Caldéia, a Fenícia, a Assíria, e, muito antes, o Egito, brilhavam com o esplendor das artes e do comércio, fundavam grandes cidades, levantavam esplêndidos monumentos, laboravam os metais e ensinavam o resto da humanidade a ler, a escrever, a contar e a medir.

Foi na extremidade da Ásia, nessa Grécia, meio européia e meio asiática, que surgiu a civilização européia, destinada a se tornar universal.
A proposição de Buckle só é verdadeira quando restringida a um período recente; mas, então foge e se esvaece, por outro lado, porquanto a civilização emanada da Europa se implanta na América, na Austrália, começa a transformar a Índia, maravilha o Japão, regiões – todas essas – em que, segundo o suposto axioma, a natureza é mais potente que o homem.

Sinto que o tempo não me permita reproduzir, porque resumir seria reprovável, se não impossível, a brilhante argumentação de Pedro Lessa, para mostrar como pôde ele, filósofo, historiador, e sociólogo, chegar, então, a esta inesperada afirmativa:

Buckle não constituiu a filosofia da história...
Pela própria natureza das cousas, a filosofia da história é impossível.
No terceiro capítulo do seu trabalho, que tanto eleva a nossa cultura, expõe as suas razões da impossibilidade da Filosofia da História, “porquanto não podemos conhecer o conjunto dos fatos que formam o todo da História da humanidade, nem induzir ou generalizar, para prever o futuro tomando por base os fatos do passado ou do presente”.

Ao mesmo tempo, porém, afirma que o método de Mommsen e, melhor ainda, o de Fustel de Coulanges, são os que podem levar a fazer da História o que ela deve ser, não uma simples narração de fatos à moda de César Cantu, mas “a descrição de fatos cientificamente classificados e repositório de materiais para as induções das ciências sociais”.
Em suma, “a missão da História não se restringe a fornecer os materiais, metodicamente dispostos, para as induções sociológicas. Subsídio precioso [...] abundantes e seguros recursos para as induções, ou para as verificações das ciências sociais nos fornece a História”, cuja colaboração é indispensável na economia política, na moral social, no direito e na política.

Tal é, Senhores, através do seu próprio criticismo, a filosofia de Lessa sobre a História, pois já agora seria irreverente falar na sua filosofia da história.
Irreverência não há, porém, em reafirmar que ele, espírito adiantado, propugnador de novos ideais, tinha idéias eminentemente conservadoras.

Sem me referir às suas opiniões didáticas sobre a solução de alguns problemas sociais, só surpreenderá a minha afirmativa, já incidentemente demonstrada, aos que julgarem superficialmente a obra proteiforme de Pedro Lessa, através dos seus gestos de polemista agressivo.
Quero documentar o meu conceito, em louvor do majestoso monumento científico e jurídico que ele legou à sua pátria.

Falando aos seus discípulos e salientando os benefícios colhidos pelo país no ensino ministrado nos seus cursos jurídicos oficiais, previne-os ele contra os demolidores, que define “como audazes remodeladores empíricos do direito, os ruminadores incorrigíveis das obsoletas endrôminas requentadas de João Jaques Rousseau, para os quais as nações são equiparáveis às míseras cobaias, em que o fisiologista aventura toda a sorte de experiências que a imaginação lhe sugere”.
Ouvi, agora, a formidável apóstrofe:

Democratas de vielas, Desmoulins de fancaria, Dantons de opereta, grotescas imitações, paródias imprestáveis de antiquados originais, já de si ridículos e funestos, eles acreditam ver nas velhas academias um importuno antemural oposto às idéias impensadas e às exóticas reformas com que pretendem subverter a sociedade, acreditando talvez que a felicitam.

Depois, em 1916, no elogio de Varnhagen, ele se dirige aos seus concidadãos, grandes e pequenos, poderosos e fracos, governantes e governados, com estas confortadoras palavras, que envolvem um conselho patriótico:

Que é que nos falta neste momento de prementes dificuldades, em que o desânimo e a conseqüente inércia avassalam tantos espíritos? Não temos que lutar com uma só das tremendas calamidades que a guerra assoprou entre as nações da Europa. Não nos afligem fatos superiores à vontade de homens regularmente educados e medianamente enérgicos. Do que precisamos para vencer a presente crise (e ainda é o conhecimento da História, a comparação do presente com o passado, que no-lo revela), é de predicados que já tivemos e que facilmente podemos readquirir, de qualidades que se formam com algum pouco de boa vontade; de trabalhar com tenacidade, de economizar inteligentemente, de viver com a coragem de todo homem digno, de respeitar as leis e as autoridades, de eleger autoridades e representantes que se imponham ao respeito do povo por seu procedimento escorreito e exemplar, de disciplina e coesão, de libertar-nos das ambições criminosas, ilegítimas ou excessivas, de um pouco de patriotismo e de alguns pequenos sacrifícios.

