OS LIVROS VÃO E NÃO VOLTAM - O QUE SE ENCONTRA DENTRO DELES
“Un livre prêté, comme la vieille garde, ne se rend pas” - disse não sei quem.
Algum infeliz, gemendo a decepção de um empréstimo?
Algum gaiato, justificando gaiatamente o seu propósito de não restituir o livro emprestado?
A frase pode ser de um ou de outro: expressão humorística do desgosto de um homem roubado, ou pilhéria de larápio a zombar de sua vítima.
Dita por este ou por aquele, é igualmente verdadeira e a sua verdade é de todos os séculos: dos passados, como resumo de histórias dolorosas; dos futuros, como prognóstico ou profecia.
E quem duvidar de que amanhã seja a repetição de ontem, recorra à experiência, que é mestra: empreste.
Por não precisarem desse meio de verificação, bibliófilos de Londres, neste século que merece a denominação de “século das ligas”, fundaram a Liga contra o Empréstimo de Livros.
Que seja mais feliz que a Liga das Nações. Esta não conseguiu levar ao seu grêmio todos os povos do globo.
Aquela, parece, mais facilmente conseguirá a adesão de quantos têm o que perder, livros de estimação que mais se perdem por empréstimo, e que até mesmo quando não se perdem perdidos ficam porque, como disse Pixérécourt ou um outro, em dois versos chorosos que formam uma triste verdade lamentável:
Tel est le triste sort de tout livre prêté,
Souvent il est perdu, toujours il est gâté.
André Chénier contaria dessas tristezas em melhores versos, porque era grande poeta e não lhe faltou a dor inspiradora. Mas talvez por ser demasiado grande quebrou-lhe as cordas da lira a dor que sentiu ao ver seu Malherbe (in-octavo, pequeno, editado por Barbou e anotado por Meunier de Querlon) voltar ao seu poder cheio de borrões de tinta; e foi em prosa angustiada que celebrou aquela desgraça.
Rui Barbosa, que tinha o amor e, portanto, o ciúme dos livros, contava com um e outro dos infortúnios preditos: ou perda, ou estrago.
Quando emprestava alguma obra, procurava logo adquirir outro exemplar da que saíra, tão certo estava de que ele ou não regressaria ou, se tornasse, viria mais ou menos como o referido Malherbe.
Emprestou certa vez um volume a Capistrano de Abreu.
Mandou-lho, porém, revestido de tantas capas, que o historiador (bom entendedor para quem meia palavra seria até demais) compreendeu o que significava aquele excesso de precauções, e restituiu o emprestado sem o abrir.
Esse livro voltou. Outros, porém, não deram com o caminho de casa.
Ouvi do lesado, o que verifiquei mais tarde, quando procedi ao inventário de sua biblioteca, que a mão do empréstimo lhe subtraíra um volume da História da fundação do Império, por Pereira da Silva; uma coleção de folhetos sobre finanças da Itália, e a coleção, raríssima, de O Século, jornal publicado na Bahia, em 1848, e onde está o melhor da obra jornalística de João Barbosa, pai do roubado.
Ora, o que sofreram Rui Barbosa e Chénier, um lamentando perda de obras, o outro chorando estragos em livros, não são aborrecimentos excepcionais. Se todos os que têm biblioteca publicassem os seus queixumes, um choro estrondoso e perpétuo agoniaria a humanidade.
Apesar de isolada do mundo, a Inglaterra não escapa à sorte comum, e a prova aqui está na fundação da Liga contra o empréstimo. Os sócios compreenderam que, avulsos, não poderiam resistir ao mal.
A Liga os amarrou, dando-lhes a resistência do feixe daquele célebre apólogo antigo.
Unidos, sentem-se mais fortes para dizer o não resoluto aos que metem nas bibliotecas alheias unhas de gavião.
A decisão desses bibliófilos inquietos e precavidos, associados para terem coragem de afrontar a coragem dos que tomam livros por empréstimo, encontrará apoio decidido em todos os bibliófilos?
Parece que sim. Mas pode ser que não.
***
Nem todos os que têm livros, nem todos os que amam os livros saem de um molde comum.
Há variedades interessantes nessa bicharia de que fazem parte os ratos de biblioteca e as traças de livros.
Existem numerosos exemplares, o bibliófilo egoísta que tem os seus livros somente para si, e só os mostra por vaidade, para desesperar a inveja dos colegas com a exibição de riquezas que eles não possuem.
