Antes de dar-vos as boas vindas no estilo, em nome dos vossos companheiros da Academia Brasileira de Letras, quero convidar-vos, Sra. Dinah Silveira de Queiroz, para um passeio num veículo, que muito bem conheceis, pois vossa infância foi povoada pelas maravilhosas criações da fantasia de Herbert George Wells, o H. G. Wells, cujas histórias vosso pai, o erudito Alarico Silveira, vos lia à sombra das árvores na sua fazenda de café de São José do Rio Pardo. Esse veículo, criado em 1895, foi por seu imaginoso inventor chamado Time Machine e passou para as traduções de Portugal e do Brasil como “A máquina de explorar o tempo”. Permitia tal máquina, a seus tripulantes, viajar tanto em direção ao passado como em direção ao futuro. Não disse Wells quantas pessoas poderia ele conduzir a um só tempo, mas estou em que poderia comportar, como um gigantesco Jumbo, todos os que estão nesta sala. Convido-vos, Sra. Dinah Silveira de Queiroz, e a todos vós, senhoras e senhores, a tomar os vossos lugares, a fim de retrocedermos no tempo até o ano de 1880. Quando aí aterrissarmos, estaremos habilitados a compreender melhor a excepcional significação do acontecimento que nos reúne nesta noite de festa.
Concentrai vossos pensamentos, apertai vossos imaginários cintos de segurança, procurai abstrair-vos do presente e vereis como a viagem é ao mesmo tempo breve e segura, sem atritos ou solavancos. Pronto! Já estamos em 1880. Que encontramos ao nosso redor? Um Brasil diferente, uma sociedade ainda manchada pela escravidão, um Rio de Janeiro geralmente mencionado como Corte do Império. Nele, as mulheres brasileiras aprendem a bordar e a coser, mas só as da elite privilegiada vão para os bons colégios de onde saem sabendo o francês necessário para ouvir e aplaudir as criações de Sarah Bernhardt. E, ainda que o queiram, não podem passar disso. Nesse ano, uma jovem brasileira, chamada Maria Augusta Generosa Estrela, que em vão tentara ser admitida numa escola de Medicina do Rio de Janeiro, termina seu curso médico em Filadélfia, para vergonha dos nossos lentes, que aqui lhe haviam recusado a matrícula. Pioneira, com o seu retrato estampado em O Novo Mundo e na capa da revista de caricaturas O Mequetrefe, de 6 de março de 1880, essa moça brasileira, com seu gesto decidido, derrubou a muralha que impedia o acesso de mulheres às nossas escolas superiores.
Em meados de 1881, o benemérito brasileiro F. J. Bethencourt da Silva cria no Imperial Liceu de Artes e Ofícios, do Rio de Janeiro, o primeiro curso destinado a moças. Até então, essa Instituição ao mesmo tempo alfabetizadora e profissionalizante só tinha alunos do sexo masculino. Tal iniciativa recebeu os mais encorajadores aplausos da imprensa e das figuras de destaque do meio intelectual. Machado de Assis escreveu um artigo, com o título de Cherchez la femme, publicado em A Estação, e ainda um soneto, para a polianteia consagrada à inauguração daquelas aulas. Luis Guimarães Júnior escreveu no folhetim da Gazeta de Notícias o artigo intitulado “A nova legião”, que poderia ser subscrito por qualquer líder feminista dos nossos dias. Foram numerosas e entusiásticas as manifestações de apoio ao Imperial Liceu de Artes e Ofícios. Registro apenas essas, por terem partido de dois ilustres fundadores desta Casa.
Mas nem tudo eram flores e aplausos. Quando as primeiras estudantes começaram a ser matriculadas nas nossas escolas superiores, foram vítimas das zombarias masculinas, inclusive na comédia As Doutoras, que em 1889, meses antes da proclamação da República, muito fazia rir às mulheres tradicionalistas, escandalizadas com as sabichonas que queriam ser médicas e advogadas... – Comédia de autoria de França Júnior, talento cômico de primeira água e, por sinal, Patrono da Cadeira 12 desta Academia.
Autora, que sois, de uma biografia da Princesa Isabel, deveis saber que a Monarquia não caiu em 1889 apenas por causa da questão religiosa, da questão militar e da libertação dos escravos, em 1888. Caiu também porque D. Pedro II não tinha um filho varão apto a substituí-lo no trono, mas uma princesa de coração sensível e nobres sentimentos, mais criticada por suas virtudes que por seus defeitos. Contudo, nessa sociedade modelada por homens, para o gozo de homens, já começara a se definir uma tradição literária que colocava em singular relevo alguns talentos femininos.
MACHADO DE ASSIS E AS ESCRITORAS DE SEU TEMPO
Nos idos da década de 1860, quando escrevia no Diário do Rio de Janeiro, o jovem jornalista Joaquim Maria Machado de Assis, que trinta e poucos anos depois viria a ser o nosso primeiro Presidente, não se cansava de louvar o talento dramático de Maria Ribeiro, autora de peças teatrais abolicionistas, como Gabriela e Cancros Sociais. Referiu-se também na mesma época, a uma brasileira ilustre, que morreria em Ruão, na França, em 1885, aos 76 anos de idade. Essa figura excepcional era Dionísia Gonçalves Pinto, que adotara o farfalhante pseudônimo de Nisia Floresta Brasileira Augusta. Embora escondesse seu verdadeiro nome, ao adotar um pseudônimo feminino, Nísia rompia com a prática da geração anterior, que levava escritoras de talento a adotar disfarces masculinos, se é que queriam ser lidas. Isso acontecia mesmo nos países mais civilizados, como a França, onde Aurore Dupin se converteu em George Sand, e na Inglaterra, onde Mary Ann Evans alcançou a celebridade como George Eliot. O mesmo fizeram as três irmãs Bronte – Anne, Charlotte e Emily – que publicaram seus romances sob nomes masculinos, conservando nos pseudônimos apenas as suas iniciais: Acton Bell, Curre Bell e Ellis Bell. Pioneira dos direitos femininos, da liberdade dos negros e da sobrevivência dos índios, Nísia era um talento tão robusto e tão conflitante com o meio que, nascida no Rio Grande do Norte e tendo dirigido colégios de moças no Recife e, em seguida, na Corte do Império, acabou por trocar o Brasil pela Europa, vivendo na França, na Itália e na Alemanha o último terço de sua vida. E foi na Europa que publicou uma parte de sua obra, em francês e em italiano. Foi em francês que saiu, em Paris, o livro escrito sobre os três anos que passou na Itália e ao qual se referiu Machado de Assis, na crônica publicada a 10 de julho de 1864. Era um registro breve, mas cheio de simpatia. Escreveu o cronista apenas três períodos sobre o aparecimento de tal livro, o último dos quais era este:
Três anos na Itália devem ser um verdadeiro sonho de poeta. Até que ponto a nossa patrícia satisfaz os desejos dos que a lerem? Não sei, porque ainda não li a obra. Mas, a julgar pela menção benévola da imprensa, devo acreditar que o livro merece a atenção de todos quantos prezam as letras e sonham com a Itália.
