NOITE DE INSÔNIA
Este leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito,
Onde este grande amor floriu, sincero e justo,
E unimos, ambos nós, o peito contra o peito.
Ambos cheios de anelo e ambos cheios de susto;
Este leito que aí está revolto assim, desfeito,
Onde humilde beijei teus pés, as mãos, o busto.
Na ausência do teu corpo a que ele estava afeito.
Mudou-se, para mim, num leito de Procusto!...
Louco e só! Desvairado! A noite vai sem termo
E, estendendo, lá fora, as sombras augurais.
Envolve a Natureza e penetra o meu ermo.
E mal julgas talvez, quando, acaso, te vais,
Quanto me punge e corta o coração enfermo,
Este horrível temor de que não voltes mais!...
(Poesias, 1909)
ÚNICA
Fruto efêmero e hostil de um efêmero gozo,
Esta vida que arrasto, efêmera e improfícua,
Sinto-a embalde, e, debalde, entre pasmado e ansioso,
Sondo-a, palpo-a, examino-a, estudo-a, verifico-a.
E tudo quanto empreende o espírito curioso,
E tudo quanto apreende a análise perspícua
É o falso, é o vão, é o nulo, é o mau, é o pernicioso,
Por menos que a razão seja perversa ou iníqua.
Logo, por que pensar? Logo, porque no Sonho
Não havemos deixar correr a vida fátua.
Obrigando o Destino a ser calmo e risonho?
Por que só não amar: É culpa? Eis-me: resgato-a
Agora que a teus pés todo o meu ser deponho,
Como um vil pedestal à tua excelsa estátua!...
(Poesias, 1909)
A ROMÃ
A Sra. Gabi Coelho Neto
Mal se confrange na haste a corola sangrenta
E o punício vigor das pétalas descora.
Já no ovário fecundo e intumescido, aumenta
O escrínio em que retém os seus tesouros. Flora!
E ei-la exsurge a Romã. Fruta excelsa e opulenta
Que de acesos rubis os lóculos colora
E à casca orbicular, áurea e eritrina ostenta
O ouro do entardecer e o paunásio da aurora!
Fruta heráldica e real, em si, traz à coroa
Que o cálice da flor lhe pôs com o mesmo afago
Com que a Mãe Natureza os seres galardoa!
Porém a forma hostil, de arremesso e de estrago,
Lembra um dardo mortal que o espaço cruza e atroa
Nos prélios ancestrais de Roma e de Cartago!
(Poesias, 1909)
ENVELHECENDO
Tomba às vezes meu ser. De tropeço a tropeço,
Unidos, alma e corpo, ambos rolando vão.
É o abismo e eu não sei se cresço ou se decresço
À proporção do mal, do bem à proporção.
Sobe às vezes meu ser. De arremesso a arremesso,
Unidos, estro e pulso, ambos fogem ao chão
E eu ora encaro a luz, ora à luz estremeço
E não sei onde o mal e o bem me levarão.
Fim, qual deles será? Qual deles é começo?
Prêmio, qual deles é? Qual deles é expiação?
Por qual deles ventura ou castigo mereço?
Ante o perpétuo sim, e ante o perpétuo não,
Do bem que sempre fiz, nunca busquei o preço,
Do mal que nunca fiz sofro a condenação.
(Últimas rimas, 1917)
A DÚVIDA
É nova a aparição, mas, sendo nova, é a mesma
Que há muito me procura e se me foge há muito!
Se a apalpo, ei-la a esgueirar-se em coleios de lesma,
Se a sigo, só lhe encontro um rastilho fortuito.
Para bem defini-la, embalde, resma a resma,
Todo o papel estrago. Em vão traço o circuito
Em que a devo prender. Se agora atra avantesma
Logo é jogral que ri num ridículo intuito.
Ora é duro pedrouço, ora é um frouxel de paina;
Ora o olhar amortece, ora lhe aviva o lume:
Ora agita as paixões, ora as paixões amaina.
O gesto do perdão e o gesto ultriz resume.
E eis-te mal esboçada em tua eterna faina.
Sócia eterna do Amor, fonte do eterno Ciúme.
(Últimas rimas, 1917)
W. B.
Nem ótimo nem péssimo. Vai indo.
Personificação do meio-termo,
Veio das vascas do governo findo
E é um paliativo no país enfermo.
Ora galgando altura, ora caindo,
Ora na multidão, ora num ermo,
Alguns afirmam que é um talento lindo,
Outros que é um pobre e simples estafermo.
De livres-pensadores teve os votos,
Continuando entre os beatos e os devotos
A ser o que carrega a maior trouxa.
Da presidência, em meio à lufa-lufa,
Quanto mais se lhe bate - mais estufa,
Quanto mais se lhe aperta - mais afrouxa.
(Mortalhas, os deuses em ceroulas, 1924)
C. DE F.
Dobradiça de mola e parafusos,
Abre a porta da escola à da caserna
E, em casos complicados e confusos,
Com a tarimba o gabinete alterna.
Dirige a pasta conhecendo os usos
E os segredos da tática moderna;
Governa a sós, não atendendo a intrusos,
Mas a vaidade, às vezes, o governa.
Tem serviços e estudos às centenas.
Bravo, se o instinto do guerreiro o guia,
Tem na paz qualidades não pequenas.
Porém, ó raio da burocracia!
Sendo Faria, o que ele faz é apenas,
Como ministro, o que qualquer... faria.
(Mortalhas, os deuses em ceroulas, 1924)
L. M.
De uma magreza de evitar chuvisco,
Tem a altura fatal de um para-raio.
Tão alto que, se o aspecto lhe rabisco,
Na vertigem da altura até desmaio.
Hoje é o senhor do cobiçado aprisco
De tenros diplomatas em ensaio;
Astuto, na rijeza de obelisco,
Não nos encara, espia de soslaio.
De alma arguta e sagaz, nada quimérica,
Feita de tino e de sabedoria,
Tudo a seu ver é uma função numérica.
Mas de andar e viajar, tem a mania.
- Cometa diplomático da América.
- Judeu errante da diplomacia.
(Mortalhas, os deuses em ceroulas, 1924)
R. A.
Era ministro então. O Olavo e o Guima
Diziam que ele era o Morfeu da pasta,
E o dorminhoco andava em metro e rima
Na pilhéria que a tanta gente agasta.
Mas galgando o Catete, escada acima,
Num despertar febril, Morfeu arrasta
Todas as forças que a vontade anima,
Nos vastos planos de uma ideia vasta.
Tudo revive! A atividade é infrene.
São mutações de sonho! É o Eldorado,
É o Dinheiro na Estética e na Higiene!
Hoje, glorioso e um tanto fatigado
Não se deixa ficar calmo e solene
A dormir sobre os louros do passado.
(Mortalhas, os deuses em ceroulas, 1924)