Mas também não falta nessa parte da humanidade que tem a paixão do livro e da leitura, o tipo inverossímil, mas rigorosamente histórico do bibliófilo generoso, que ama, com igual amor, os livros e os amigos, e por causa destes corre o risco de perder aqueles, emprestando sem constrangimento e até com prazer preciosidades raras.
Era desse feitio o sábio Grolier. Na divisa do seu ex-libris resplandece a sua liberalidade: Io. Grolieri et amicorum.
O exemplo pegou, e houve quem lhe adotasse a inscrição convidativa e a generosidade amável e perigosa.
Houve até quem fosse além e alargasse o círculo da liberalidade de modo a caberem outras pessoas além dos amigos.
Era assim o simpático Miguel Becon, um mão-aberta no emprestar; e emprestava com tamanha imprudência que o seu bibliotecário lhe fez ver um dia que com esse sistema perderia os seus tesouros bibliográficos.
Que foi que lhe respondeu o homem, ou antes o santo, o anjo?
Disse-lhe estas palavras sublimes, que todos devem admirar, embora não devam repetir:
“Prefiro perder meus livros, a parecer duvidar de um de bem.”
Neste particular não podemos ter inveja de estrangeiros.
Tivemos Capistrano de Abreu, que emprestava livros, com prazer, até com amor.
Não era rigorosamente o que se chama um bibliófilo. Lia os seus livros; porém não os guardava com zelo e não queria tê-los cuidadosamente encadernados. Nos seus últimos tempos falava até em se libertar de todos eles; pretendia adaptar ao seu desprendimento bibliográfico ou antibibliográfico, o dito de Carnegie, que espalhara milhões em obras de beneficência: quem morre rico, morre desonrado.
Cumprindo esse programa, ia oferecendo os livros que possuía.
Nem por isso Carnegie morreu sem dinheiro nem Capistrano sem livros. Se mandasse fazer ex-libris, nenhuma divisa lhe serviria melhor que uma adaptação do de Grolier. Para que os seus livros pudessem ser também dos seus amigos, escolhia aquelas obras que mais emprestáveis fossem. Sabendo o Alemão como sabia, privava-se de ter obras originais naquela língua, preferindo traduções em francês, inglês ou italiano, mais acessíveis ao comum dos leitores.
Capistrano, e outros assim, ficariam fora da liga contra o empréstimo de livros; mas com isso a tal sociedade perderia apenas um pelotão num exército. A maioria, a grande maioria, desejará vitorioso o programa da liga: ela pode contar até com a aprovação dos que gostam muito de empréstimos, a seu benefício.
Essa facilidade em emprestar livros é mesmo na boca dos favorecidos argumento contra os empréstimos.
Dizia certo bibliófilo a um amigo:
“Como quer V. que eu empreste livros a quem não faz caso deles? Emprestou-me V. alguns, e nunca os reclamou!”
Razão decisiva: e há muitas outras também excelentes.
Lembrarei apenas duas, porque o papel não dá para mais.
A primeira é que, mal o estudioso emprestou um livro, vem logo a precisar dele. Parece mentira, mas é assim.
A outra é que, para certas pessoas, um livro é mais que um livro: é gaveta de papéis íntimos, é escrínio para relíquias, é cofre de segredos, é até carteira para dinheiro.
Por conseguinte, emprestar um livro é, às vezes, correr o risco de comunicar a outrem o que não queríamos revelar a ninguém, fazer confidências que podem prejudicar a terceiros, é sofrer algum desfalque.
Dentro de livros que dormitavam à minha espera, nas lojas dos antiquários, já encontrei folhas secas, bilhetes de amor, cartas sobre negócios e contas de armazém. Não conto novidade. Isso é comum. Durante a grande guerra, muitas mulheres caridosas, acudindo ao apelo do governo, enviavam para o campo de batalha romances destinados a entreter os combatentes. Nesses livros, lidos com pressa e oferecidos sem maior exame, iam grampos, pedaços de fita, e cartas comprometedoras. Não sei se algum romancista aproveitou esta leviandade para arquitetar tragédia conjugal: o marido, recebendo em romance, vindo da pátria, e que lhe caíra nas mãos por acaso, a prova certa de que em sua ausência madame estava figurando em outro romance mais impressionante para ele e ela do que o impresso.