Parece que falava, não o historiador, mas o dedicadíssimo presidente dessa excelsa obra de patriotismo, que é a “Liga da Defesa Nacional”, a que Pedro Lessa deu o melhor de sua alma, com fé de apóstolo e ardor de moço!
Mas ouçamo-lo agora, em novissima verba.
É no prefácio do seu livro, hoje clássico – Do Poder Judiciário, – código de direito constitucional, a que me permito fazer algumas restrições, que ele reafirma o seu espírito conservador, já então com a serenidade de grande juiz:

Dado o grande número de brasileiros que hoje condenam as vigentes instituições políticas, e pedem que sejam elas alteradas ou mesmo suprimidas em benefício da liberdade política e da moralidade administrativa, creio que todo o tentâmen no sentido de contribuir, para as fazer conhecidas, representa um esforço digno de apreço; pois a verdade é que os males que lhes costumamos atribuir, decorrem, não da sua observância, mas da falta de conhecimento e aplicação das mesmas. Cumprem-se e aplicam-se freqüentemente as normas legais do regime federativo, com o espírito embebido nas idéias do regime e do sistema opostos.

Antes de modificarmos, ou de eliminarmos, a nossa lei fundamental, aconselha a mais elementar prudência que cuidemos de a conhecer e aplicar.

Foi com esse alto pensamento conservador que Pedro Lessa pôde realizar a sua obra de magistrado.
Foi, certamente, por isso, que quem tinha autoridade para fazê-lo o denominou “Marshall brasileiro”.
Não considero imerecido, mas não me parece o mais feliz esse paralelo entre os dois eminentes juízes.
São, tanto quanto ele, com a primazia da antecedência, construtores do nosso direito constitucional pelo Judiciário, por exemplo, José Higino, Anfilóquio, Barbalho e Lúcio de Mendonça.

Para mim, a psicologia de Pedro Lessa, ministro do Supremo Tribunal, mais se aproxima à do notável juiz Harlan, que, segundo o professor Lambert, em novíssimo livro, com o sugestivo título Le Gouvernement des Juges, “soube impressionar vivamente e atrair a atenção da opinião pública americana, pela freqüência e vivacidade dos seus dissents nas matérias constitucionais”.
Assim foi Pedro Lessa que, mesmo julgando, sem jamais faltar aos ditames da justiça e do direito, não escapou aos impulsos do seu temperamento de polemista, e que, no início de sua alta magistratura, teve freqüentes votos vencidos, proferidos “com o olhar aceso e faiscante de ira”, com vivacidade de expressões e tendências inovadoras da jurisprudência aceita.

Acabou vencendo – tal era o poder de sua argumentação – em que quase todas as teses constitucionais que sustentou contra a jurisprudência anterior, como na extensão do habeas corpus e do recurso extraordinário, e na ampliação da competência da Justiça federal nas causas entre cidadãos residentes em estados diversos.

Assim como o juiz Harlan, que, “ayant concouru à quelques unes des premières décisions qui dévièrent le contrôle constitutionel des cours de sa fonction initiale, fit entendre plus tard des protestations bruyantes contre son extension au jugement de l’oportunité ou de la rationalité des lois”, Pedro Lessa, eu creio, se tão cedo não o arrancasse a morte ao nobre serviço da justiça, recuaria um pouco de suas doutrinas extensivas.

Certa vez, em uma das palestras com que me honrou e distinguiu, presente um íntegro colega, ele me disse com aquela sua franqueza de homem reto e sincero: “em algumas matérias, foi preciso jogar a barra um tanto longe; é tempo de recuar um pouco”.
Registrei essa frase, sem jamais supor que a poderia repetir.

Repito-a, aqui e agora, porque ela é em louvor do íntegro juiz, que, verificando que a necessidade social ou política já não o exigia e dando alma à Constituição, convinha em reconhecer que nova orientação interpretativa se impunha, sem desfigurar ou violar a lei básica, antes permitindo-lhe, pela autoridade da Suprema Corte, e só por ela, uma existência compatível com as necessidades sociais e políticas do país.

Comparado a Marshall ou a Harlen, o que é incontestável é que Pedro Lessa deu prestígio à toga, vida ao direito e força à Constituição.
Agora noto, Senhores, que o nosso auditório pode estranhar que eu não falasse da vida de Pedro Lessa no século. Não o fiz em obediência ao preceito do nosso regimento; não o fiz também porque, se apresentasse aqui a sua biografia, poderia parecer que vos falava como membro do Instituto Histórico, relembrando a vida terrena do consócio morto.

Para esta ilustre Companhia, a vida é a obra produzida; que Lessa nascesse no Serro ou alhures, no ano de 1859 ou em outro, pouco importava ao crítico de sua obra, desde que isso não era fator da formação do seu luminoso espírito. Nem mesmo disse quando ele morreu; não o direi.
Aqui, ninguém morre.

Por vossa vez, não podereis estranhar que, tendo discorrido longamente, embora com deficiência, sobre a obra de Pedro Lessa, não fizesse a crítica dos seus trabalhos literários.
Diante do “ad impossibilia nemo tenetur”, certo estarei absolvido, porque para a falta não concorreu a minha volição, senão o determinismo psicológico, que vos conduziu a elegê-lo sem obras literárias, e a ele em ser eleito, sem ter escrito, ao que me conste, versos ou poemas, romances ou contos, crônicas ou novelas, dramas ou comédias, pelo menos dos que vêm à publicidade e conferem o merecido e nobre título de literato, sem negar eu que, nos primeiros anos de juventude, com o primeiro buço, poucos terão escapado às grandes manifestações do amor, quase nunca platônico, em versos ou prosas, que a idade madura vem a maldizer ou renegar.

