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Discurso de posse

É com subida honra e fraterna alegria que venho a esse púlpito, a este microfone, para prestar um agradecimento a todas as acadêmicas e todos os acadêmicos da mais importante instituição cultural do Brasil. Agradeço a consideração e o afeto com que fui recebido por todos da ABL, dos colegas acadêmicos ao corpo administrativo da Casa. Ao me candidatar, levei em conta a receptividade da minha obra em textos escritos por acadêmicos da ABL, que guardo com carinho, tais, para citar apenas os que já nos deixaram, Moacir Scliar, Ivan Junqueira, Lêdo Ivo, Eduardo Portella, José Montello, Antonio Houaiss e Celso Cunha. A avaliação de acadêmicos me incentivou a tão pretencioso desejo, o de pleitear uma cadeira na Academia Brasileira de Letras pelo que ela representa no cenário cultural brasileiro. Entre os acadêmicos atuais da ABL, e na impossibilidade de a todos citar, deixo aqui meu reconhecimento e gratidão, em particular, ao acadêmico Antonio Carlos Secchin pelo empenho e torcida. (Se me permitem uma digressão , Secchin e eu somos colegas do mesmo Departamento – Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – há mais de 40 anos. Trabalhamos com frequência a questão da autoria, tema fulcral nas análises literárias e a que dediquei boa parte da minha obra. Nessa linha de análise, Tarso de Molina desaparece atrás de Don Juan. Permito-me citar uma estrofe de um dos seus poemas cujo título é justamente “Autoria”:

“Na linha anônima do verso,

aposto no oposto do meu sim,

apago o nome e a memória

num Antônio antônimo de mim”

A Universidade Federal do Rio de Janeiro teve até agora, sucessivamente, desde os anos 60 quando da sua fundação, três professores titulares de Literatura Brasileira : O acadêmico Afrânio Coutinho, o Acadêmico Antonio Carlos Secchin e tenho a honra de ser o terceiro titular da referida cadeira. Apenas três em toda a história da maior Universidade Federal do país. Duas colegas e amigas de grande envergadura intelectual e humana, Marlene de Castro Correia e Samira Mesquita, foram titulares por via judicial por lhes ter sido negada a abertura de vagas para a titularidade na época.)

Com essa digressão e consideração ao meu colega de UFRJ e da ABL, envio meu abraço afetuoso e fraterno extensivo a todos os acadêmicos e acadêmicas. 

Passo a ocupar, cônscio da grande responsabilidade, a Cadeira 35 da Academia Brasileira de Letras, cujo Patrono é Tavares Bastos e fundador Rodrigo Otávio. Ocupada sucessivamente por Rodrigo Otávio Filho, José Honório Rodrigues, Celso Cunha e, finalmente, Candido Mendes, a quem sucedo com muita honra e respeito. Coube-me a distinção de ser acolhido nesta Casa pelos meus escritos, a minha Ficção. E, permitam-me precisar, tudo que escrevo é gestado, amadurecido e espelhado em Santa Catarina, onde vivi e estudei até os meus 16/ 17 anos. Foi ali que também entendi e busquei resolver ingenuamente os problemas sociais do Brasil através da Arte. Particularmente, a leitura compulsiva do Poeta simbolista Cruz e Sousa - lido em voz alta pelos meus pais em folhas avulsas transcritas por meu avô e passadas para a família pelo seu amigo o governador Nereu Ramos -, Cruz e Sousa , o mais importante artista na área literária do Estado de Santa Catarina e um dos maiores do Brasil. Relembre-se que Cruz e Sousa era negro no Estado com o menor percentual de população negra do país e com conhecida voltagem de preconceito que, felizmente, vem mudando radicalmente. E é o escritor que deu nome ao Palácio, agora museu, mais emblemático de Florianópolis, no centro histórico da cidade. Mas houve outro embuste do destino: A presença feminina em Santa Catarina, Estado com forte protagonismo político masculino, tem um ícone nacional: Anita Garibaldi, a mais importante personagem da História do Estado e uma das maiores do Brasil. Assim fica difícil para alguns preconceituosos! É a roda do Fado. É o brado dos olvidados alcançando o espaço que lhes pertence. 

Pensei o mundo e a condição humana como blumenauense, vale-itajaiense e catarinense. Não logro construir a minha narrativa sem me debruçar nessas contradições e nos afetos do meu Estado. 

A partir daí saltei para o Rio de Janeiro e toda a sua idiossincrasia como capital cultural do Brasil inteiro. Aprendi, tinha então 16/17 anos, a assistir aos filmes de Godard, no cinema Paissandu, a ouvir com atenção os discursos políticos das lideranças estudantis, a frequentar os concertos no Teatro Municipal, a visitar o Museu de Arte Moderna e o de Belas Artes, a ouvir Chico, Gil (hoje, nosso acadêmico), Caetano, Bethânia e Paulinho da Viola, embalado pelos Rolling Stones, Beatles e pelos sambas da Portela. Emoldurando o conjunto, conhecendo o biscoito Globo, o angu do Gomes, o Botafogo, time para o qual torcia meu pai, a carrocinha do cachorro-quente Geneal, as instalações amedrontadoras do Dops, e a ler Drummond, da Rosa do Povo, Cacau, de Jorge Amado, só depois acadêmico, e a poesia engajada do poeta Ferreira Gullar, só mais tarde também acadêmico, como sabemos. Mas a forte emoção vinha das visitas à Biblioteca Nacional e à Biblioteca da Academia Brasileira de Letras, me deixando penetrar pelos torneios gramaticais e semânticos do autor de Brás Cubas, cuja alma me invadia e me invade até hoje ao vencer o umbral da nossa Academia. 

