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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Josué Montello

O primeiro advogado que apareceu nesta Academia, antes mesmo de ser ela inaugurada, e ainda sem ter onde abrigar-se, trouxe consigo uma singularidade, sob forma de três linhas exemplarmente sóbrias e que acompanhavam um cheque de cem mil réis, diretamente entregue a Machado de Assis.

A quantia, se hoje nos parece módica, mesmo substituída pela nova moeda, daria certamente para o primeiro chá acadêmico. As três linhas da carta diziam assim: “Ao Exmo. Senhor Machado de Assis – o Dr. Coelho Rodrigues cumprimenta e avisa, da parte de um anônimo, que tem para as despesas de instalação da sua nova Academia 100$000. 18.12.1896.”

Conquanto chegassem em boa hora, podendo dar mesmo para os primeiros gastos da Instituição, o cheque e a carta foram recebidos com explicável desconfiança. Pretenderia o primeiro mecenas entrar aqui por essa porta estreita? Antes mesmo de instalar-se, a Academia já teria em si, como as demais academias do mundo, o pendor natural para identificar seus futuros pretendentes.

Ao Dr. Coelho Rodrigues, sobravam os méritos para ser bem acolhido. Mas a verdade é que ele se atrasara no caminho. Já o quadro da Academia estava completo. Entretanto, ele próprio, ao ver que a Instituição, embora por nascer, ou por isso mesmo, tardava em agradecer o cheque, apressou-se em mandar nova carta, dirigindo-se também a Machado de Assis – a quem chama de comendador – e era tão sóbria quanto a anterior: “A pessoa que, por meu intermédio, ofereceu-lhe a quantia de l00$000, para as despesas de instalação do futuro Instituto, não é candidato à imortalidade.” E concluía: “Pode, pois, receber o cheque ou devolvê-lo.”

A Academia aprendeu a lição: desde a sua fundação, jamais recusou benemerências. Sobretudo agora, quando aproveita a oportunidade para declarar, na posse de outro advogado, que continua aberto o voluntariado, quanto aos novos doadores. Mas sem compromissos, como no caso do Dr. Coelho Rodrigues.

Piauiense de nascimento, tal como o confrade que recebemos nesta noite, o Dr. Coelho Rodrigues era bacharel em Direito, pela Faculdade do Recife, e seu futuro professor, e depois, no Rio de Janeiro, advogado militante, ainda como o confrade que hoje investimos na sucessão de Bernardo Élis. Era também um humanista de excepcional valor, a quem a Cultura Brasileira devia a tradução latina das Institutas do Imperador Justiniano, acrescidas de comentários elucidativos e publicadas no Recife, em l881. No plano político, representou no Senado a sua província natal, em duas legislaturas, além de ter sido prefeito do Distrito Federal quando a República amanhecia.

Assim, por todos os seus títulos, e ainda com os que ainda viriam, como a sua participação na elaboração de nosso Código Civil (antes que Clóvis Beviláqua nos proporcionasse o seu texto exemplar), o Dr. Coelho Rodrigues teria as credenciais que o habilitariam a ser um dos acadêmicos das primeiras horas. Retardando-se em fazer sentir que também aspirava a que se lembrassem dele, protelara a oportunidade de ser também escolhido. Mas a Academia não se esqueceu de seu primeiro benfeitor. Afrânio Peixoto, em 1923, mandou pintar-lhe o retrato pelo jovem Portinari, ainda na fase de sua pintura acadêmica. E coube a mim, como presidente da Academia, proporcionar a esse retrato o lugar adequado, na Sala dos Fundadores, neste mesmo pavimento, na vizinhança da Sala Machado de Assis.

Está ele ali, em espaço análogo ao do Ministro Sampaio Vidal, também benemérito desta Instituição. Sinal de que a Academia, se não chamou o Dr. Coelho Rodrigues para o seu quadro de membros efetivos, soube corresponder-lhe ao gesto generoso, quando – supomos – já ele teria desaparecido e estaria a estudar aquela geologia do Campo-Santo a que se refere Machado de Assis.