Contudo, o nome dessa mulher excepcional não foi lembrado para patrocinar uma das cadeiras desta Academia. Patronos bem mais obscuros seriam lembrados e aceitos. Mas Dionísia, ou Nísia, tinha contra si a condição de mulher.
AS GRANDES POETISAS DO FIM DO SÉCULO
Movimentemos o nosso veículo para a última década do século passado. E descobriremos que, pouco antes da fundação da Casa em que hoje sois recebida, Machado de Assis, nas crônicas de A Semana, publicadas dominicalmente na Gazeta de Notícias, fazia o louvor de novos talentos femininos. A 4 de novembro de 1894, era nestes termos expressivos que aludia à fluminense Julia Cortines:
Esta poetisa de temperamento e de verdade disse-me coisas pensadas e sentidas, em uma língua inteiramente pessoal e forte. Que poetisa é esta? Lúcio de Mendonça é que apresenta o livro em um prefácio necessário, não só para dar-nos mais uma página vibrante de simpatia, mas ainda para convidar essa multidão de distraídos a deter-se um pouco e ler. Lede o livro; há nele uma vocação e uma alma, e não é sem razão que Julia Cortines traduz, à página 94, um canto de Leopardi. A dor é velha; o talento é que a faz nova, e aqui a achareis novíssima. Julia Cortines vem sentar-se ao pé de Zalina Rolim, outra poetisa de verdade, que sabe rimar os seus sentimentos com arte fina, delicada e pura. O Coração, livro desta outra moça, é terno, a espaços triste, mas é menos amargo que o daquela; não tem os mesmos desesperos...
A 18 de janeiro de 1896, voltava Machado de Assis a louvar as mesmas poetisas e, ainda, uma terceira, não menos talentosa e estimável. Antes disso, elogiara uma iniciativa de duas ilustres damas paulistas, cujos nomes infelizmente não citou. Em suas palavras:
Duas paulistas ilustres tratam de abrir carreira às moças pobres para que disputem aos homens alguns misteres, até agora exclusivos deles. Eis aí outro cuidado prático. Estou que verão a flor e o fruto da árvore que plantarem. Quanto à vida espiritual das mulheres, basta citar as duas moças poetisas que ultimamente se revelaram, uma das quais, D. Zalina Rolim, acaba de perder o pai. A outra, D. Francisca Júlia da Silva, tem a poesia doce e por vezes triste como a desta rival que cá temos e se chama Júlia Cortines; todas três publicaram há um ano os seus livros.
A EXCLUSÃO DAS MULHERES NA FUNDAÇÃO DA ACADEMIA
Foi justamente no fim desse ano de 1896 que se iniciaram as reuniões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras. Deve ser reconfortante, para vós, Sra. Dinah Silveira de Queiroz, saber que aqui estais ocupando a Cadeira que, na fundação desta Casa, coube a um partidário da inclusão das mulheres no rol dos acadêmicos. Citarei, a este propósito, um testemunho valioso, que é o de Lúcio de Mendonça, reconhecido por Machado de Assis, bem como por todos os seus contemporâneos, como o nosso verdadeiro Fundador. Três dias antes da primeira reunião preparatória, realizada na modesta e acanhada sala de redação da Revista Brasileira, dirigida por José Veríssimo, escrevia Lúcio de Mendonça em O Estado de S. Paulo um artigo em que deixava bem patente a intenção de admitir, neste Grêmio, os grandes talentos femininos das nossas Letras.
Esse artigo, que foi a terceira de suas “Cartas literárias” para a grande folha paulista, terminava com a enumeração dos 40 nomes que lhe pareciam dignos de figurar entre os fundadores da nova Instituição. Dos 40 nomes por ele citados, 24 se tornaram fundadores e 3 nela ingressaram posteriormente. E entre esses nomes estava o de uma grande escritora brasileira, reconhecida como a maior do seu tempo.
Fazendo cautelosa ressalva, escreveu o ideador da Academia Brasileira de Letras:
Sem me responsabilizar pela exatidão absoluta, pois uma ou outra modificação pode ainda ocorrer afinal, penso, entretanto, que posso comunicar-lhes, como interessante primícia, a seguinte lista, por ordem alfabética, de que sairão os 40 membros efetivos da Academia Brasileira de Letras do Rio de Janeiro: Adolfo Caminha, Afonso Celso Júnior, Alberto de Oliveira, Alberto Silva, Alcindo Guanabara, Araripe Júnior, Artur Azevedo, B. Lopes, Capistrano de Abreu, Carlos de Laet, Coelho Neto, Eduardo Salamonde, Escragnolle Dória, Escragnolle Taunay, Eunápio Deiró, Ferreira de Araújo, Graça Aranha, Guimarães Passos, Inglês de Sousa, Joaquim Nabuco, José Veríssimo, Júlia Lopes de Almeida, Luís Delfino, Luís Murat, Machado de Assis, Medeiros e Albuquerque, Olavo Bilac, Osório Duque-Estrada, Pedro Rabelo, Ramiz Galvão, Rodrigo Octavio, Rui Barbosa, Silva Ramos, Teixeira de Melo, Urbano Duarte, Valentim Magalhães, Virgílio Várzea e Xavier da Silveira.
