Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Eduardo Portela > Eduardo Portela

Eduardo Portela

NO JOGO DA VERDADE A CRÍTICA É CRIAÇÃO

A tarefa de deslindamento crítico consiste num processamento ideológico, corresponde a um interminável esforço de compreensão da verdade. Compreender a verdade é localizar-se no interior do seu jogo e acompanhar a sua dinâmica interna. Assim como a verdade joga para totalizar, a crítica só é criação quando se confunde com o jogo total do mundo, com aquela “fascinação suprema”, carregada de sentidos maiores. Essa reflexão arranca de Heráclito, que viu no logos o princípio e o fim de tudo, e que foi — e somente sendo poderia ver — o primeiro dialético consciente do pensamento ocidental. O logos é uma dinâmica de jogo; livre, sem leis nem regras. A temporalidade do logos é o seu jogo. Heráclito assim falou num Fragmento famoso, de nº 52 — a temporalidade do logos é uma criança deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança. O jogo é a própria dinâmica de estruturação da temporalidade. Dele emergem aquelas condições de relacionamento — entre os homens e as coisas, por exemplo — e de manifestação totalizadora da verdade.

Modernamente Johan Huizinga conduziu essa investigação para o âmbito das descrições culturais. Ao lado do Homo sapiens, e ocupando um espaço bastante mais amplo que o do Homo faber, ele colocou o Homo ludens. Acentuando o caráter lúdico da cultura e surpreendendo no jogo a fonte e o impulso do avanço civilizatório, Huizinga autonomiza a noção de jogo, conferindo-lhe o status de um macro-modelo por vezes absorvente e duvidoso. Em que pese essa perigosa expansão conceitual, o seu obstinado esforço teórico guarda o mérito de haver contribuído decisivamente para recuperar a positividade, a seriedade do jogo. Para além do racional e do irracional, da lucidez e da loucura, as funções lúdicas instauram o mito e a poesia. O jogo é, como afirmou Eugen Fink, ligando Heráclito ao pensamento de hoje, o símbolo do mundo.

O jogo do mundo e o jogo da verdade se implicam reciprocamente, tanto mais que o problema da verdade se coloca a partir de um movimento histórico, e é dentro desse movimento, condicionado pela sua dinâmica fundadora, que ele exibe diferentes faces. Para compreendê-las é necessário escalar os degraus de um equacionamento contraditório, onde a interpretação metafísica vai sendo progressivamente aberta pelas figuras do homem e da história. Isto significa uma mudança radical no quadro da tradição, na maneira de pensar do Ocidente. A estrutura tradicional da verdade era sustentada por um pacto de conformidade entre o juízo e o seu objeto, a coisa julgada, a realidade. A ordem interna que referendava este acordo excluía a contradição. Mesmo transposto o enclausuramento medieval, a reflexão transcendental de Kant insistia na adaequatio rei ad intellectum. Permanecia a oposição entre verdade e erro. A verdade continuava uma relação isomórfica tal qual; e por isso mesmo, degradava-se.

Como se estruturava essa verdade tradicional, fundada na lógica e na adequação? O relacionamento lógico é pré-requisito da adequação. E ele exige apenas a compatibilidade dos elementos da síntese judicativa. No exemplo “o círculo é quadrado” o que predomina é uma ordem de compatibilidade interna. Na adequação, necessário se torna que os elementos não se excluam e que, correspondendo à realidade, mantenham o compromisso instrumental e pragmático. A formulação tradicional, alternando entre um ou outro nível, renunciava à totalização. Talvez ignorando que um acordo deste tipo — tal qual — depende sempre das condições específicas do sujeito que julga e do objeto julgado.

Qualquer que seja a natureza da verdade e o seu lugar, ela mantém-se irreversivelmente ligada ao homem. Até a estruturação metafísica depende do homem; é ele quem realiza a verdade historicamente. O homem é passagem obrigatória na curva da verdade lógica de adequação para a verdade originária de revelação. Agora o revelador respeita, preserva a diferença do objeto que julga porque a noção de verdade pressupõe e exige a interpretação do homem.