Bem sabeis que a Academia exige, para admitir um grande nome em seu quadro de membros efetivos, no momento da inscrição ao pleito respectivo, a obra publicada, confirmativa do mérito do candidato. De modo significativo, sempre tivemos aqui juristas e advogados, ontem como hoje, e de que nos desvanecemos. Lúcio de Mendonça, de quem partiu a ideia da fundação da Academia, chegou ao pináculo do Supremo Tribunal Federal, a que também chegastes, meu eminente Confrade Evandro Lins e Silva, para aqui encontrardes um colega, Oscar Dias Corrêa, e por idênticas razões: o vosso saber e a vossa vida pública.

Na fase em que não tinha onde instalar-se, a Academia teve por abrigo, nas suas sessões obstinadas, o escritório de advocacia do Dr. Rodrigo Octavio, na Rua da Quitanda, a poucos passos da Rua do Ouvidor, pequeno, aconchegado, mas onde cabiam, com a necessária boa vontade, os abnega dos que Machado de Assis já então presidia. Em redor, nas paredes que limitavam a sala, destacava-se o adorno dos retratos de alguns escritores, oriundos da desfeita redação da extinta Revista Brasileira, que deixara de circular, por falta de recursos pecuniários.

Foi ali que Madame Rodrigo Octavio, visitando o marido em companhia do filho menino, e que seria nosso futuro colega, Rodrigo Octavio Filho, viu que o garoto se pusera a olhar, com dobrada atenção, a galeria de retratos. E o menino muito vivo, querendo saber quem eram eles, entre os clientes de seu pai, subitamente perguntou à senhora:

– Minha mãe, quem são esses gatunos?

Em compensação, ali mesmo, noutra oportunidade, nosso Confrade Carlos de Laet, já de vista fraca, mas sempre aguerrido, entrou na sala aconchegada e foi apertando uma por uma, à medida que os cumprimentava, a mão de cada confrade, até que, de repente, se deu conta de que estava defronte de José do Patrocínio, com quem acabara de travar renhidíssima polêmica, por entre os mais aguerridos desaforos.

E já com a mão estendida, sem poder desfazer o gesto, não hesitou na pergunta cautelosa:

– Companheiro, estamos de bem ou estamos de mal?

E Patrocínio, apertando a mão do confrade:

– De bem, companheiro!

Assim é hoje, e sempre, a Academia. Posso dizê-lo, meu caro confrade, com a minha própria experiência. Certa vez, acusado por um inimigo crônico, em artigo assinado no jornal de nosso Confrade Roberto Marinho, aqui presente, de estar recebendo, como embaixador em Paris, uma gorda bolada em dólar, muito acima do meu ordenado diplomático, tive um encontro convosco, promovido por Austregésilo de Athayde, numa das salas de vosso escritório, no Centro da Cidade. Tínheis lido o artigo absurdo. E eu vos disse de minha intenção em processar o meu acusador. Prudentemente, e com a experiência de quem me conhecia, e mais a experiência de ter sido nosso ministro das Relações Exteriores, não hesitastes na solidariedade ao amigo e admira dor, prontificando-vos a pôr na cadeia o meu gratuito acusador. E logo acrescentastes:

– Conheço o Itamaraty, por ter sido seu ministro, e sei que ali não lhe pagariam absurdos. E conheço você, para saber que seria incapaz de cometer qualquer desonestidade. Mas, daqui a tempos, você próprio já terá esquecido esse agravo.

Sim, esqueci. De propósito, já não me recordo. Só guardei comigo o conselho generoso que hoje aqui relembro, para vos dizer de meus agradecimentos por me ter poupado levar adiante a ira ocasional.

Certa vez, ouvimos aqui, numa conferência, pela palavra de Levi Carneiro, nosso saudoso confrade e meu querido amigo, esta definição perfeita e que viera das fontes clássicas: “O advogado tem de ser o homem de bem, com o dom da palavra.” E é isso que tendes sido, por toda a vida, na vossa luta em favor do direito alheio ou da humanização da pena excessiva. E para isso nada vos faltou, meu caro confrade.

Cada um de nós, depois de ler Minha Formação, há de ter guardado na memória esta conclusão de Joaquim Nabuco, no capítulo sobre Massangana, e com a qual abre o mais belo trecho do velho livro: “O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo homem, e ao qual este terá sempre de se cingir sem o saber.”

Nosso Machado de Assis, mais sóbrio, mais contido, chegou à mesma conclusão por um caminho mais curto, recorrendo a Longfellow, quando nos diz, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, que a criança é o pai do homem.