Em seguida me transferi para Paris. O Brasil exalava um odor fétido de censura e de autoritarismo, de violência e de repressão. Um sentimento amoroso também contribuiu decisivamente para esse afastamento do Brasil. Claire que o diga. Na capital francesa, a França, chamada então de terra de asilo, me abriu outro mundo. Aprendi, na minha área, com os professores Jacques Derrida e Roland Barthes, entre vários outros, o embasamento teórico e social embutido no fazer literário. É a partir dessa geografia física e humana, esses três polos, que busquei entender a Arte e o seu papel na sociedade e na História. Espaço afetivo com as contradições, grandezas, injustiças, generosidade, egoísmo e magnificência, espaço onde inevitavelmente digladiam-se ideias, aparam-se ou se potencializam arestas. A condição humana é assim estruturada, não há outro suporte, mas há maneira de suavizá-la. E há escolhas, como bem o sabem, senhoras e senhores acadêmicos. Escolhas necessárias, fundamentais e estruturantes que exigem – se desejarmos uma nação ciente do seu caminho civilizatório – exigem banir o preconceito étnico, o preconceito religioso, a misoginia, a homofobia, o etarismo, a violência e o preconceito de gênero, o racismo – vidas negras e vidas indígenas importam, vidas e integridade das mulheres importam. Esse encontro do Brasil com a nação brasileira é medular para o despontar da paz e da harmonia, conceitos tão vilipendiados recentemente por franja, infelizmente, ativa no Brasil. O incentivo à violência não pode jamais ser um parâmetro prévio para a vida social, como o espírito e a alma da nossa ABL sabem. A Academia Brasileira de Letras terça por um Brasil soberano e de paz empunhando apenas a Arte, o Conhecimento e o Saber. Como vencer por dentro esse dragão da maldade, que bem ou mal vige dentro de cada um de nós? Há o preconceito que isola o outro baseado na concepção de superioridade, que em nível internacional histórico justificou a abusiva e preconceituosa política colonial; ou há a concepção de simples tolerância sem diálogo, um tipo de guetificação típico hoje da proposta anglo-saxã contemporânea vitoriosa, há ainda a proposta republicana, oriunda da Revolução Francesa, de através da escola laica, formarem-se cidadãos e cidadãs livres, iguais e fraternos. Penso aqui em Todorov e seus ensaios. Nenhuma delas resolve a contento o problema, é o que vemos pelo mundo. Mas existe uma proposta espiritual, uma noção de postura diante do outro, um comportamento cotidiano a ser assumido pelo sujeito. É indispensável a busca incessante de compreensão da subjetividade desse outro, tarefa difícil, mas imperiosa se pensarmos em uma sociedade mais feliz, ter consciência que razão e emoção se aninham dentro de nós, que brigam, às vezes ganha a emoção, outras a razão. Penso aqui no “Grande Sertão: Veredas”, do acadêmico Guimarães Rosa. Cito as palavras de Riobaldo: “deus e o diabo vivem dentro da gente. (...) melhor se arrepare: pois, num chão e, com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca – brava, que mata?” 

Tentar equacionar esse choque diariamente, com as nossas dificuldades sociais e psicanalíticas tão bem conhecidas, essa peleja dentro de nós, é o desafio para uma sociedade mais fraterna e justa. E, acredito, é através da Literatura, da Arte e da Educação e do Conhecimento que podemos alcançar esse objetivo. Sempre admirei a Academia Brasileira de Letras nesse afã de buscar, através da Arte e do saber científico, um mundo melhor. Uma Instituição que não se limita a transmitir e divulgar dados e informações, mas a produzir conhecimento, como se constata, por exemplo, nos ciclos de conferências semanais abordando todo o leque de temas de importância fulcral para o Brasil. Uma Academia, a que tenho agora a honra de pertencer, cujas ações sociais, como a criação de bibliotecas comunitárias e as atividades junto às escolas municipais para a formação de leitores permitindo o acesso universal à cultura, sempre mereceram o respeito da sociedade brasileira. Uma Casa que tem o respeito dos brasileiros. Uma instituição, como escreve justamente Tavares Bastos, o patrono da Cadeira 35, Doutor em Direto e deputado em meados dos anos 1800, nascido em Alagoas em 1839 e falecido na França em 1875: “Guio-me pelos fatos, combino os opostos, encadeio as analogias e construo a doutrina. Não tenho um sistema pré-concebido, não idolatro o prejuízo. Aceito o sistema que os acontecimentos me impõem”. Tavares Bastos recebeu elogios vigorosos dos acadêmicos Rui Barbosa e Evaristo de Moraes Filho. Renovação e esperança é o que trazem, para Evaristo de Moraes Filho, os escritos de Tavares Bastos. “Alma de gigante”, assim o definiu Rui Barbosa. A busca de objetividade de Tavares Bastos, por vezes extremamente cortante, o levou a culpar a colonização portuguesa pela deficiência na economia e na cultura brasileira. Como já bem salientou o acadêmico Celso Cunha, desta cadeira, Camões e o matemático português Pedro Nunes, só para citar alguns, matizam sobremaneira aquele juízo de valor de Tavares Bastos. A riqueza e a grandiosidade da sua obra, entretanto, o eximem de crítica maior. 