***
Eu, que tenho achado algumas coisas dentro de livros, só não encontrei dinheiro.
Sei, porém, de fonte limpa que há quem o guarde entre páginas de livros.
Vária recente do Jornal do Comércio noticia o que contou o Evening News de Londres, acerca da sorte grande que saiu ao estudante Eugenio Lacosta, quando lia na Biblioteca Vaticana.
A sorte grande saiu-lhe de um livro, obra de Emilio Revisa, escritor falecido em começo do século passado. Era apenas isto:
“Quem achar este bilhete, queira dirigir-se ao meu notário, a quem pedirá que consulte o seu registro L. I. n. 162.” Seguiam-se o endereço do tabelião e a data “Roma, 5 de fevereiro de 1794.”
O estudante, por curiosidade, que nele venceu o receio de ser vítima de alguma pilhéria, foi ao cartório indicado, e aquele papelzinho lhe valeu um cheque de oito milhões de liras, e provavelmente um choque, desses que podem matar de contentamento.
A obra em que estava o cheque fora tão mal recebida pela crítica, que o autor desanimado resolveu quebrar a pena, já que lhe faltara decisão para quebrar a cara dos censores. Mas, por cortar a sua carreira literária, não renunciou à esperança de encontrar um leitor, atraído talvez pela violência do ataque. Para esse leitor precário, duvidoso, desconhecido, deixou oito milhões. Morreu, porém, sem o conhecer. Morreu com a desesperadora amargura de que não encontrar quem o lesse, nem sequer por oito milhões. O leitor, o seu pio leitor e seu herdeiro, chegou afinal. Veio um pouco tarde para o infortunado autor, e não veio por ter farejado aquele maravilhoso pão de ló.
Não posso garantir a veracidade da anedota. Mas aconselharia que folheassem as obras daquele Emilio Revisa, que favoreceu Eugenio Lacosta com a mais proveitosa das leituras. E não seria mau que os curiosos folheassem todos os livros que lhes caíssem nas mãos. Há quem neles guarde dinheiro. Guardava-o, por exemplo, o Dr. Aristides Milton, que quando deputado federal, aboletado em pensões, e receando algum roubo, preferia esconder entre páginas o que em geral se fecha na gaveta.
Fazia o mesmo outro baiano, frade beneditino, irmão do Conselheiro José Antônio Saraiva. Quando por sua morte remexeram-lhe na biblioteca, encontraram várias cédulas, e algumas de grande valor. Mas o achador desse tesouro foi um Lacosta caipora. As cédulas não valiam mais nem um vintém; estavam recolhidas.
Num livro encontra-se de tudo: violetas ressequidas, bilhetes doces, contas amargas, e até gente. Quando a imprensa parisiense andou a explorar com insistência a magreza de Sarah Bernhardt, garantiu um folhetinista que quando ela queria marcar o fim de uma leitura metia-se entre as páginas.
***
Não é possível esquecer, já que falo no que se encontra em livros, sem fazer parte deles, as notas marginais que o dono lhes acrescentar, em abono do texto, ou para condenação da obra.
Essas notas não raro são confidências que devem escapar a indiscretos e até aos outros.
Nelas o leitor, muito em segredo, porque está falando a quem não tem língua, diz do autor o que não lhe diria cara a cara.
Ora o livro emprestado pode ser, a contragosto, o denunciante de pensamentos secretos, o traidor do amo. Emprestá-lo quando ele se tornou baú de coisas confiadas, sob sigilo, é imprudência, capaz de causar arrependimento e desgostos.
A propósito, contarei uma história exatíssima.
Costumava José de Alencar enriquecer de notas marginais livros que lhe pertenciam. Indo visitá-lo, certo amigo encontrou uma obra do autor do Cabeleira anotada pelo autor do Guarani.
As anotações não eram benignas. Que fez o amigo íntimo, que não era amigo discreto? Foi dizer a Franklin Távora o que a respeito do seu livro pensava José de Alencar.
Daí a raiva com que o criticado passou a criticar a obra do seu glorioso patrício. Daí as cartas com que, sob o pseudônimo de Semprônio, veio ajudar a José Feliciano de Castilho, que aparecera na imprensa com a máscara de Cincinato, e não poupava o grande escritor, avesso à sujeição da inteligência brasileira ao domínio intelectual da antiga Metrópole.