Uma das maravilhas da criação é precisamente essa. Cumpre a cada um de nós resguardar em si a criança que foi. Nela, está a chave da felicidade futura. Quem não soube guardar em seu íntimo, como substância fundamental do próprio ser, o menino ou a menina que sempre nos acompanha, e que nos adverte, e que nos restitui a nós mesmos, não decifrou o enigma de seu futuro, sem o qual nunca seremos felizes. Por isso, quando vemos um senhor ou uma senhora levando pela mão uma criança, e ambos sorrindo, e ambos conversando, podemos afirmar que são dois meninos ou meninas que ali vão, levando em si o comprazimento da vida.

A vossa vida, meu caro Confrade Evandro Lins e Silva, não tem mistérios: nascestes em Parnaíba e sois assim piauiense de nascimento, para dar um novo motivo de orgulho à terra natal. Eu, porém, como maranhense, quero chamar para minha terra o melhor de vossas glórias, nas lutas e nos triunfos que a exornam, para dizer-vos que o meu Maranhão vos preparou para as glórias futuras que tão bem soubestes conquistar. Ali transcorreu a vossa infância, incluindo o carneirinho que vos levava a passear como se adivinhas se as glórias desta noite. Foi o vosso primeiro prêmio. E outros viriam ainda ali, incluindo as vicissitudes.

Devo acentuar que ainda há de existir em Parnaíba, florindo, dando frutos, o cajueiro plantado ali por nosso Confrade Humberto de Campos, que fez o contrário do que fizestes na vossa juventude: nasceu no Maranhão e foi ser menino em Parnaíba, enquanto vós, nascido em Parnaíba, fostes ser menino no Maranhão. Guardastes, assim, na vossa memória, as imagens que se completam e que seriam amalgamadas às que viriam do Recife reencontrado e do Rio de Janeiro afinal descoberto, para ser o cenário adequado de vossas lutas e de vossas glórias. Só vos peço que acrediteis em mim: hoje, sois aqui o mais novo, o que acabou de chegar e para ser nosso companheiro, dando-nos todas as glórias de vosso passado.

Cumpre-me salientar também que, para o vosso nascimento, as circunstâncias acumularam as dificuldades para que, desde esse instante inaugural, constituísseis o resultado de uma vitória da energia e da tenacidade sobre os obstáculos. Tivestes a oportunidade de gritar como se quisésseis anunciar que seria essa a vossa vocação – já que, como advogado futuro, devíeis ter os pulmões ajustados ao momento em que o grito faz parte da peroração.

Quando íeis sair cá fora, deixando para trás o aconchego providencial que Diderot definiu como o primeiro abrigo do homem, que é a mulher, eis que vosso pai, novato no lugar, recebeu a notícia de que o médico apalavrado para vos receber estava fora, sem condições de vir a tempo de dar-vos as boas-vindas, como estou fazendo agora. Homem decidido, o Dr. Raul Lins e Silva não hesitou: consultou as notas manuscritas que havia tomado, prevendo a eventualidade da emergência, e foi ele que vos recebeu, para serdes o que seríeis, com a identidade do sangue e da vocação: vosso pai, como juiz municipal; vós, como advogado. Ou melhor, para usarmos a expressão do Dr. Fábio Konder Comparato: advogado permanente do interesse público. Tudo quanto soubestes ser, nos postos que conquistastes por vossos méritos e nas missões que vos foram confiadas, fostes o homem da lei, a serviço das dignidades essenciais, sempre orientado no sentido da grandeza fundamental da condição humana.

Chegais aqui, meu nobre confrade, para vos integrardes na tradição deixada pelos mestres do Direito que por aqui passaram, como um Clóvis Bevi láqua, um Pedro Lessa, um Cândido Motta Filho, um Hermes Lima, um Pontes de Miranda, um Afonso Pena Junior, um Alcântara Machado, um Oliveira Vianna, um Rui Barbosa, um Lúcio de Mendonça, um Pedro Calmon, um Lafayette Rodrigues Pereira, um Aníbal Freire, um Levi Carneiro, para apenas citar alguns nomes, entre as glórias desaparecidas e de que nos desvanecemos.