A lista publicada por Lúcio de Mendonça, refletindo naturalmente suas inclinações ou simpatias pessoais, nem por isso deixa de ser muito significativa. Pois que nela o nome de Júlia Lopes de Almeida, a romancista de A Falência e de A Família Medeiros, suplantava não apenas o de seu marido, Filinto de Almeida, mas o de figuras como Aluízio Azevedo, José do Patrocínio, Sílvio Romero, Domício da Gama, Luís Guimarães Júnior, Eduardo Prado, Clóvis Beviláqua, Oliveira Lima, Raimundo Correia e outros, inclusive os irmãos Mendonça, Lúcio e Salvador, que o articulista não havia citado.
A intenção de Lúcio era a de dar à Academia um alcance nacional, através da escolha de sócios correspondentes, não no exterior, como veio a ser feito, mas nos diversos estados brasileiros. Seu artigo, publicado a 12 de dezembro de 1896, dizia, a tal respeito: “Dentre os vinte correspondentes, penso não andar muito arredado da verdade, se, desde já, revelar para São Paulo os nomes de Garcia Redondo, Francisca Júlia e Brasílio Machado.” O primeiro, amigo íntimo de Lúcio, viria a figurar entre os fundadores.
AS TRÊS JÚLIAS
Vencido duas vezes, uma quanto à inclusão de Júlia Lopes de Almeida entre os fundadores, a segunda quanto à da notável poetisa dos Mármores e das Esfinges entre os correspondentes, Lúcio de Mendonça nem por isso se deu por inteiramente convencido do acerto dos que o derrotaram. Se quereis uma prova disso, lede o que ele escreveu, a 6 de março de 1897, no jornal República, dirigido pelo Acadêmico Alcindo Guanabara. Com o título de “As três Júlias”, esse artigo dizia, de início:
Curiosa coincidência é que tenham igual nome nome de batismo ou prenome – as três mais notáveis de nossas escritoras de hoje – Júlia Lopes, Júlia Cortines e Francisca Júlia. Digo com a restrição “de hoje”, porque não me posso esquecer do nome de Narcisa Amália; mas a cantora das Nebulosas há mais de vinte anos que se exilou das Letras, encerrando-se num mutismo incompreensível depois dos triunfos alcançados. Sei que convolou da Poesia para o Magistério; mas não era razão para quebrar a lira. Aí estão como prova de compatibilidade, Adelina Lopes Vieira e Zalina Rolim, duas professoras que não deixaram de ser poetisas.
Ao fazer o elogio das três Júlias, era para a prosadora que Lúcio reservava seus maiores louvores:
Júlia Lopes tem produzido páginas que mais de uma vez têm sido comparadas às do mais vigoroso conteur da França, Guy de Maupassant, e a comparação, que é a mais expressiva e eloquente para a demonstração do meu conceito, é justíssima: dois, principalmente, dos contos da escritora brasileira, lembram como irmãos os do autor de Boule de Suif – a admirável “Caolha”, que foi para mim a verdadeira revelação deste poderoso talento e, por último, o conto do concurso publicado na Gazeta de Notícias com o título de “Os Porcos”, uma maravilha de sobriedade, de vigor, de colorido, de exatidão de traço.
A intenção de Lúcio de Mendonça parece ter sido a de demonstrar que Júlia Lopes de Almeida fora a grande injustiçada, por ocasião da constituição da Academia Brasileira de Letras, filha rebelde, que logo escapara ao controle paterno. Depois de elogiar os versos saídos das liras de ouro das outras duas Júlias, escrevia ele:
Para concluir, uma nota de tristeza. Na fundação da Academia de Letras, era ideia de alguns de nós, como Valentim Magalhães e Filinto de Almeida, admitirmos a gente do outro sexo; mas a ideia caiu, vivamente combatida por outros, seus irredutíveis inimigos. Com tal exclusão, ficamos inibidos de oferecer a espíritos tão finamente literários como o das três Júlias o cenário em que poderiam brilhar a toda luz.
A PRIMEIRA CANDIDATURA FEMININA
As excluídas não protestaram, por excessiva modéstia ou por desdenhosa altivez. E mais de trinta anos decorreram até que uma mulher de letras, esposa de um acadêmico, resolveu reivindicar um lugar ao pé do ilustre marido, o eminente jurista Clóvis Beviláqua. Embora autora de vários livros, um deles muito elogiado por Sílvio Romero num dos estudos de Provocações e Debates, D. Amélia de Freitas Beviláqua não teve sua candidatura aceita à vaga de Alfredo Pujol.
Na sessão de 20 de maio de 1930, o Acadêmico Aloísio de Castro, então na Presidência da Casa, disse que, sendo a primeira vez que se apresentava uma candidatura feminina, e como não se julgasse autorizado a interpretar o artigo 2.º dos estatutos, solicitava ao plenário que se manifestasse a respeito, a fim de que pudesse ter um critério seguro, para aceitar ou rejeitar a inscrição de D. Amélia. Sete acadêmicos tomaram parte no debate que se seguiu: Constâncio Alves, Augusto de Lima, Afrânio Peixoto, Roquette-Pinto, Silva Ramos, Alberto de Oliveira e Coelho Neto. Desses, só Augusto de Lima se manifestou a favor. Com ele votaram Adelmar Tavares, Luís Carlos, Afonso Celso, Fernando Magalhães, João Ribeiro e Laudelino Freire. Além deles, três outros acadêmicos eram sabidamente a favor da aceitação de candidaturas femininas: Magalhães de Azeredo, que assim se manifestara por ocasião da morte de Francisca Júlia, dez anos antes; Félix Pacheco, que faria nesse sentido uma declaração pública; e, naturalmente, Clóvis Beviláqua, esposo da aspirante a candidata.
Representavam eles pouco mais da quarta parte da Academia, então com seu quadro efetivo reduzido a 39 acadêmicos. Votaram contra: Aloísio de Castro, Gustavo Barroso, Olegário Mariano, Afrânio Peixoto, Alberto de Oliveira, Coelho Neto, Constâncio Alves, Dantas Barreto, Goulart de Andrade, Humberto de Campos, Luís Guimarães Filho, Ramiz Galvão, Roquette-Pinto e Silva Ramos, no total de quatorze. Para tal decisão, preponderaram os depoimentos de dois dos fundadores: Alberto de Oliveira e Silva Ramos, que disseram ter sido o assunto debatido por ocasião da constituição da Academia, decidindo a maioria que as mulheres não seriam nela admitidas. Nosso Confrade Josué Montello, que, como Machado de Assis, tem grande apreço pelas anedotas, transcreveu o pitoresco depoimento de José Júlio da Silva Ramos em seu Anedotário Geral da Academia Brasileira:
Silva Ramos, membro da primeira Diretoria da Corporação, traz à controvérsia, na sua fala teimosamente portuguesa de brasileiro educado em Coimbra, um depoimento valioso: / – Eu posso afirmar que, quando votamos os estatutos e escrevemos a palavra “brasileiros”, referimo-nos unicamente a brasileiros “machos”! / E, entre o riso do plenário, encerrou-se a discussão.