A alma da cadeira 35 cresceu, claro, vigorosa valente, incólume, com o seu Fundador, Rodrigo Otávio, que escolheu Tavares Bastos como patrono. Escreve o advogado, um dos mais fundamentais memorialista do Brasil, magistrado e escritor Rodrigo Otávio, nascido em meados dos anos 1800 e falecido no Rio de Janeiro em 1944, referindo-se à Academia : “A inspiração superior que nos congregava era tão alta e salutar que a Academia, reunindo partidários e apologistas de credos políticos, religiosos e sociais adversos e irreconciliáveis, jamais foi teatro do mais ligeiro e sutil desentendimentos de seus membros”. Seu filho, Rodrigo Otávio Filho, que o sucedeu na Cadeira 35, também advogado, nascido no Rio de Janeiro em 1882 e falecido na mesma cidade em 1969, divide com o pai o mesmo exemplo paradigmático da tolerância. Ambos foram defensores ativos do Liberalismo na política. Rodrigo Otávio Filho é autor do texto “Sincretismo e Transição: O Penumbrismo”, destacado na obra do acadêmico Afrânio Coutinho. Cabe sublinhar, igualmente, o seu importante livro, de 1933, sobre o poeta Mário Pederneiras. 

O acadêmico José Honório Rodrigues, da Cadeira 35, historiador e professor, nascido no Rio de Janeiro e falecido na mesma cidade em 1987, no seu discurso de posse nesta Casa, produziu um texto lapidar para entender a atuação do grande historiador na área acadêmica universitária e política. Cito: “Gostaria de fazer considerações sobre o uso das palavras pátria, patriota, social, nacionalismo, liberalismo e democracia, todas nascidas durante e após a Revolução Francesa”. Atenho-me a uma parte substancial do espírito da Cadeira 35, notadamente o aspecto da Língua Portuguesa e a defesa intransigente da democracia. José Honório Rodrigues, em conferência nos Estados Unidos em 1980, com o título Vitória da Língua Portuguesa no Brasil Colonial, procede a um levantamento e à análise da injusta divisão social valendo-se, em parte , da questão linguística, que serve como metáfora para a análise das injustiças sociais do Brasil. Segundo o grande historiador, não houve, e nem poderia haver, uma harmonia linguística no Brasil durante três séculos, subentende-se também paz social, pois a imposição da língua portuguesa contra várias línguas indígenas e africanas só se fez com muitas mortes e muito sangue derramado. Foi neste cenário macabro que a língua portuguesa se impôs, salienta o historiador. A obra de José Honório Rodrigues foi, e é até hoje, de grande importância para os cursos de História do Brasil. O seu “Independência: Revolução e Contra-revolução “é de leitura indispensável para o conhecimento das contradições do Brasil. 

A consciência dessa dinâmica interna, há pouco por mim referida, senhoras e senhores acadêmicos, nos angustia, mas nos faz crescer, é o princípio cultural que nos faz avançar, é o prosseguimento civilizacional. Há recuos e avanços. Há surpresas nefastas como a vivida pelo Marcelino pescador, o meu Cruz e Sousa dos mares, que abre o romance homônimo. Minha homenagem ao cafuzo criado totalmente na cultura açoriana da ilha de Santa Catarina: 

“A noite voltou, assim, de repente. O alaranjado do sol ia surgindo, a Divino Espírito Santo tinha atravessado a linha de arrebentação, Marcelino içado a rústica vela, já quase saíam da baía de Praia do Nego Forro quando a noite toldada voltou, assim, de uma hora para a outra. O clarão insinuante lá atrás da fímbria de água do horizonte se embaciou, nuvens espessas foram encobrindo a brasa nascente. Maneco, em pé, apontava nervoso na direção da barra. Lino, na popa, parou de remar. A Divino recebia no nariz um sopro cada vez mais forte, o mesmo que zunia na sua vela retesada e nas orelhas dos seus dois tripulantes. Maneco olhou firme nos olhos de Marcelino como se dissesse – é melhor a gente voltar.” 

Mas voltar por prudência, não para desistir, mas para voltar com mais segurança ao mar generoso e provedor. Marcelino ainda jovem pescador, recorre ao saber, à experiência de outros pescadores, ao conhecimento. A ciência dos modernos centros de pesquisa e o saber acumulado pela vivência devem ser incentivados, respeitados e aplaudidos. Jamais negados. É o que o jovem pescador Marcelino nos ensinaria, ou ensina. Marcelino é o meu herói cafuzo criado desde o nascimento na cultura açoriana da ilha de Santa Catarina. 