Tivestes um mestre, que vos transmitiu, com a sua experiência, o seu saber e a sua voz poderosa, o segredo da palavra que se exalta para ser mais convincente, nas horas em que a eloquência faz parte da acusação ou da defesa, e se apoia nos limites da fragilidade humana. Refiro-me a Evaristo de Moraes, cujo físico compacto e cuja voz veemente, harmonizados, já constituíam, na tribuna forense, boa parte da defesa ou da acusação. O complemento vinha por si, na impostação adequada, nos gestos, na mímica e sobretudo no movimento das mãos que completavam o olhar, a cabeça erguida, o busto em desafio. Dele se poderia dizer o que disse Camilo Castelo Branco de um de seus personagens: cabia-lhe muito ar no peito.

Algumas vezes me encontrei com ele na Livraria Quaresma, na Rua São José, aonde eu também ia em busca dos livros raros, confiando na generosidade do velho José de Matos, dono da loja.

Por vezes, quando passo por seu busto, na Cinelândia, quase tenho a tentação de lhe falar, não obstante os seus graves bigodes. E bem compreendo, meu caro confrade, o tom de voz emotivo com que algumas vezes vos ouvi evocá-lo, animado por vossas lembranças. O retrato que melhor o representa, no meu modo de ver, é aquele em que o velho Evaristo nos aparece na página de abertura de um de seus livros, Minhas Prisões e outros Assuntos Contemporâneos, e em que ele é bem ele, inclusive na gravatinha borboleta e no olhar tranquilo.

Na segunda edição das Reminiscências de um Rábula Criminalista, livro modelar em que Evaristo de Moraes repassou as suas experiências vivi das, deixastes o vosso depoimento sobre o mestre: “Evaristo de Moraes foi o mais completo advogado criminal que conheci.” E concluístes, reconhecendo mais uma vez o que ele significou na vossa vida profissional: “Fui e continuo sendo seu discípulo aplicado.”

O foro sempre foi uma escola de tribunos. Quem leu o Essaisur l’Éloquence Judiciaire, de Maurice Garçon, poderá ter recolhido algumas lições essenciais para a controvérsia forense, mas nada suplantará certamente as lições ao vivo, com um grande advogado na tribuna. Nela conquistastes os vossos mais assinalados triunfos. Em algumas das questões em que fostes o interveniente, e que pareceriam causas ingratas, vós soubestes conciliar a palavra e a lei e com isto engrandecestes o vosso acervo de vitórias irrecusáveis.

Toda a vossa vida pública é, em verdade, uma sucessão de triunfos, mesmo ao desabarem sobre vós os excessos do poder militar. Tivestes nessa hora a companhia de Hermes Lima e de Victor Nunes Leal, modelos de dignidade, de competência e de correção na vida pública, notadamente nos altos postos de que foram arrancados e a que emprestavam a colaboração superior de sua cultura e da sua experiência.

No caso de Hermes Lima, o ato discricionário quase coincidiu com as glórias desta Casa. E o que ficou em nossa memória, além do rigor de uma vida límpida e de triunfos sucessivos, foi o esplendor das luzes da Academia, com os seus salões repletos e o ressoar das palmas na noite de sua posse como sucessor de Afonso Pena Junior.

Se não podemos acolher, com igual reconhecimento, o exemplar Victor Nunes Leal, a razão é simples: foi ele que não se lembrou de vir ter conosco.

E se, no vosso caso, meu caro Confrade Evandro Lins e Silva, só hoje recebeis, de nossa parte, a reparação merecida, fostes vós que vos retardastes, para corresponder a outros triunfos no vosso caminho.

Lembro-me bem de que, para a sucessão de nosso Confrade Bernardo Élis, ao ser indagado por Alberto Venancio Filho sobre quem poríamos no lugar do companheiro desaparecido, não hesitei na escolha:

– Evandro Lins e Silva – respondi.

Hermes Lima, no seu livro de memórias Travessia, publicado em 1974, por José Olympio, teve oportunidade de recordar que, na sessão solene do Supremo Tribunal Federal, em 5 de fevereiro de 1969, o Ministro Luís Galotti, ao passar a presidência ao Ministro Oswaldo Trigueiros, no discurso que então proferiu, teve a oportunidade de erguer mais a voz para esta afirmação:

          Os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva foram aposentados pelo Governo da Revolução por serem considerados incompatíveis com ela. Os atos de aposentadoria, por dispositivo expresso do Ato n.º 5, estão excluídos da apreciação judicial. Isso não nos inibe, entretanto, de render a homenagem devida aos méritos de Suas Excelências, que dignamente exerceram a Judicatura e não foram daqui afastados por qualquer motivo que lhes atinja a honra de magistrados, pois nenhum de tal natureza foi sequer apontado.