Evidentemente a manifestação da verdade não é estática mas histórica. Ainda mais: o movimento de manifestar-se é a própria historicidade. E assim as criações globais — pensamento, arte, religiosidade— são instâncias de acionamento da manifestação: do homem e da realidade. São formas originárias de instalação da verdade originária. Tanto mais originária quanto mais desdobra-se objetivamente numa transgressão sintática. A linguagem enquanto verdade predicativa abre-se numa relação isomórfica sustentada pelo dualismo significante e significado, da mesma maneira que a linguagem enquanto verdade manifestativa destrói, porque transpõe, este sistema maniqueísta de oposições. E nessa situação limite a arte emerge como modo originário de manifestação da verdade do Ser. Está mais uma vez explicado porque a atitude existencial da poesia distancia-se da do discurso. O entretexto não se dá ao nível da isomorfia tal qual; atua como verdade da existência. Enquanto o discurso pressupõe mundo, história, existência, a poesia os cria. Mas cria dentro das dimensões do discurso. O poeta utiliza a língua, as regras da gramática, sem se deixar aprisionar por elas. Ele é tanto mais poeta quanto menos obediente se mostra as determinações formalizantes.

Assim como a questão da verdade coloca o problema do homem, este só se aprofunda no horizonte problemático da história. Não poderia ser de outra maneira: o homem existe dentro de modalidades fundamentais que são as épocas da história. A ilusão sistêmica ou estruturaloide, de feição predominantemente sincrônica, parece imaginar que, no seu relacionar-se com o mundo e as coisas, o homem pode prescindir da história. Ignora igualmente que a própria constituição do discurso depende de aberturas nitidamente epocais, e chegam a proclamar uma onticidade inevitavelmente hemiplégica. Já podemos entender porque o conhecimento ôntico, toda vez que se apresenta como um corte, é um saber regional, comprometendo aquele pressuposto segundo o qual o existir do homem implica em colocar suas relações dentro de uma estrutura referencial. E é a partir daí que a existência do homem se faz constitutiva da verdade. Isto não quer dizer que o homem seja a fonte formal da verdade. Não. Diz unicamente que as condições de possibilidade da verdade ancoram no espaço do homem. Neste instante o homem encontra na diáspora a sua metáfora natural. Ele é um mediador nato, realizando plenamente a dialética identidade e diferença. Podemos dizer que certo estruturalismo militante falta com a verdade na medida em que retira o homem da estrutura. A rigor é o homem quem se retira, porque transborda os acanhados limites territoriais da estrutura. O que acontece sem a menor periculosidade para ele, já que permanece maior do que o abismo. A própria dicotomia objetividade e subjetividade não esgota o homem; é apenas um pequeno abismo.

Se a verdade é historicamente tópica, como atua no interior do nosso tempo? O questionamento dessa indagação arranca e se apoia num princípio básico: a verdade de nossa existência e a capacidade histórica de tornar a verdade possível. Ao caracterizar a sua identidade e diferença, o homem se assume como revelador histórico da verdade. No decorrer dessa discussão radical, o ser-no-mundo aparece como fundamento ontológico da verdade e podemos compreender a positividade da não-verdade. A não-verdade deixa de ser a parte contrária da verdade, o erro, o falso, para se fazer componente constitutivo da verdade. Para além da concordância, do acordo, da conformidade, verdade e não-verdade se implicam reciprocamente. A não-verdade é a totalidade encoberta, e a constatação do erro pode ser levada a efeito quando a dialética se relaxa e o homem localiza-se em um dos polos. É nesse nível que se torna possível e fascinante a odisseia da reflexão. “Que nos restará para investigar — são palavras de Heidegger — se admitirmos que sabemos o que significa a concordância de uma enunciação com uma coisa?” Para esse tenso e infatigável empenho de restauração ontológica o que está sendo problematizado é, em última análise, a verdade do Ser. Não é sem razão que Martin Heidegger conclui o seu livro-chave Ser e tempo, dando um novo rumo à questão. Para ele a verdade originária se gera na abertura do homem. Essa abertura é historicamente elaborada na medida em que as épocas históricas trazem para o homem as condições de possibilidades de relacionamento consigo mesmo e com o seu contorno existencial. A existência humana está originariamente nos dois lados, no da verdade e no da não-verdade. E a verdade mais originária não se localiza na verdade. Aqui se ilumina ainda mais a famosa sentença heideggeriana: “a arte é pôr na obra a verdade”. Guimarães Rosa para dizer esse jogo bifronte e múltiplo, que é o jogo do próprio entretexto, instituiu uma terceira dimensão — “a terceira margem do rio”; aí onde a liberdade é possível.