AS DECLARAÇÕES DE ROQUETTE-PINTO E FÉLIX PACHECO
Depois disso, houve, entretanto, algumas manifestações de inconformismo, expressas em “declarações de voto”. O próprio Roquette-Pinto buscou justificar sua atitude como um ato de respeito à vontade dos fundadores da Academia, entre os quais citou Lúcio de Mendonça, por ignorar que este fora vencido, em seus nobres propósitos, pela maioria de seus companheiros. Mas dizia: “Estou convencido de que a Academia só poderá lucrar admitindo no seu Grêmio as senhoras que se dedicam às Letras e tenham alcançado, pelo talento e pela cultura, posição eminente entre os intelectuais do País. As minhas ideias, a respeito das justas aspirações femininas, são conhecidas.” E dizia ser preciso alterar – e não apenas nesse ponto – os estatutos da Academia, “se ela não quiser envelhecer mais depressa do que todos desejam”.
Félix Pacheco, na sessão de 12 de junho, leu também uma declaração, dizendo não ter estado presente à sessão de 29 de maio. E afirmava, a seguir: “Estivera presente, o meu voto fora favorável ao ingresso das mulheres. Entendo que toda restrição nesse sentido é iliberal e ilógica.” No fim de seu arrazoado, afirmou estar certo de que erraria se procurasse de qualquer forma impedir que viesse a fazer parte do nosso Grêmio escritoras e poetisas da estirpe de Maria Eugênia (Celso), Amélia de Freitas (Beviláqua), Albertina Berta, Ana Amélia, Gilka da Costa (Machado) ou Rosalina Coelho Lisboa, para não citar senão alguns nomes entre os muitos que vão por aí fulgurando.
E acrescentou:
Por que motivo havemos de seguir tão de perto aos fundadores no desacerto inicial que praticaram? Se o mal é de nascença, razão maior de o corrigirmos! Não é triste que, na primeira lista de quarenta, deixassem de figurar Júlia Lopes e Francisca Júlia? Para que ampliarmos, eternizarmos essa tristeza, insistindo na negativa?
Mas a isso contrapôs Constâncio Alves os argumentos da corrente vitoriosa. Não só Júlia Lopes de Almeida fora excluída. Proposto, para uma Cadeira de correspondente, o nome da eminente filóloga D. Carolina Michaelis de Vasconcellos, alemã de nascimento e portuguesa pelo casamento, fora a sua candidatura igualmente rejeitada.
A PROPOSTA DE LAUDELINO FREIRE
Na sessão de 24 de julho de 1930, Laudelino Freire pediu que a Academia reconsiderasse a decisão de 29 de maio, juntando a seu requerimento dois pareceres jurídicos, um de autoria de Spencer Vampré, professor da Faculdade de Direito de São Paulo, e outro do Acadêmico Clóvis Beviláqua, ambos assegurando que a palavra “brasileiros”, nos estatutos da Academia, também incluía as mulheres, em vez de excluí-las. Contestando a validade da decisão tomada a 29 de maio, o eminente autor do Código Civil Brasileiro demonstrou que a Constituição de 1891 – prestes a ser rasgada pela Revolução de outubro de 1930 – ao declarar no artigo 69, inciso primeiro “São cidadãos brasileiros os nascidos no Brasil”, incluíra entre os que tinham tal qualidade também as mulheres. E, com toda a razão, disse que a interpretação em contrário, dada aos estatutos da Academia, era repelida pelos preceitos elementares da hermenêutica e pela mentalidade contemporânea, que não considera a inteligência da mulher, no poder criador e no brilho, inferior à do homem, e lhe abre espaço a todas as nobres conquistas do espírito, com alto proveito para a civilização.
Mas nessa mesma sessão voltou à carga o acadêmico Constâncio Alves, talvez o mais encarniçado adversário das candidaturas femininas. Formado, não em Direito, mas em Medicina, na Bahia, ele era surdo a todos os argumentos de ordem jurídica e iria assinar o atestado de óbito da iniciativa, não direi generosa, mas justa, de Laudelino Freire. Já na sessão de 29 de maio, fizera ele veemente pronunciamento. Como exemplo da mentalidade predominante, pedimos à vossa paciência vênia para citar um pequeno trecho:
A restrição que os estatutos estabelecem para a escolha dos membros desta Academia maravilha, segundo dizem, a muitas pessoas, principalmente aos que comparam a marcha vertiginosa do feminismo e a nossa imobilidade de frades de pedra. Não nos atemorize o sobrecenho com que nos olha o modernismo. Não nos leve a mudar a censura dos que veem em nós a singularidade de um penhasco teimoso, resistindo à fluência vivaz da vida corrente. Não somos exceção escandalosa. Não estamos sozinhos, mas na boa companhia de outros rochedos pertinazes. A Academia Francesa, por exemplo.
Na verdade, na França, as mulheres já haviam conquistado certo grau de igualdade com os homens – mas somente perante a guilhotina. As cabeças ensanguentadas de Maria Antonieta e Madame Roland foram aparadas nas mesmas cestas que receberam as de seus maridos decapitados. Mas as outras igualdades muito teriam que esperar...
AS MULHERES NA ACADEMIA GONCOURT
Outros exemplos foram aduzidos pelo extremado machismo de Constâncio Alves. E o principal, dentre eles, era o que se referia à Academia Goncourt. Declarou ele:
Edmond de Goncourt criou sua Academia e não queria que para ela entrassem mulheres. Não consta dos estatutos essa exclusão mas, apesar disso, os da Academia Goncourt acatam a vontade do fundador e, para não a transgredirem, fecharam a porta a Colette, escritora de primeira ordem.