Não falo de mim que, com a prévia autorização de mais de um discurso acadêmico, posso dizer que não perpetrei nada disso. Referindo-me à ausência da obra literária de Pedro Lessa, não cometo impertinência, nem censura, que seria irreverente à ilustre Companhia.
Na verdade, Senhores, quando em dia feliz – albo lapillo notare diem – o elegestes e, quando em dia de galas, o recebestes no seio desta Academia, quisestes mostrar e demonstrar que a fundação de Lúcio de Mendonça tinha com a do grande Richelieu uma identidade de princípio que assegurou à Academia Francesa a sua tricentenária existência.

Que princípio é esse?
É aquele que, ao ser recebido como acadêmico, Ernest Renan (que invoco sem idéia preconcebida) assim explicou:

Je veux dire – ce principe – qu’à un certain dégré d’élévation, toutes les grandes fonctions de la vie raisonnable sont sœurs; que, dans une société bien organisée tous ceux qui se consacrent aux belles lettres et bonnes choses sont collaborateurs; que tout devient littérature, quand on le fait avec talent.

Professor, advogado, filósofo, historiador e juiz, Pedro Lessa consagrou-se sempre “aux belles et bonnes choses”; tudo ele fez com talento e saber; a sua vasta obra constitui, pois, boa literatura.
Nada lhe faltava, portanto, para ser acadêmico.
Vós lhe destes este título e bem o fizestes.

Para a sua vaga, fostes felizes na escolha de Eduardo Ramos, infelizmente morto antes que tomasse posse desta Cadeira, o que vale dizer – antes que vos encantasse com a magia da sua palavra, dando lugar a que vos desencante eu hoje com o desprimor da minha.

Embora a rigidez do regimento não permita considerá-lo membro da ilustre Companhia, certo esta me consentirá que relembre, em rápida silhueta, a feição original do grande e culto talento de quem, para substituir Pedro Lessa, me precedeu com todos os títulos, nos sufrágios da Academia.
Para os que não o conhecessem de perto, a feição intelectual de Eduardo Ramos seria a da sarcástica, mas em realidade ele era um afetivo e um crente do bem e do justo.

Toda a sua alma, toda a sua orientação de primoroso escritor, todo o seu espírito de crítico dos homens e das coisas do seu tempo, na Correspondência de Erasmo, nas Prosas de Cassandra e nos Retalhos e Bisalhos se concentram nesta frase que ele pôs no frontispício do primeiro daqueles livros: – “Ce n’est sans douleur, que je ris de toi.”

Era o riso, ou melhor, o sorriso, ora de humorismo, ora de sarcasmo, de quem, condenando vícios e verberando males, não deixava de sofrer pelos efeitos deles na sociedade em que viveu.
Vede como faz o elogio da mentira:

Pode-se definir o caráter dos homens, e dos povos, pelo balanço das suas mentiras. Existe a mentira que acrescenta: – é a lisonja. E a mentira que mutila: – é a calúnia.
A primeira ganha com o que dá. A segunda com o que arrebata.

As mentiras com as asas de anjo chamam-se ilusões. As ilusões com asas de vampiro chamam-se perfídias. A mentira se desdobra em uma vasta escala, desde a inocência do molusco solitário, que se dissimula no limo do seu rochedo, até a perversidade noturna da hiena cadaverosa.
Antes de atingir a seus negros extremos, na expressão culminante de maldade humana, a mentira guarda-nos o seu tesouro de bálsamos. Porque ela é a fecunda criadora de possibilidades. Somente por ela nos é permitido gozar da sensação real do improvável.

Somente ela é capaz de prender as quimeras que passam no turbilhão aéreo do seu vôo, fazendo-as cantar junto à nossa fronte abatida as melodias inéditas de suas harpas... Até as próprias virtudes mentem, nas grandes resignações, nos martírios risonhos... Há dolorosos silêncios que são mentiras mudas... Bem haja, pois, a mentira.

Qual a literatura que não se orgulharia de uma página como essa? Outras, todas as outras são assim na obra de Eduardo Ramos.

Em todas há o mesmo fundo de cepticismo com que, político, abandonou a política e advogado, dos mais cultos e dos mais íntegros, muitas vezes duvidou da justiça humana.
Não abandonou, porém, a alta política, feita pela nobre crítica das coisas públicas, que o interessavam, como bom patriota, e não descreu jamais da justiça imanente e eterna, que o apaixonava como sincero cultor do direito.

*  *  *

É tempo, Senhores, de vos libertar do enfado.
Se não vos trago, para suceder-lhes, o tesouro da obra científica de Pedro Lessa, nem o precioso escrínio da obra literária de Eduardo Ramos, trago-vos um espírito cheio de fé na vossa ação criadora, em bem da cultura nacional, para o que não são de desprezar os mais modestos obreiros.