Toda vez que sufocamos a liberdade, comprometemos a essência da verdade. A racionalidade repressiva do Ocidente fez da verdade uma meia verdade, unilateral e arbitrária; e como não existe meia verdade, recolhemos a inverdade. Está perfeitamente claro como, a cada momento, estamos falando do homem e suas criações mais plenas. E compreende-se porque a verdade é preocupação constante em toda reflexão que visa a recolocar o problema da literariedade. O intento semiológico, ao investigar o sentido das representações, consiste em pesquisar concretamente o que quer dizer num discurso, mediante, está claro, a articulação na faixa do sistema de signos. A preocupação ontológica investiga todo o movimento estruturante do sistema de signos; desce ao núcleo dinâmico da experiência poética, à criatividade, lá onde a ideologia impulsiona a verdade. Por isso a crítica é a verdade da ideologia — a crítica que não se confunda com um catálogo de utensílios, capaz de preservar aquela peculiaridade hermenêutica, segundo a qual conhecer é co-nascer. E saiba: somente se conhece nascendo com. Essa crítica ontológica ou poética não é apenas uma linguagem sobre — metalinguagem, como o querem Barthes e seus epígonos — mas uma linguagem com. A aliança criadora do com, ela a realiza em dois níveis. Ao se deixar levar para a própria fonte das possibilidades do entretexto e daí retirar forças para alçar-se ao estado de criação, e ao reconduzir todas as coisas à poesia, à sua fonte, trazendo para este nível o conjunto de implicações do texto, sejam as elaborações linguísticas, as oscilações psicológicas ou os movimentos sociais. A primeira dimensão desse empreendimento é determinante porque uma crítica que não é conatural, ou seja, não é da mesma natureza, será sempre uma meta — aqui sinônimo de passar por fora ou à margem — linguagem. Ao contrário da linguagem sobre, a linguagem com procurar ser, ela mesma, uma criação; mas uma criação peculiar, alimentada pela ideia de que não se fala sobre literatura de fora da literatura. No caso de Roland Barthes, faça-se justiça, a qualidade textual do exercício crítico é desmentido da crítica como exclusiva metalinguagem. E parodiando as palavras de Platão, no Livro VII da República, “se o nosso olho não fosse solar não poderia ver a luz do sol” — podemos acrescentar: uma crítica não criativa não pode ver a criação. A crítica literária consiste, portanto, em apreender o movimento livre da criação. Por isso a leitura hermenêutica ou poética confunde-se com a própria obra.

A conaturalidade da crítica deve abranger solidariamente as duas instâncias do com. Será tanto mais abrangente quanto mais projete a sua estrutura dialética. O que acontecerá sempre que desenvolva o seu caráter silético (syn + lego, etimologia que pode ser traduzida com + reunir). Silética é a linguagem que instaura mediações e promove a estruturação dos níveis descritos; o da elevação e o da recondução. Este segundo articula uma redução, não evidentemente no entendimento vulgar de diminuição mas no sentido fenomenológico de reconduzir. Reconduz a criação poética a seu nível, já que ela não se plenifica em todas as suas dimensões porque a luta com o não-ser poeta é constante e interminável. Daí emerge a função redutora do crítico, reconduzindo, fazendo-se o para-si da literatura. O crítico tem muito do filósofo, do pensador, do hermeneuta. No seu deixar ser silético verifica-se um enriquecimento das forças de decisão, de julgamento; julgamento que se alimenta das energias mobilizadas pela redução; syn e lego. Julgar é, portanto, uma decisão no nível da verdade. E a própria palavra crítica concentra todo esse universo, acentuando-se o seu caráter criador por ser, ela mesma, a expressão da verdade originária de revelação ou desvelamento (to alethea). No dinamismo do jogo da verdade a crítica é criação.

(Fundamento da investigação literária, 1974.)