Veja-se o exemplo da Arte, caros colegas e amigos da Academia Brasileira de Letras. A criação artística não representa só a vitória do escritor sobre a vida, mas sobre a literatura que ele tem internalizada, a Literatura dos outros, do presente e do passado. A narrativa é tão próxima das narrativas anteriores, mesmo se numa demonstração de ruptura, quanto do mundo em que nos encontramos. Nas bibliotecas do mundo inteiro elas estão classificadas mais na relação entre elas do que em relação à realidade ou a um tema. É que o artista é um criador de formas, não um imitador do real. O artista busca escapar do destino humano, esse destino apequenado diante da natureza, do trovão, das marés, das catástrofes, e principalmente da morte. Por essa razão se emprega a palavra imortal para a Arte e para o Saber, ou seja, ela criou mundos para sempre. A Arte é um anti-destino nesse aspecto. Penso em Malraux. Mas qual a diferença entre o imaginário do artista e o imaginário do sonhador? É que o imaginário do artista é o domínio dessas formas, como disse. O mundo da Arte escapa das leis do espaço e do tempo humano. Não há criação sem forma estética. Lima Barreto, Machado de Assis, e os nossos poetas e prosadores da Academia Brasileira de Letras mostram as formas romanescas e poéticas do seu tempo talvez mais do que a cidade, a sociedade ou um espaço qualquer. A Literatura permite ao leitor se conhecer e conhecer o real, na medida em que a visão do escritor permite a experiência da alteridade e a compreensão da subjetividade do outro a que me referi no início. O artista está assim a serviço da verdade e da liberdade. Penso em Ítalo Calvino. Proust escreveu que a literatura é a única vida vivida. A vivência e a experiência, a leitura dos outros, leitura dos clássicos, da História, dão munição para o texto. O escritor conhece o sentimento de derrota diante da linguagem. A ruptura entre as palavras e as coisas é paralisante, o pensamento sartriano nos ajuda aqui. É dessa luta renhida do escritor com a linguagem que brota a poética. O Padre Antônio Vieira nos apontou o caminho : “ O estilo deve ser claro com brevidade, discreto sem afetação, copioso sem redundância” (XIV)

O acadêmico Alfredo Bosi nos relembra, na Dialética da Colonização, “os mitos titânicos e o seu avesso nas vozes contraditórias d’ Os Lusíadas, os pecados e as penas medievais na Bahia barroca de Gregório de Matos, a cruz do negro de engenho em Vieira, o calvário da cana em Antonil, o apocalipse nativo em Gonçalves Dias, a imolação voluntária do Guarani em Alencar, a sina de Prometeu e o signo de Cam em Castro Alves, as sombras do ser murado e da alma exilada em Cruz e Sousa e em Lima Barreto”. Tal reverência ao passado não implica descuidar-se das imposições do presente, também na língua do romance, diga-se. Ensina-nos o acadêmico Celso Cunha no seu “Língua Portuguesa e realidade brasileira”: “ Não há dúvida de que toda língua culta, quando escrita, é tradicional e, de certa maneira, uma língua especial. Se, no entanto, ela perde o contacto com a língua viva, se não se renova com as criações do falar corrente, de que deve ser uma normalização ou uma estilização, sofre em seu funcionamento, estratifica-se. E a estratificação é a morte letárgica de um idioma”. 

O acadêmico Celso Cunha, da Cadeira 35, nascido em Teófilo Otoni, Minas Gerais, em 1917, formado em Direito e Letras foi o que se chama em francês, o maitre à penser que conheci em Paris, nos anos de 72/73. Desse ano até sua morte, em 1989, mantivemos um contato constante e fraterno na UFRJ, instituição na qual estou como docente do Departamento de Letras Vernáculas há 43 anos. Referir-se a ele na Cadeira 35, que ora ocupo, não parece coincidência, parece outra coisa. Obra de uma fada...ou obra dele!! Como relembra a sua filha Cilene da Cunha Pereira, a geração de Celso Cunha foi marcada pelo nascimento do curso superior de Letras no Rio de Janeiro, pela competência e dedicação de alguns excepcionais professores brasileiros – Antenor Nascentes, Sousa da Silveira, José Oiticica, Quintino do Vale, Ernesto de Faria – e pela onda de ‘modernidade’ trazida por professores franceses e italianos emigrados da Europa em consequência da II Guerra, que ofereciam cursos sobre cultura clássica, história, linguística, filologia, mitologia e antropologia. Celso Cunha foi discípulo dileto de Antenor Nascentes e Sousa da Silveira, este último seu orientador acadêmico na universidade.