Gabrielle Sidonie Colette, ou simplesmente Colette, cujo valor o próprio Constâncio reconhecia, mereceria não apenas uma Cadeira na Academia Goncourt, mas na própria Academia Francesa, que era então, como a nossa, um penhasco teimoso – e um penhasco de quase três séculos.
Entretanto, Constâncio incidira num erro e logo fora contestado: a poetisa e prosadora Judith Gautier – cujos poemas do Livro de Jade, publicados aos 17 anos sob o pseudônimo de Judith Walter, Machado de Assis traduzira, em parte, na “Lira Chinesa” das Falenas – ao morrer, no ano de 1917, era um dos 10 membros da Academia Goncourt. Advertido por um de seus colegas, voltou Constâncio ao assunto na sessão de 21 de agosto de l930. E alegou, então, que a eleição de Judith Gautier fora o resultado de um equívoco: os que a elegeram não sabiam que Edmond de Goncourt queria que só homens pertencessem à tal Academia. E acrescentou:
Quando souberam que haviam desobedecido involuntariamente a vontade do Fundador, arrependidos do equívoco, resolveram tomá-la em toda a consideração e demonstraram a firmeza do seu propósito não hesitando em infligir um revés à escritora notável que é Colette. Grande é a força do precedente, e o de Judith Gautier podia favorecer à pretensão de Colette, que ele justificava. Mas a Academia Goncourt reconheceu que, mais forte que o precedente, era a tradição, a vontade do Fundador: e resgatou o seu engano de modo impressionante: a derrota de Colette é a corrigenda da eleição de Judith Gautier.
Ninguém então lembrou a Constâncio Alves que uma injustiça não resgata um erro, nem que o caso da nossa Academia era bem diverso, pois a tradição aqui estabelecida contrariava a vontade de nosso Fundador, Lúcio de Mendonça, publicamente expressa por mais de uma vez. Se Constâncio Alves, desaparecido do nosso convívio em 1933, houvesse vivido mais doze anos, teria visto esse seu frágil argumento esboroar-se por inteiro, pois que, em 1945 – o mesmo ano em que as mulheres francesas adquiriram o direito de voto e ingressaram na vida política –, a Academia Goncourt, reconhecendo, envergonhada, a enormidade de tal injustiça, acabou finalmente por eleger Colette. Mais ainda: por vezes, os outros nove membros dessa Instituição Literária se reuniram em seu apartamento, porque ela, envelhecida e enferma, já não podia afastar-se de seus aposentos. Colette não ia à Academia Goncourt. Essa Academia é que ia a ela, ao seu apartamento do Palais Royal – o mesmo em que vós, senhora acadêmica, no ano de 1952, fostes comovidamente beijar-lhe a mão, já trêmula e enrugada –, a mão que escrevera as páginas admiráveis de Claudine e de La Naissance du Jour. Ainda tenho presente na memória o dia em que, no salão de vosso hotel, na Avenue Montaigne, descrevíeis a alguns amigos brasileiros, entre os quais eu, a emoção que vos causara a visita àquela velhinha de 79 anos, em que ainda não se apagara a chama do espírito e que fora uma das vossas grandes admirações juvenis.
A ATITUDE DE JOÃO RIBEIRO
No Jornal do Brasil, de 5 de novembro de 1930, João Ribeiro comentou a atitude da Academia Brasileira de Letras de um ponto de vista inteiramente favorável às candidaturas femininas. O eminente escritor escreveu nesse magistral artigo:
A meu ver pessoal, a Academia cometeu o erro de recusar preliminarmente a admissão de escritoras, por ilustres que fossem, ao nosso primeiro Grêmio de Letras. Deixemos de parte o abusivo e insólito argumento de que os estatutos da Academia falam de membros brasileiros e que este adjetivo não envolve as mulheres, e antes as exclui. É evidente o sofisma; falando de brasileiros, os estatutos não se referem ao sexo, mas à naturalidade. O adjetivo aí figura por oposição a estrangeiro. Argumento melhor, embora frágil, foi o da tradição. O Cenáculo, em verdade desde a sua fundação, não quis escolher nenhuma mulher.
Mas dizia João Ribeiro que, dos fundadores ainda vivos, alguns haviam votado a favor das mulheres, como Afonso Celso e Medeiros e Albuquerque, além de ser conhecida a opinião favorável de Clóvis Beviláqua. Em seguida, perguntava: “A que fica reduzida a tradição?” Ainda nesse artigo, dizia mestre João Ribeiro: “Vários publicistas e escritores, igualmente, J. Cavalcanti, Odylo Costa, Spencer Vampré, Rui Caracas, Pinheiro de Vasconcelos, Heitor Santos, J. H. de Sá Leitão, Carlos Xavier e outros, protestaram contra o anacronismo acadêmico.” Anacronismo que, com o passar do tempo e o surgimento de novos e mais numerosos valores literários femininos, foi se tornando cada vez mais ostensivo, senão mesmo escandaloso.
PRÊMIOS ÀS LETRAS FEMININAS
O penhasco a que se referira Constâncio Alves não tinha a solidez nem a teimosia que o velho cronista do Jornal do Commercio lhe atribuíra. Começara a ser aluído antes mesmo de 1930, quando, incorrendo em singular contradição, a Academia, ao mesmo tempo em que excluía as mulheres de seus quadros, começara – e ainda bem que assim procedera – a atribuir prêmios literários a escritoras, não em concursos a elas exclusivamente destinados, mas em pé de igualdade com os concorrentes masculinos. Em 1920, seu prêmio de poesia fora dado a Rosalina Coelho Lisboa, pelo livro Rito Pagão, enquanto que as menções honrosas cabiam a Gilka Machado, pelo livro Poesias, e a Prado Kelly, pelo livro A Alma das Coisas. E, em 1929, a Academia preferia premiar Carolina Nabuco, autora de A Vida de Joaquim Nabuco, em vez de Basílio de Magalhães, autor de um estudo sobre o nosso primeiro grande historiador, Francisco Adolfo de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro), Patrono de nossa Cadeira 39. Depois, viria a ser sucessivamente conferido a ilustres escritoras brasileiras o Prêmio Machado de Assis, com que, entre outras, foram laureadas Cecília Meireles, Rachel de Queiroz, Carolina Nabuco, Gilka Machado e vós mesma, Sra. Dinah Silveira de Queiroz, no ano da publicação de A Muralha. A mulher brasileira se impunha também em outros campos. Depois da Revolução de 1930 adquirira os direitos políticos, podendo votar e ser votada. Tinham surgido, em 1934, as primeiras deputadas federais, nas pessoas de Berta Lutz e de Carlota Pereira de Queiroz. Contudo, foi essa uma experiência transitória, interrompida pela ditadura que se estendeu de fins de 1937 a fins de 1945.