 

JOSÉ GUILHERME MERQUIOR: A DESTREZA CRÍTICA

Agora que passou de moda atacar a José Guilherme Merquior, talvez se possa revisitá-lo, longe dos preconceitos ideológicos, ou de associações simplesmente apressadas. Para início de conversa, é bom lembrar que Merquior foi a mais fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista — irreverente, agudo, sábio. A reedição de suas obras certamente contribuirá para colocá-lo novamente em cena.

José Guilherme Merquior quase se desculpa por operar na frequência da história das ideias, festejada ontem, desvalorizada hoje. Ele sabe que a inflação e a vertigem da novidade têm razões que a própria razão desconhece. E que alternativas metodológicas pacientemente elaboradas podem ser, da noite para o dia, inexplicavelmente inabilitadas. Merquior procura contrapor, à trapaça da erosão produzida, o vigor da reflexão. Sendo um ensaísta da literatura e da arte, como se mostra nos vinte e cinco anos de militância selecionados no volume Crítica, é antes o pensador que evita a “literarização” — o termo é seu — do pensamento. A sua crítica dialógica ancora ao largo da imanência, e se absorve uma ou outra lição da intertextualidade, jamais se entrega à ansiedade da influência. Ele proporcionaliza, com a necessária astúcia crítica, as diferentes esferas da compreensão. Não simplifica, nem reduz. O seu olhar abrangente se protege da mera avaliação estetizante, e se distancia, em tempos tão objetivos, da canonização do nível empírico, nas marchas e contramarchas da ambição científica.

José Guilherme Merquior não poupa as artimanhas do saber acadêmico, na versão confessadamente institucional. E se empenha, com êxito, em permeabilizar a erudição, o deslumbramento cumulativo, com a ironia. A hipotensão cultural do erudito vê-se a todo instante reprogramada. O ataque à “antropologia de poltrona” tem tudo a ver com esse esforço de renascimento. A destreza rígida, e ao mesmo tempo exibicionista — Merquior diria narcisista, o que vem a ser quase a mesma coisa — do scholar, desce a sabedoria convenientemente erotizada. Acrescente-se que o nosso crítico está preocupado em se fazer entender, e tornar igualmente acessíveis linhas mestras do pensamento contemporâneo. Daí “evitar expressões técnicas”, nas quais surpreende, muito a contragosto, o jargão ocioso e predatório.

Em De Praga a Paris, ele poderia ter feito apenas a reconstituição historiográfica, ou genealógica, do estruturalismo, e de suas projeções pós-estruturalistas. José Guilherme Merquior vai mais adiante. Confronta as várias propostas estruturalistas, tendo o seu ex-professor Claude Lévi-Strauss à frente do cortejo, com as diversas inflexões desdobradas pelo pensamento, a partir da indecisa ou parcial diáspora metafísica. Do mesmo jeito que se opusera ao pessimismo da primeira Escola de Frankfurt, ele agora impugna a “triste estética da ausência” que, no lusco-fusco do segundo pós-guerra, Bataille, Blanchot, e depois Barthes, puseram em circulação. A essa tertúlia crispada, não poderiam faltar Gide, Bachelard, Sartre, Camus, Genet, e tantos outros. Os representantes da chamada “esquerda heideggeriana francesa” (por Luc Ferry e Alain Renaut, em O pensamento 68: ensaio sobre o anti-humanismo contemporâneo), Jacques Derrida, Jean François Lyotard, Gilles Deleuze, Michel Foucault, foram recebidos com evidentes sinais de constrangimento, e talvez de animosidade. De Jacques Lacan nem há o que falar.