O professor Celso trabalhava diariamente até a alta madrugada. Certa vez, seriam lá duas horas da manhã, toca o telefone em sua biblioteca. Estávamos, os dois, estudando, analisando e dissecando os Lais de Bretanha do século XIII em luxuosa edição saída então em Paris, cotejando com uma edição mais antiga da sua vasta e magnífica biblioteca. Do outro lado do fio falava Ulisses Guimarães. Vinha uma solicitação de extrema responsabilidade. Celso Cunha deveria fazer a revisão gramatical da Constituição Brasileira. E ninguém desconhece a importância de uma frase clara e precisa para a hermenêutica jurídica. Professor Celso, como o chamávamos, tinha afetos e carinho pela cultura popular. A Velha Guarda da Portela, trazida por um colega da Faculdade de Letras da UFRJ, João Baptista Vargens, animou alguns encontros no apartamento da rua Diógenes Sampaio, no Humaitá. O profundo conhecedor das cantigas trovadorescas e um dos maiores especialistas mundiais em versificação galego- portuguesa, era também um grande cultor da música popular brasileira. Sabia letras inteiras dos sambas de Noel, Ataulfo Alves, Ismael Silva, Billy Blanco, tanto que em suas aulas eruditas e atualizadas, era capaz de exemplificar um fato linguístico apoiado nos sambas de compositores brasileiros. A generosidade de Celso Cunha, a bondade, a nobreza e a magnanimidade, que conheci de tão perto, chegou a mim também pela sua família, Dona Cinira à frente, família nesta noite aqui presente. A todos meus agradecimentos. Completei as informações sobre esse ilustre amigo, filólogo e linguista da mais alta competência com um texto assinado pela sua filha, Cilene da Cunha Pereira, minha dileta amiga, hoje infelizmente falecida, trazido pelo seu marido, o professor e pesquisador Paulo Pereira. Obrigado. Celso Cunha é um nome particularmente representativo das Letras no exterior, mitificado como um dos brasileiros que melhor conhecia a Língua Portuguesa desde suas origens, passando pela sua miscigenação na construção das pátrias que a têm como língua oficial, até a profundidade política que ela exerce em cada ato de fala. Celso Cunha foi autor de obras capitais na área da gíria e calão, da lírica galego-portuguesa, da crítica textual portuguesa, da versificação medieval e renascentista, da revisão crítica, da camonística, da lexicografia, do crioulo de base portuguesa, do português do Brasil, do ensino de língua portuguesa nos diferentes níveis. Presidiu a Biblioteca Nacional, recebeu as mais altas condecorações no Brasil e no Exterior, formou centenas e centenas de alunos na Faculdade de Letras da UFRJ. As Gramáticas publicadas por Celso Cunha formaram professores no Brasil inteiro. Conviveu com os grandes linguistas e filólogos do seu tempo , de Leo Pitzer, Ernst Curtius, Eugênio Asênsio, e Lindley Cintra a Coseriu , Erich Auerbach e Manuel Alvar. 

Sua obra apresenta três nítidas vertentes: a filológica, a linguística e a didática. Diante disso, era natural que a primeira vertente da sua obra fosse consagrada à lírica trovadoresca o que o tornou uma das maiores autoridades do mundo no assunto, como comprovam as edições críticas por eles preparadas: O cancioneiro de Paay Gômes Charinho, trovador do século XIII, tese cuja aprovação lhe valeu o título de Doutor em Letras e Livre Docente de Literatura Portuguesa da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, em 1947; O cancioneiro de Joan Zorro. Aspectos Linguísticos. Texto Crítico e glossário, tese apresentada para o provimento de uma das cadeiras de Português do Colégio Pedro II, em 1952; e o Cancioneiro de Martin Codax, tese apresentada para a obtenção da cátedra de Língua Portuguesa da Faculdade Nacional de Filosofia, da Universidade do Brasil, hoje UFRJ, em 1957. 

Celso Cunha alia à exímia especialização do cientista do século XX premido pela velocidade do conhecimento científico e técnico, a memória , a razão e a imaginação dos enciclopedistas do século XVIII. O estudo da relação entre realidade e linguagem como fundamento para a aquisição do conhecimento é elaborado com vigor pelo linguista e humanista, cujo legado nos honra a todos.

Esse espírito humanista teve um outro extraordinário representante na Cadeira 35: Candido Mendes, a quem tenho a honra e a responsabilidade de suceder diretamente. Candido Mendes, nascido no Rio de Janeiro em 1928 e falecido na mesma cidade em 2022, deu início à sua extraordinária trajetória cultural, política e docente publicando um estudo sobre Maquiavel, denominado “Sobre o Príncipe”, em 1952, sua Tese de Doutorado em Direito na Universidade do Brasil. Sempre me recordo com carinho da sua postura e dos seus ensinamentos quando passo pela rua Marquês do Paraná, no Flamengo, perto de minha residência, onde ele nasceu, conforme consta de sua biografia. São de novo as alamedas do destino que me aproximam do acadêmico. Com o grau universitário em Direito e Filosofia, Candido, como até hoje o conhecem meus amigos, foi professor dessas áreas na PUC/RJ e no conjunto Universitário Candido Mendes, fundado em 1902 por seu avô . Lecionou também em várias Universidades estrangeiras, como a UCLA - Los Angeles, Columbia, Yale, Princeton e Brown. Liderou o grupo de intelectuais que estiveram na fundação do ISEB, instituição de fundamental importância nos estudos sobre o Brasil democrático, trabalho começado logo após a Segunda Guerra Mundial com um grupo de intelectuais. Candido Mendes fundou o célebre Centro de Estudos Afro-Asiáticos, com o acadêmico Eduardo Portella. Candido o presidiu de 1961 a 1966. As colônias da África portuguesa passaram a integrar a ementa de vários cursos universitários no país. A cultura afro-brasileira ganhou foro de pesquisa universitária de ponta e o Centro potencializou as manifestações esparsas existentes sobre o tema no país e sublinhou a história dos levantes e da luta por direitos dos afro-descendentes. Inútil dizer que a tarefa era trabalhosa, como o é ainda hoje, apesar dos, felizmente, avanços necessários e imprescindíveis para a recomposição democrática da nação brasileira.