AS MULHERES NO MUNDO DE HOJE
Depois da Segunda Grande Guerra, as conquistas femininas se aceleraram, em vários continentes. Coisas com que ninguém antes sonhava começaram a acontecer. Em vez de homens providenciais, começaram a surgir as primeiras mulheres providenciais: Golda Meir, governando o Estado de Israel em suas horas mais críticas; Indira Gandhi, governando por duas vezes os destinos dos quinhentos milhões de habitantes da Índia; a Sra. Sirimavo Bandaranaike, dirigindo por seis anos os destinos do Sri Lanka, que os navegadores portugueses por má audição converteram em Ceilão; e, por fim, agora vemos a Sra. Margaret Thatcher dirigindo os destinos da Inglaterra; e Simone Veil presidindo o Parlamento Europeu. Uma mulher, de cinquenta anos, a Sra. Vigdís Finnbogadóttir, preside a vulcânica e gelada Islândia, e a Noruega, este ano, passou a ter como primeiroministro a jovem Sra. Gro Harlem Brundland, de 42 anos. Mulheres exercem cargos de ministro nos Estados Unidos, na França e, ainda há pouco, como bem sabeis, até mesmo em Portugal. Não duvido que, em futuro bem próximo, um presidente da República Federativa do Brasil tenha a ousadia de dar maior representatividade à parte preponderante da nossa população, chamando pelo menos uma brasileira ilustre para a Pasta que melhor se coadune com a sua sensibilidade e a sua formação cultural, ou elevando uma das nossas juristas à mais alta esfera do Poder Judiciário.
A Academia Brasileira de Letras, sendo uma Instituição viva, atenta às transformações sociais e culturais por que a nossa sociedade tem passado, e reconhecendo a crescente importância da contribuição feminina às nossas Letras, acabou por vencer as divisões existentes em seu seio. Os dois partidos – o que se apegava a uma tradição de mais de setenta anos e o que queria romper com essa tradição, atualizando-a acabaram por chegar a um acordo. Não se tocava nos estatutos, dando-se-lhes, porém, a interpretação que era a de Clóvis Beviláqua, de Spencer Vampré e, posteriormente, a de Vicente Ráo. A Academia passaria a admitir candidaturas de escritoras. Mas, para isso, foi necessária a vossa decisão. Arrependida do impulso juvenil que vos levara a firmar uma declaração de que jamais bateríeis às nossas portas – documento firmado também por Álvaro Lins, José Lins do Rego e Marques Rebelo, que apesar disso voluntariamente vieram ter conosco –, resolvestes um dia anunciar a intenção, mais que legítima, de pertencer ao nosso Grêmio, onde sempre fostes admirada pela excelência de vossas letras.
A BRIGADA DE CHOQUE
Desde logo, formou-se aqui dentro uma espécie de brigada de choque, cuja função era a de preparar, pela persuasão, o terreno para a aceitação de candidaturas de escritoras, dignas da consagração acadêmica. Já não estão conosco, infelizmente, alguns dos nossos mais destemidos vanguardeiros. Um deles foi Odylo Costa, filho, que entrara para Jornal do Commercio, ainda menino, pela mão de Félix Pacheco, defensor, em 1930, das candidaturas femininas. E, além disso, seu pai, o velho desembargador Odylo Costa, escrevera nesse mesmo jornal, a 5 de junho de 1930, um artigo em que, como jurista, sustentava não apenas a legitimidade da inscrição de D. Amélia de Freitas Beviláqua, como candidata, mas ainda citava, como merecedoras de serem aqui recebidas, Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Gilka Machado, Rosalina Coelho Lisboa, Maria Eugênia Celso e Carolina Nabuco – esta última a única sobrevivente, então, desse grupo de admiráveis talentos. Odylo Costa, filho, tinha a quem sair e foi um dos mais ardorosos e constantes combatentes de tal causa. Também não está conosco Otávio de Faria, que realizou um trabalho discreto, mas eficiente, nem o nosso verdadeiro líder, Osvaldo Orico, que, além do transbordante entusiasmo que punha em tudo quanto fazia, tinha o prestígio advindo da ancianidade nesta Casa, onde ocupou durante 43 anos a Cadeira em que sucedeu a Laudelino Freire, outro decidido defensor dos direitos femininos à imortalidade. Com tal comandante, a batalha seria ganha em pouco tempo. Mesmo os que ainda resistiam em nome de uma injusta e insustentável tradição, começaram a duvidar de suas teimosas atitudes. Outros se converteram ao nosso ponto de vista, compreendendo que a Academia devia fazer o que era mais correto, mais justo, mais digno, principalmente em se tratando de uma Instituição que tem recebido favores do Governo – um destes a doação do chão em que se erguem esta Casa e o imponente conjunto, ao lado, que recebeu a denominação de Casa da Cultura – e que, por isso mesmo, não deveria continuar a fazer discriminações contra a parte mais numerosa da nossa população, a das mulheres.
Ingressais nesta Casa com a mágoa de não encontrar nela esses três entusiastas da causa feminina. Mas aqui estão numerosos outros participantes dessa retardatária revolução acadêmica, entre os quais Adonias Filho, a quem coube dar boas-vindas à nossa primeira acadêmica, Rachel de Queiroz.