Assim, qualquer um dos três, alcançado pelo ato discricionário, saiu dali com a cabeça erguida, fiel a si mesmo, com a sua dignidade e a sua convicção democrática.

Aqui nos desvanecemos de que o ato de reparação à injustiça de que foi vítima Hermes Lima, como se não bastasse a provação da Ilha Grande, em que foi companheiro de Graciliano Ramos e de Orígenes Lessa, coube a esta Academia, na noite de 18 de dezembro de 1968, logo acompanhado pelo Ato Institucional n.º 5, que aposentou três de seus grandes ministros. Por isso, o que ficou na nossa memória, após a punição imerecida, foi a festa acadêmica, aureolada com o ressoar das palmas efusivas de todos nós, seus confrades, e dos amigos e admiradores que também acorreram aos nossos salões para aplaudir-lhe a investidura gloriosa. Se o poder passageiro o repelia, esta Casa o consagrava, entre as glórias nacionais, e dele se orgulhava, como hoje se orgulha, por idênticas razões, de Evandro Lins e Silva.

No vosso caso, meu caro confrade, a festa de hoje, embora não constitua mais uma reparação, como ocorreu com Hermes Lima, ou poderia ter acontecido com Victor Nunes Leal, é o coroamento de todos os vossos triunfos, a que só faltava a glória da Casa de Machado de Assis.

É este também o vosso lugar.

Nosso Confrade Alberto Venancio Filho publicou recentemente um primoroso estudo sobre Os Juristas e a Academia, para evidenciar que, desde 1897, quando esta Instituição foi criada, transitam por aqui os bacharéis e doutores em Direito, a que não faltaram, como não faltam agora, e já assinalei, alguns ministros do Supremo Tribunal Federal.

Podeis reconhecer assim que sempre estivemos à vossa espera.

Um dos mestres da Literatura Espanhola, integrante da geração de 1898, Pio Baroja, adverte-nos, no início de suas memórias, para o fato de que nós, escritores, começamos a escrevê-las precisamente quando não a temos. Ele próprio principiou a escrever as suas já octogenário. E daí resultou, nos cento e tantos volumes de sua bibliografia, o mais encantador de seus livros.

Premuni-me em tempo, substituindo minhas memórias pelo meu Diário. Mas ficou em mim a convicção de que, sempre que volvemos ao nosso próprio passado, há ali lembranças bem guardadas que nos restituem a nós mesmos e que refluem à nossa consciência, íntegras, objetivas, ainda banhadas por uma claridade propícia.

Devo ressaltar aqui que vossa memória, apurada pelo tirocínio de toda uma vida de lutas pelo direito alheio, quer como advogado, quer como magistrado, sem vos descuidardes de pugnar por vossas convicções, quer no plano político, quer no plano pessoal, andava a reclamar a pena do memorialista para nos proporcionar a visão de conjunto que dá às vidas exemplarmente vividas o relevo da obra de arte.

Quer pelo contributo das circunstâncias, quer pela determinação da vontade, quer pela diretriz imposta por vossa condição de homem de bem, a vida que realizastes, bravamente, dignamente, só reclamava a oportunidade da recordação dirigida para nos revelar a sua unidade admirável a que a Academia soube ser sensível, no momento próprio, para adornar-se também com os vossos triunfos.

Aqui estais agora para conviver conosco. O tribuno dos júris popula res, o mestre da palavra instantânea a serviço do Direito e da verdade, o combatente das grandes causas apaixonantes, também sensível à Política Internacional nas horas polêmicas, como ministro de Estado, fazem parte agora do patrimônio moral e intelectual de que também nos orgulhamos.

Bem inspirados andaram os dirigentes do CPDOC quando vos chamaram para que indagassem sobre a vossa vida. Quem viveu uma existência como a vossa, digna, superior, exemplar, não podia deixar que o tempo a desfizesse com a implacabilidade da areia resvalando na ampulheta. Era preciso que a consciência histórica de vossos admiradores encontrasse os intérpretes adequados para vos inquirir, para vos interrogar, para vos desafiar, a fim de que o testemunho precioso aflorasse na unidade do depoimento exemplar. E isso foi levado a bom termo pela Fundação Getúlio Vargas, a que ficamos a dever mais esta obra benemérita: O Salão dos Passos Perdidos, e a que a Nova Fronteira associou o selo de suas edições.