Durante trinta anos Candido Mendes foi reitor da Universidade que leva o nome da família. A fundação do IUPERJ- Instituto de Pesquisa do Rio de Janeiro, foi uma marca indelével na formação humanista avançada de centenas de pesquisadores brasileiros. O Candido defensor “farouche” da democracia transmitiu aos alunos o ensino das ciências sociais e das humanidades visando a contribuir para a formação de um país mais justo e mais fraterno. Eram sempre essas as suas palavras. A defesa da democracia não o largou um instante sequer. Não por outra razão, abrigou vários perseguidos políticos pelo obscuro e repressor regime político dos anos 60/ 70 em nosso país. A chamada esquerda católica, na qual Candido atuou como denodado e notável pensador, contribuiu sobremaneira - com as suas reflexões e liderança política - para a volta da democracia no país. Candido Mendes foi vice-presidente da Pax Romana, 1971; membro da Comissão Pontifícia Justiça e Paz (1972-1982); secretário-geral da Comissão Justiça e Paz no Brasil (1972-1997). Foi Presidente da IPSA (International Political Science Association) 1979-1982, entre outros. Foi deputado Federal em 1990 e 1991 pelo PMDB e no período 1997-1998 pelo PSDB do Rio de Janeiro. Candido passava 24 horas por dia pensando e propondo ações em favor da democracia e em defesa da cidadania. Sempre me impressionaram a correção e a energia desse notável brasileiro que me olhava direto nos olhos e apontava caminhos, orientava decisões sem perder de vista uma vez sequer a esperança sempre renovada de um Brasil soberano, independente e fraterno. Pude conviver com Candido Mendes quando dos estudos para o futuro do IUPERJ, instituição por ele criada e pela qual tinha imenso carinho. 

O acadêmico teve atuação destacada internacionalmente. Sublinho a agenda do Milênio, da UNESCO, da qual Candido Mendes foi organizador por convite particular do presidente da Unesco da época, Federico Mayor. Mais recentemente, em 2000, Candido criou a Academia da Latinidade. Essa instituição é uma das maiores realizações, na história do mundo românico, para a união política e cultural dos povos e dos países de origem latina espalhados pelo mundo. A Academia da Latinidade provocou um profícuo diálogo entre as civilizações, particularmente com o bloco anglo-saxão. Não por acaso o Secretário—Geral da ONU, Kofi Annan, convidou Candido Mendes a integrar comissão para a Aliança das Civilizações. A grandeza de Candido Mendes me estimula e me desafia a seguir o seu exemplo. Agradeço à Doutora Margareth Dalcolmo, esposa do grande intelectual e “batisseur” de ideias, por me passar parte fundamental desta biografia e informações que me escaparam. A Doutora Margareth relata ainda o respeito e a admiração com que Candido Mendes era recebido pelo mundo nas dezenas de viagens internacionais divulgando e solidificando a Academia da Latinidade. Constitui um trabalho laborioso elencar prêmios, títulos e comendas recebidos por Candido Mendes. Destaco o título de Cavaleiro da Legião de Honra do Governo da França de 1984; de Grande Oficial da Ordem de Rio Branco, do Brasil, de 2002; Grão-Mestre da Ordem Nacional do Mérito Científico, do Brasil, de 2006; Doutor Honoris Causa da Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle, 2005. L”aristocrate barroque” é o título que a revista parisiense Le Nouvel Observateur dedicou a Candido Mendes. A energia do Candido, o nosso augusto acadêmico, anda por aí, por aqui, dentro de nós. A luta por um Brasil fraterno é também nossa. Candido Mendes abraçava a formação religiosa como um alto valor educativo. A força espiritual capaz de trazer à tona, a homens e mulheres, a virtude e a renúncia a desvios éticos. Capaz de serenar a inquietude e o desconsolo da condição humana. Capaz de alterar o sentimento de abandono para um mundo de paz, de enlevo e de felicidade.