GESTO DE GALANTERIA
Vencida a batalha e inscrita na primeira vaga, tivestes um gesto de galanteria, evitando concorrer para a divisão do eleitorado favorável às aspirações femininas, que aqui se formara, e que subia a quase três quintas partes da Academia. Cedestes assim o passo a uma escritora de vossa admiração e de merecimentos não menores – a romancista, cronista, dramaturga e poetisa arrependida Rachel de Queiroz – que assim se tornou a nossa primeira acadêmica, precisamente quando se aproximava o cinquentenário da publicação de seu primeiro grande romance, O Quinze. A eleição de Rachel de Queiroz constituiu, por todos esses motivos, um marco histórico na vida desta Casa. Mas a vossa eleição não o é menos. Entre uma e outra, havia o risco de que a Academia se desse por satisfeita com a quebra do antigo tabu e fizesse de sua primeira acadêmica uma figura única, um caso isolado, destinado a representar simbolicamente todas as demais escritoras, a quem ficariam cerradas, daí por diante, as nossas portas. Mas esse risco foi conjurado com a força e o prestígio de vossa candidatura. E a vossa eleição representa a contraprova da sinceridade da corrente acadêmica, deliberada a enterrar de uma vez por todas a velha e indesejável tradição. Entre a eleição de Rachel e a vossa, a Academia Francesa, esse penhasco de três séculos e meio – para usar a expressão de Constâncio Alves – seguiu o nosso exemplo, não só deliberando admitir candidaturas femininas, mas ainda acolhendo em uma de suas vagas a eminente escritora Marguerite Yourcenar.
PRÊMIO AFONSO ARINOS
Já disse, e agora repito, que a vossa candidatura a uma das Cadeiras desta Casa era mais que legítima, e não apenas porque correspondia aos desejos de seu Fundador. Quem mais a legitimou foi a própria Academia Brasileira de Letras, de início ao laurear em 1950 vosso livro As Noites do Morro do Encanto, com o Prêmio Afonso Arinos, instituído em honra do grande escritor mineiro que, ao lado de vosso tio, Valdomiro Silveira, foi uma das expressões marcantes do Conto Regional Brasileiro em fins do século passado. Foi pelo Conto que começastes a exercitar a vossa capacidade de criação e logo com o primeiro deles, “O Pecado”, triunfastes num concurso latino-americano. Na vossa bibliografia, As Noites do Morro do Encanto vinham figurar ao lado de A Sereia Verde, de cujas histórias outros autores, com a vossa generosa permissão, extraíram peças teatrais, aplaudidas pelo público. Alguns desses contos estão hoje em antologias publicadas nos Estados Unidos, Argentina, Peru, Venezuela, França, Portugal, Noruega, Israel, Japão e Coreia. Aquele prêmio da Academia pouco representava, porém, para uma escritora do vosso merecimento, que irrompera vitoriosamente em nossas Letras com o romance Floradas na Serra, laureado no ano seguinte pela Academia Paulista de Letras e que, depois de sucessivas edições, foi traduzido na Argentina, levando o vosso nome aos países de Língua Espanhola. E não tardou a ser convertido em filme de sucesso, preservando em suas cenas emotivas a imagem dessa grande atriz brasileira que se chamou Cacilda Becker e estando agora em vias de ser adaptado em São Paulo para uma novela de televisão de 22 capítulos. Pouco depois aparecia Margarida La Rocque, romance intensamente dramático, inserindo o vosso nome entre os autores que exploraram o mistério das ilhas perdidas nas solidões oceânicas. Sem os inocentes idílios de Bernardin de Saint Pierre, sem os canibais de Daniel Defoe ou o ouro dos piratas de Robert Louis Stevenson, a vossa ilha era uma ilha tenebrosa, de pecados e tormentos, não espantando que logo tenha passado para o Francês como título de L’Ile aux Démons, com que foi publicado pela editora Julliard em 1952. Se os franceses invocaram o Diabo, os espanhóis preferiram fazer o oposto, colocando-o nesse mesmo ano na Coleção Grandes Novelistas, de Barcelona, com o título de El Juicio de Dios.
PRÊMIO MACHADO DE ASSIS
Quatro anos depois de laureada com o Prêmio Afonso Arinos, escrevíeis o vosso terceiro romance, A Muralha, vasto painel do primitivo burgo colonial de Campo de São Paulo de Piratininga, com seus rudes heróis, desbravadores de terras desconhecidas, seus padres catequistas, seus mamelucos, seus escravos índios e negros, e as mulheres animosas, que vinham do outro lado do Atlântico, consignadas a futuros maridos de quem só os nomes conheciam. As figuras que colocastes nessa narrativa épica, nascidas de vossa fecunda imaginação, parecem retiradas das crônicas históricas, transbordantes de vida e de verdade. Valorizastes, principalmente, a galeria feminina, com os retrados de Cristina; de Joana Antônia, a egressa da Taverna do Toiro; Margarida e Mãe Cândida; Brasília, já trazendo no nome o da terra, autoritária e violenta, com seu chicote de cabo de prata; Isabel, de quem “Nosso Senhor troçou quando a fez mulher”; e Rosália, a mentirosa, que mentia sem maldade, para enganar a si mesma, como tantos mentirosos compulsivos... Mas o friso em que se destacam as figuras masculinas não tem menor relevo, principalmente as do patriarca D. Brás Olinto e seu filho Tiago, a quem vem consignada a portuguesinha Cristina. Numa frase dela, colocada no fecho do romance, vós mesma definis, numa síntese admirável, a gente que então habitava a pequena vila lamacenta e suja, com porcos à solta refocilando no lixo das ruas: “Com homens assim, assim loucos e teimosos, e mulheres tão atrevidas e obstinadas... Sabe o que me veio à cabeça? Que esta sujeira... – e ela quase cuspiu de raiva naquele desafio à grandeza de Deus, mas se dobrou, cativa da imensidão... bem pode tornar-se, um dia, uma grande cidade!”
Tão grande foi o impacto causado por esse romance que a Academia Brasileira de Letras imediatamente vos conferiu a maior de suas láureas – o Prêmio Machado de Assis. Lavrou o parecer o ilustre acadêmico Pedro Calmon em quem a vocação para os estudos históricos infelizmente acabou por estiolar o ficcionista juvenil de Pedras d’Armas, e de A Bala de Ouro. Revestido de dupla autoridade, a de ficcionista e a de historiador, ele consignou, em seu parecer:
Com essa faculdade descritiva, em que se desdobram as mais diferentes situações psicológicas, interpretando o selvagem desassombro dos desbravadores da terra e povoando-a de heroísmo bárbaro, a Sra. Dinah Silveira de Queiroz fez arte pessoal, romance de estrutura complexa, admirável restauração de cenários e imagens que lhe asseguram uma posição inequívoca entre os nomes vitoriosos da Literatura Contemporânea.