Três mulheres competentes, diante de uma vida como a vossa, tinham de fazer o que fizeram Marly Motta, Verena Alberti e Dora Rocha, quando vos interrogaram, sem levar em conta a sucessão das horas disponíveis, sobre a vossa origem, a vossa formação, as vossas ideias, as vossas lutas, as vossas convicções. E daí resultou, não um livro comum, mas uma obra de arte. A despeito de ter sido oralizada, não deixou de constituir o relato necessário, a que soubestes dar o relevo e o traço finamente trabalhados, extraídos de vosso mundo de recordações, para que viessem ter a esta Casa, que é agora a vossa casa.

Estou a lembrar-me de um romancista chileno, Eduardo Barrios, a quem devemos a invenção de um velho padre, personagem de um de seus romances, e que, depois de ouvir boa parte da longa fila das confessadas do dia, saiu subitamente da guarita do confessionário, com as mãos na cabeça, indignado, gritando:

– Tragam-me pecados novos! Tragam-me pecados novos!

Não trouxestes pecados, quando as três amigas vos interrogaram. Trouxestes, sim, toda uma vida de lutas sucessivas, com as quais se constitui o acervo de conquistas do homem de bem.

O que vos digo agora, exprimindo-vos a minha admiração, poderia ser a simples transposição do que escrevi sobre a vossa personalidade e as vossas lutas, na coluna de jornal em que só disse minhas verdades e minhas convicções, ao longo de trinta e oito anos de colaboração contínua. Duas vezes exprimi ali o meu aplauso às vossas obras e às vossas atitudes: uma, em 1980; outra, em 1992.

Bastar-me-ia repetir agora o meu louvor de ontem, para deixar expresso, mais uma vez, o meu júbilo pessoal pela vida exemplar que realizastes e com a qual tivemos hoje o pretexto para esta consagração.

Permiti que vos lembre o que disse em 1980, quando fui buscar no mestre adequado a analogia da experiência apropriada:

          Quem leu A Comédia Humana jamais esquecerá a cena em que, em plena madrugada, o coronel Chabert, muito pálido, expõe ao advogado Derville o seu problema aflitivo, que se resumia em ser tido e dado como morto, sem encontrar a solidariedade de ninguém. Ouvindo-o e olhando-o, Derville tem a instantânea visão de sua miséria, e decide patrocinar-lhe a causa, embora sabendo que será áspera a luta para levá-la adiante. E Balzac observa: “Uma coisa digna de reparo é a intrepidez natural dos advoga dos. Quer pelo hábito de receber grande número de pessoas, quer pelo profundo sentimento da proteção que as leis lhes conferem, quer pela confiança em seu ministério, eles entram por toda parte sem nada temer, como os padres e os médicos.” Por fim, indaga o romancista: “Não serão os advogados de certo modo homens de Estado, com a responsabilidade de cuidar de assuntos privados?” Daí a grandeza de Derville, reconhecida prontamente por Chabert: “O senhor foi, até hoje, a única pessoa que pacientemente me escutou.”

Permiti agora que aproveite esta oportunidade para uma confissão de ordem pessoal, diretamente ligada à vossa condição de homem da lei, como magistrado, e como profissional do Direito, como advogado.

Bem sabeis que, para quem tem o hábito da leitura, todo texto impresso nos atrai. Há tempos, na fazenda de um amigo, como seu hóspede, dei por mim à procura de um texto qualquer para distrair minha curiosidade da escrita alheia. Tudo quanto encontrei se limitava a pequenas publicações sobre o plantio da soja e a criação de gado. E eis que, na ânsia de distrair os olhos e a curiosidade sempre viva, dei com um exemplar do Código Civil, na edição do Dr. Paulo de Lacerda. Abri-o ao acaso e pude prontamente reconhecer que, em cada artigo, lido salteadamente, aflorava um romance, à espera de que a minha imaginação o desenvolvesse. E foi no artigo 219, completado pelo artigo seguinte, que prontamente me fixei. Refere-se esse artigo aos chamados erros essenciais de pessoa no ato conjugal. Tudo rematado por algo que ficou a teimar em mim, com a lembrança contrastante da permissividade atual, ainda que na moda, e em virtude da qual, entre os chamados erros essenciais de pessoa, figura o defloramento da mulher ignorado pelo marido.