É um desafio particularmente árduo dar continuidade a excelência dos pensadores da Cadeira 35, caros colegas. Recorrerei aos poetas. Os poetas atingem uma verdade desconhecida. Bebem justamente em fontes desconhecidas da ciência. Platão e Freud nos ensinam esse sentimento. Com a sua arte os poetas libertam lembranças e liberam desejos e pensamentos recônditos. Amores recalcados escapam das grades e se alçam ao céu alforriado. E a Literatura avoca a si a solidariedade humana. A Arte Literária caminha de braços dados com a liberdade, nos relembra Camus. É nessa linha fronteiriça que tentarei dar continuidade à Filosofia dos pensadores da minha Cadeira da ABL, senhores e senhoras acadêmicas. 

Das lembranças formadoras da minha obra literária, destaco a Guerra do Contestado. Ouvi desde criança histórias contadas por minha família a respeito daquele movimento de guerra social, crucial, metonimicamente, para o entendimento da estrutura da nação brasileira. Escrevi “O Bruxo do Contestado” a partir dessas informações. Detalhes do aparato bélico, jagunços, aviões militares usados pela primeira vez no continente americano ao lado da Revolução Mexicana, guerra ideológica, representantes do governo russo no exílio, representantes do governo americano e do partido trabalhista inglês, todos visitando a região, experimentos de munição nova francesa e belga ainda não utilizadas, novinhas, o experimento era sobre os revoltosos antes de as dispararem na Guerra 14-18 na Europa, novos fuzis comblain, metralhadoras, o velho canhão utilizado em Canudos. Enfim, uma coletânea de histórias fascinantes deixadas pelo general Mesquita do Contestado, meu tio, algumas inverídicas e ilusórias, outras legítimas, mas ainda não confirmadas pelos historiadores por falta de provas. Como romancista, eu não podia deixar de escrever sobre esse tema. Aparece aqui a questão do indivíduo, do escritor, do narrador. Não existem propriamente indivíduos como imaginamos o sujeito de fins do século XVIII ou do século XIX. É que o comportamento individual não é puramente individual, mesmo com uma ruptura e desvio pessoal em relação ao grupo. É que há uma consciência de sociedade. Aspirações, sentimentos, ideias reúnem os membros de um grupo e os opõem a outro grupo. “Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas.”, escreveu o nosso Machado de Assis no sexto capítulo do seu extraordinário romance “Quincas Borba”. Quando os escritores recusam os valores mais tradicionais e os clichês, e opõem a eles o que entendem ser a sua consciência, quer dizer, criam um fosso entre os seus valores e a realidade do mundo, eles estão produzindo o que se chama de consciência trágica. Existem verdades que estão cima do tempo mundano. Me espelhei no magistral “Os Sertões”, escritor e também acadêmico Euclides da Cunha para compor “O Bruxo do Contestado”. Não no estilo de composição e na arquitetura do romance, mas nesse fosso entre valores. Busco, assim, recompor a crítica violenta do poder constituído contra brasileiros que mal sabiam em que estavam errados. “Cada um chama de barbárie o que não lhe é comum”, já escrevera Montaigne nos seus “ Ensaios “ no século XVI. Tal Riobaldo e sua descrição da humanidade há pouco citada, travo o mesmo combate, travamos todos, entre emotividade, às vezes cega, e razão. 

A essa sensação de mundo desalinhado, respondi no livro “Oleg e os clones”, uma fábula do desejo inconsciente de corrigir o mundo. A indígena Ana do “Ana e a margem do rio” e o conflito de culturas, os mitos da Amazônia no livro, os obstáculos do pescador cafuzo Marcelino, o conflito étnico entre os protagonistas do romance “Amores exilados”, às voltas com a angústia do exílio político nos anos 70 do Brasil obscuro e opressor, a preocupação com narradoras mulheres, como no “A Ficcionista”, a reverência a Machado de Assis no “Ilusão e mentira”, enfim, elementos do meu combate como cidadão brandindo , tal a ABL, como arma a literatura e a arte. No horizonte, um Brasil mais justo e socialmente menos desigual e mais feliz, como nos alvitra Candido Mendes. E Cruz e Sousa voltou a me chamar, tinha que escrever a sua biografia. E o fiz, ainda que o acadêmico Raimundo Magalhaes Junior já tivesse produzido a mais seminal biografia sobre o nosso poeta simbolista. No romance “Menino Oculto”, o personagem Aimoré mistura tempo, espaço e Arte, se desequilibra nesses elementos. Como nós todos? O romance “Grito” envolve teatro e prosa ficcional numa Copacabana endoidecida. Une o Jovem Fausto, de 19 anos, ator negro de teatro, e a experimentada atriz Eugenia, ela branca, de 82 anos, unidos pela Arte. O amor, o afeto e a Arte trazem a paz desejada. Apagam preconceitos. No meu mais recente romance, Esquisse, publicado em Paris mas ainda inédito no Brasil, o personagem Luigi abraça o movimento negro no Brasil após uma esclarecedora viagem aos Estados Unidos. Como a nossa Literatura estará representada na Academia Brasileira de Letras no século XXI? Retomo aqui um texto que escrevi no livro “O Pós-pós modernismo”, em coautoria com alunos da UFRJ, em 2011. 