José Guilherme Merquior jamais perdoa os dissidentes da razão, e nem admite que se toque ou se ponha em dúvida o espólio reflexivo da modernidade. A sua metralhadora giratória não poupa as inflexões insólitas da racionalidade, e menos ainda as irrupções da desrazão. Os que se arvoram a navegar contra a correnteza da razão hegemônica são logo estigmatizados como militantes da contracultura, decadentistas incorrigíveis, todos alistados na frente comum antimodernista. Nem a desconstrução, à maneira de Derrida (e do pós-estruturalismo), nem a reconstrução, ao modo de Habermas. Contra o desconstrucionismo, Merquior escreveu o seu mais enérgico libelo, que é certamente o livro Michel Foucault ou o Niilismo da cátedra. Desde Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin, quando o autor deixara escapar certo sotaque heideggeriano, que o seu empenho de recuperação tem sido infatigável. A referência ao ser, à noite metafísica, à essência da técnica, provenientes da Floresta Negra, bem como a ideia da ausência, do autor morto, dos significados brancos, recolhida no asfalto de Paris, passaram a desagradá-lo enormemente. Mesmo o conceito de dissenso negociado, ou de diferendo, trazido à mesa das negociações pelo professor Lyotard, ou ainda a via do consenso comunicativo, segundo as indicações de Jürgen Habermas, pareciam provocações inaceitáveis de pensadores que não sabiam o que fazer com a herança metafísica.

Essas proclamações chegam aos seus ouvidos como palavras irreflexas, como pequenos caprichos intelectuais, destituídos de horizontes. Nem mesmo uma das mais chocantes sentenças da época conseguiu sensibilizá-lo: “A morte do homem”. Não há nisto qualquer tipo de sectarismo, ou inflexibilidade. Merquior identifica no estruturalismo “um estilo de pensamento no lado humanístico do conhecimento”. Chega até a manter o crédito de confiança no “binarismo inveterado” de Lévi-Strauss, inclinando-se por ver nele o preciso recurso metodológico de que se serve a análise estrutural. Mais do que isto, não concede.

No seu livro O liberalismo, antigo e moderno, José Guilherme Merquior leva a efeito a reconstituição crítica do processo liberal. Parte da revalorização, isenta e livre, de formulações de José Ortega y Gasset, em um livro esquecido e não raro difamado: A rebelião das massas, de 1929, que reuniu ensaios dos anos anteriores. Para Merquior, “Ortega restitui o sentido moral da palavra a seu sentido político”. Isto significa que o desempenho político nunca deve descartar-se do compromisso ético. Em vez de uma simples mistura, trata-se de implantar um sistema de permutas compartilhadas. Mas o princípio relativista, que amparou esperanças tão generosas quanto ingênuas, agravou consideravelmente esse quadro. Desde o liberal Alain, “o parlamentarismo corrupto” faz pendant com o presidencialismo permissivo. Até aqui e ali, não nos foi possível desarmar essa lógica perversa. O que só será viável mediante a assinatura de contratos rescindidos, ou jamais assinados: o contrato social, revisto e atualizado; o contrato natural, já lembrado por Michel Serres, é capaz de conferir sentido à ideia imobilizada do “desenvolvimento sustentável”; e principalmente o contrato moral, em condições de interromper a marcha acelerada da desertificação ética. Não chegaremos lá pela estrada do pensamento único, nem do paleoliberalismo concentracionário, evasista e satisfeito, de alguns dos nossos mais condecorados dinossauros.

Em compensação, seria inexplicável ignorar-se o balanço favorável da London School of Economics, de Isaiah Berlin ou Ernest Gellner, também Aron e Dahrendorf, Rawls ou Bobbio, nessa jornada complexa. Provavelmente por isso Merquior conclua pela variedade do liberalismo, e nós poderíamos acrescentar que cada qual tem o liberalismo que merece — desde o que inclua o direito à imagem nos meios de comunicação, até aquele outro que se conforma com a inglória liberdade de morrer de fome.

“Em sua idade de ouro — nos lembra oportunamente José Guilherme Merquior — o século XIX, o movimento liberal atuava em dois níveis, o nível do pensamento e o nível da sociedade.” Hoje, ao que tudo indica, as duas frentes exibem evidentes sinais de esgotamento. O déficit legal, normativo, aumenta o coeficiente de adversidade. Enquanto isso, a aspiração liberal só nos unirá, na medida em que reunir democracia e justiça social. Merquior jamais perdeu de vista esta perspectiva. Intelectual que se distinguiu pelo traço cosmopolita e pela condição de brasileiro, logo nos indicou o seu lugar vincado: “Liberal neoiluminista”. Não devemos deixar que se interrompa o nosso colóquio com ele.

(O Liberal, Belém, PA, 9-3-1996.)