O parecer não trazia qualquer restrição ou limitação. Não falava em letras femininas. Englobando mulheres e homens, ao aludir a “nomes vitoriosos”, assim terminava: “É a razão de se lhe conferir o Prêmio Machado de Assis de 1954, ano do quatricentenário de São Paulo, em cuja honra, aliás, escreveu ela A Muralha.”
Louvada pelos futuros acadêmicos José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Adonias Filho em termos altamente encomiásticos, A Muralha teve também a consagração pública, atestada por numerosas reedições e várias traduções. Não tardaria muito que chegasse à televisão, sob a forma de novela, como chegaram tantas outras das nossas grandes obras literárias, entre as quais Senhora, de José de Alencar; A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; Helena, de Machado de Assis; e Gabriela, Cravo e Canela, de Jorge Amado – para citar apenas escritores cujos nomes estão ligados a esta Casa.
Uma das mais interessantes particularidades desse vosso romance, que não vi anotada ou realçada por qualquer de seus críticos, é o fato de não trazer uma única data.Todas foram deliberadamente omitidas. Fizestes o levantamento de uma época, com os seus costumes, seus tipos, seus cenários primitivos, sua linguagem, seus preconceitos e suas virtudes enérgicas, mas nem uma só vez nos dizeis que o vosso romance se desenvolva no último quartel do século XVII. Só o sabemos indireta ou obliquamente, pela colocação, entre os seus personagens, de Manuel de Borba, depois nomeado como Borba Gato bem antes de partir com o sogro, Fernão Dias, à caça das esmeraldas nas serranias das Minas Gerais.
Novos êxitos coroaram as vossas atividades literárias, nos 26 anos que se seguiram. Com outro romance, Os Invasores, associastes vosso nome às comemorações do Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Tomastes como tema as incursões francesas do início do século XVIII, primeiro com a desastrosa aventura do Capitão Jean François Du Clerc e, depois, com seu vingador, o ex-corsário René Du Guay-Trouin, elevado à condição de chefe de esquadra e que colocou a cidade sob resgate. Se Os Invasores não chegaram à televisão como A Muralha, tiveram, no entanto, a consagração popular, convertidos em tema do desfile de uma escola de samba. Dessas incursões pelo nosso passado histórico, destes, na vossa máquina de explorar tempo, um gigantesco salto para o futuro, alcançando os mundos misteriosos de galáxias desconhecidas, nas histórias de Comba Malina. E de lá voltastes, logo depois, para nos dar um denso romance da moderna vida carioca, em Verão dos Infiéis.
A ANIMADORA DOS NOVOS
Impressiona a qualquer observador atento à multiplicidade de vossa obra a variedade de vossa inventiva, a segurança com que passais destramente de um a outro gênero, do Conto ao Romance, da Crônica à Biografia, da Literatura Infantil ao Teatro, da recriação do nosso passado histórico às projeções futurológicas da Ficção Científica e aos temas religiosos, na reinterpretação da vida de Cristo. Sois uma trabalhadora das letras, como os que mais o foram. As vossas crônicas do Café da Manhã, escritas cotidianamente, dariam para preencher dezenas de volumes, caso fossem todas publicadas, como as de Coelho Neto, Humberto de Campos e outros cultores do gênero. Mesmo ausente – quer na Espanha, como adida cultural do Brasil, quer em Roma, em Moscou e, agora, em Lisboa, ou ainda no Japão e na Coreia do Sul, para o lançamento de vossos livros ali traduzidos, nunca deixais de estar presente no Brasil através das vossas mensagens matinais.
Há um traço da vossa personalidade que muito vos aproxima do primeiro ocupante da Cadeira 7. Valentim Magalhães foi, antes de tudo, um grande animador da vida literária de seu tempo. Em sua revista, A Semana, acolhia generosamente os novos escritores, sem distinção de escolas, e realizava constantemente concursos literários, ora de contos, ora de traduções de sonetos famosos. Ninguém ignora o que foi a vossa atuação, à frente do Jornal dos Novos, do desaparecido jornal A Manhã, onde acolhestes, entre outros jovens, as figuras expressivas de Fausto Cunha, Fábio Lucas, Luiz Canabrava, Renard Pérez, Terezinha Eboli, Leda Barreto, Nataniel Dantas, Samuel Rawett e o prematuramente desaparecido Jones Rocha Filho. E trazeis, ainda, por singular coincidência, para esta Cadeira, o nome de seu Patrono, a que tendes direito por vosso casamento com o ilustre diplomata Dário Castro Alves, a quem acompanhastes a Moscou e a Roma e a quem, hoje, na Embaixada do Brasil em Lisboa, dais inestimável colaboração, assumindo parte relevante dos encargos sociais de tão importante representação brasileira. Sois não apenas a embaixatriz do Brasil em Lisboa, mas também a delegada permanente das nossas Letras e da nossa Cultura. E não há de ter sido por outra razão que o Presidente de Portugal, Ramalho Eannes, às vésperas de vosso recente embarque para o Rio de Janeiro, vos condecorou com o colar de Sant’iago da Espada, que ostentais nesta noite e com o qual a Pátria de Camões premia o mérito literário, artístico e científico. Já exercíeis tal delegação antes mesmo da vossa investidura acadêmica. Mas podeis agora, com este novo título, falar em nome destes 39 vossos companheiros e desta Instituição que, ao envelhecer, permanece disposta a se renovar.
Para terminar, diremos apenas uma palavra a mais, em honra do nosso Fundador. Se o homem não se desfaz por inteiro no pó das sepulturas, o espírito de Lúcio de Mendonça deve rejubilar-se conosco, nesta noite festiva. As tristezas que ele manifestou pela exclusão das três Júlias começaram a ser vingadas pelo ingresso nesta Casa das duas Queiroz: a romancista de O Quinze e a ficcionista de A Muralha.
Principalmente por vós. Mais uma Queiroz viria muito a propósito para desmanchar aquela antiga amargura. Se olharmos bem ao nosso redor, veremos uma nova estrela literária em fulgurante ascensão com esse nome. Não nos cabe, porém, insinuar candidaturas. O nosso dever imediato é apenas o de dizer que, se a nossa justiça foi tardia, nem por isso é menor o nosso júbilo ao receber a nossa segunda acadêmica. Sede bem-vinda à Casa de Lúcio de Mendonça e de Machado de Assis, Sra. Dinah Silveira de Queiroz Castro Alves!
7/4/1981