Por volta de fins dos anos 70 do século XX, com a transformação das estruturas da geopolítica mundial, a literatura também passa por mudanças e arranjos que vão afastá-la dos pilares erigidos pelo movimento estruturalista via universidade e crítica literária. Com efeito, o processo de globalização e o consequente desejo de enfraquecimento das linhas demarcatórias entre os países, trazendo a reboque a debilitação do conceito de identidade, e a aplaudida (por muitos) vitória do sujeito, acabam por se manifestar no processo narrativo. Aspectos que evidenciam essa mudança no campo das letras são, entre outros, o esmaecimento das linhas fronteiriças entre os gêneros literários e o surgimento do conceito de economia do livro, com capas chamativas e a superexposição do autor como parceiro fundamental para a venda da obra-objeto. 

Essa ficção passou a ganhar notoriedade a partir dos anos 90, ao usufruir das diversas ferramentas de publicação e divulgação na web. As categorias literárias e os critérios canônicos foram perdendo nitidez. Clarice Lispector, prenunciando com genialidade o pós-modernismo na literatura brasileira, já refletia, em “Água Viva”, sobre essa questão do definhamento das fronteiras entre os gêneros: “Tentei classificar o livro: notas? Pensamentos? Fragmentos autobiográficos? Cheguei à conclusão que é tudo isso junto” – reflexões de Clarice que, diga-se, vão prefaciar dezenas de romances brasileiros dos anos 80. Essa dessacralização da Literatura, às vezes algo cabotina, também teve o apoio de Ana Cristina César, uma das poetas mais emblemáticas dos anos 70/80: “A literatura ficou associada a uma coisa que te dá prestígio, a um artifício para você conquistar pessoas (...) acho isso ridículo”. 

A cena literária, sobretudo a partir da década de 90, passa a se caracterizar por uma massificação de escritores, pela democratização criativa usada e abusada por todos, pela consolidação do individualismo, pelo umbiguismo autobiográfico e pelo descaso, às vezes absoluto, com a tradição – “não preciso ler poetas do passado para ser poeta”, ouvia-se pelos corredores das universidades. A classe média, a urbe e os fragmentos comunitários da cidade devoradora são escolhidos como temas e as ansiedades individuais trazidas à frente da cena. O roteiro cinematográfico sai fortalecido. É claro que a narrativa virá vazada em linguagem crua e direta. A violência e a competição desenfreada são moedas correntes. Mas houve uma abertura sadia para mais segmentos sociais e para novos experimentos de linguagem e estilo. A aproximação com a oralidade não é, porém, a mesma da época dos modernistas em busca de uma identidade nacional: ela agora é a busca do reconhecimento e da fixação do sujeito social.

Alguns acontecimentos relativamente recentes, entretanto, parecem confluir para uma mudança radical do ponto de vista do homem em relação a si mesmo e ao mundo. O iminente colapso ecológico e a crise econômica, a exigir uma reformulação do sistema do capital, incitam dois pólos reativos: o do ser agonizante ou melancólico diante das ruínas de um modelo malogrado e daquele capaz de abandonar a longa fase individualista e buscar uma forma de se reconciliar com o outro e de se harmonizar com o planeta. Se observarmos o panorama literário do fim do primeiro decênio do século XXI, podemos constatar que germina, entre muitos de nossos escritores, uma estética que remete para valores estritamente literários preocupados com a transformação democrática da nação brasileira, com romances visitando a poética do acadêmico João Cabral, de Drummond, de Graciliano, dos acadêmicos Jorge Amado, Darcy Ribeiro, Antonio Callado, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, José Montello, Guimarães Rosa, de Moacyr Scliar, de Manuel Bandeira, Antonio Olinto, Lêdo Ivo, das acadêmicas Lygia Fagundes Telles, Raquel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Zélia Gattai (faltam escritoras negras e indígenas na nossa Casa !), da Arte Poética de Ivan Junqueira , de Manuel Bandeira e de Ferreira Gullar, para citar apenas os que já nos deixaram, e até de autores do movimento pré-modernista brasileiro, designação esta nem sempre avalizada pela crítica . 

Parece surgir a exposição de relações humanas mais delicadas e consentâneas da necessidade de uma sociedade menos bestializada . Antonio Candido no seu livro Educação pela noite , de 1987, já fizera essa previsão.

Finalizando. Tavares Bastos reverencia e cita com frequência o poeta Lamartine quando disserta sobre a utopia “Les utopies ne sont que des verités prématurées”. Rodrigo Otávio, no seu “Os selvagens americanos perante o Direito”, enaltece José Bonifácio e o Marechal Rondom e condena o morticínio das nossas guerras internas. Rodrigo Otávio Filho, no seu “Missão do Escritor e outros Discursos” sublinha os princípios norteadores da liberdade e do humanismo para uma sociedade mais feliz. José Honório Rodrigues, aqui nesta mesma sala, no seu discurso de posse no dia 5 de fevereiro de 1969, afirma: “Espero que a harmonia entre o poder e o povo, a justiça e a sociedade será a tarefa a que as novas gerações se dedicarão”. Rico igualmente dos ensinamentos de Celso Cunha e Candido Mendes e da alma da Cadeira 35, também espero, senhoras e senhores acadêmicos. Obrigado.