Foi ali que confirmei minha convicção de que, em todo artigo do Código Civil, há realmente um romance à espera de seu romancista. E daí eu ter escrito A Décima Noite, no qual a noiva, filha única de um velho advogado, deixa de entregar-se ao marido na noite nupcial, levando-o à suspeita de que ela só irá entregar-se na décima noite. Ou seja, quando findar o prazo da prescrição.

Esse romance, ao que parece, deixou de ser atual para ser histórico, por força das mudanças que se processaram, se não estou em erro, em nossos usos e costumes.

A solução de desencontro, inspirador do conflito, já não me lembro bem qual foi. O que posso afirmar é que tudo se resolveu de forma civilizada, tal como mandava a imaginação do romancista – quase a me compelir a entregar a causa ao Dr. Evandro Lins e Silva.

O verdadeiro advogado, meu nobre confrade, como sabeis, nunca se afasta de sua genuína condição. Quem lê a obra de Rui Barbosa, e tem olhos para ver e ouvidos para ouvir, prontamente reconhece que, em tudo quanto lhe saiu da pena incomparável, o advogado está presente, com a sua palavra exata, com seu raciocínio vigilante.

Mesmo no momento culminante de seu Jubileu Cívico, quando se dirige a Deus para agradecer as messes recebidas, irrompe em Rui o advogado veemente, com a causa na ponta da língua. Assim:

          Senhor, se a quem nada tem com que pagar, ainda será lícita a ousadia de pedir, dai que, hoje, daqui, do alto desta solenidade, cujo esplendor só a vós pode ser tributado, juntemos todas as nossas orações às que se elevam aos vossos pés, de todos os cantos do planeta, pela regeneração de vossa obra inenarrável, desnaturada hoje totalmente com a renascença do antigo paganismo da política anticristã, que baniu a moral, o direito e a verdade, substituídas pelo interesse, pela servidão e pela mentira.

Rui, nesse texto, denuncia, argumenta, reclama, e é assim em tudo quanto lhe fluiu da pena, porque, nele, é o advogado que fala, por instinto, por vocação. Mesmo quando discute o texto do Código, na controvérsia com seu mestre Ernesto Carneiro Ribeiro, faz dos clássicos portugueses as leis em que se apoia.

Já o nosso José de Alencar será diferente. Sua pena se dissocia do escritor quando é o advogado que fala. Ele próprio, numa das questões em que foi o advogado, teve a oportunidade de definir esse outro caminho de suas lutas forenses:

          Vou falar-vos – disse ele, diante dos juízes, alteando mais a voz – a linguagem calma, fria e severa da jurisprudência. Se eu tivesse a fortuna de possuir uma dessas palavras que arrebatam e comovem, não a quisera neste momento. Só há uma eloquência digna deste recinto: é a eloquência da verdade, e esta é singela, despida de ornatos: nua como a própria verdade.

Seria esse o estilo de Clóvis Beviláqua, e não o de Rui Barbosa. Mas é interessante reconhecer, no jurista e no advogado José de Alencar, a outra forma de si próprio, contrastando o advogado com o escritor, para identificá-lo por fim com o tribuno que ele também foi, sobretudo quando falou como ministro da Justiça e soube confundir os seus opositores.

No vosso caso, meu caro confrade, para quem teve o privilégio de ouvir-vos, prontamente reconheceu que ficastes fiel, como orador, a uma forma de eloquência que sempre soube encontrar, nos momentos exatos, a veemência do patriota indignado, como quando assomastes à tribuna do Senado para vos baterdes contra o político que havia desencantado a Nação. Nessa oportunidade, o vosso verdadeiro constituinte tinha este nome coletivo: o Povo Brasileiro.

E foi então que pudemos reconhecer em vós a palavra do tribuno que falava por vossos patrícios, sobretudo no instante das exaltações supremas. Nunca, antes, eu vos havia visto assim. Quase que podemos afirmar que foi aos gritos que tirastes um governante do Poder. E essa foi a vossa maior vitória.

Estávamos, desde então, à vossa espera.

As palmas que ides ouvir, inclusive as minhas, têm efeito retroativo.

11 de agosto de 1998