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Anotador de seu livros era também D. Pedro II. Reservado por temperamento e necessidade, certas coisas dizia só a eles, com a certeza de que não passariam a ninguém o que receberam. Agora que está morto o Imperador, vários dos seus livros têm divulgado pensamentos, impressões e juízos, escritos pelo lápis fatídico. Esse lápis escreveu apontamentos que honram o dono. Referências de Joaquim Nabuco, um interessante artigo do eminente escritor Conde de Afonso Celso, e alusões de mais alguns, mostram que D. Pedro II não teria motivos de se envergonhar se as suas notas viessem à publicidade quando vivia.
Mas não era isso razão para ficar contente se algum estranho passasse os olhos abelhudos pelas suas notas.
Disso, porém, estava livre, o que não sucedia a seus súditos bibliófilos desarmados de cetro para afugentar os que pedem livros emprestados. Creio que não era muito fácil filar um volume de sua Majestade.
C. A.
(“Dia a dia”, Jornal do Comércio.)
RIO BRANCO
Todos esses dias que passaram se coloriram no crepúsculo final da vida de Rio Branco.
Não houve alma que não se embebesse da tristeza e da solenidade desse lento e majestoso anoitecer.
Às mais fechadas aos sentimentos coletivos chegou sempre um raio dessa luz violácea que encheu o horizonte inteiro, transpôs as montanhas desta Capital, purpurou todo o céu da pátria que ele engrandeceu, e foi levar a inquietação e a angustia a muitos corações além das fronteiras a que ele traçara a linha definitiva.
Sob essa claridade dolorosa fraternizaram pessoas de todas as classes, almas de todas as feições, espíritos de todas as culturas.
Até onde a vista alcançava, víamos prolongar-se numa imponente amplitude o sentimento público acompanhando com ansiedade e carinho as alternativas daquele fim de existência.
Do estrangeiro nos vinham, num longínquo murmúrio de vozes amigas, a certeza de que o nosso pesar não tinha as delimitações de uma amargura doméstica.
De todo o Brasil chegavam ininterrompidamente, em perguntas inquietas, na indicação de numerosos remédios salvadores, em preces e lágrimas, as mais profundas manifestações de piedoso interesse.
Nesta vasta cidade, até os confins indecisos dos seus subúrbios, estendia-se um sombrio compungimento que perturbava toda a nossa atividade.
E quando as apreensões e as esperanças emudeceram ante a realidade da morte, essa mágoa que procurava se distrair dos seus receios, e enganar os seus pressentimentos - avivou-se na mais pungente dor com que a alma de um povo já chorou a morte de um homem.
As expressões desse sentimento se desenrolaram em espetáculos de uma grandeza inenarrável.
Foi o silencioso passar da cidade numa romaria comovedora, diante do caixão mortuário.
O que guiava a multidão infindável não era a curiosidade, que vê com olhos enxutos a morte em grande gala no aparato de seus veludos e na refulgência dos seus ouros; era o amor, que em lances desses quase que só tem olhos para as lágrimas, e tateia as faces do morto com dedos que tremem de ternura materna.
E quando o grande Brasileiro seguiu para a derradeira morada, foi todo o povo que o levou numa dessas marés irresistíveis que mudam os préstitos fúnebres em cortejos triunfais.
Além das massas que se premiam e até nas ruas mais largas, ofereciam resistência de correnteza impetuosa, à angústia de canais apertados, além desses milhares de pessoas que a perder de vista - alastravam praças - sentia-se que o préstito continuava por uma multidão invisível, por um acompanhamento inumerável de almas que de todos os pontos do Brasil, tão amado pelo morto, vinham seguindo aquele féretro glorioso.
Tamanha era a magnificência da cerimônia que ela perdia, por vezes, a sua nota de dor.
Em vão as lâmpadas, filtrando a sua luz aflita através de véus negros, e o sol, também envolto numa névoa de luto, diziam da significação daquela homenagem. Predominando a melancolia dessas manchas luminosas, que falavam de ruína e de acabamento, um clarão de imortalidade dominava toda aquela torrente humana, e comunicava esperanças de primavera às flores das coroas funerárias.
Onde, porém, a tristeza se exprimiu com a sua eloquência acabrunhadora, foi nos pontos da cidade, que deram para a glorificação de Rio Branco tudo quanto lhes dá animação e graça: foi nos jardins, sem flores, e nas ruas sem transeuntes.
No centro da cidade, nos bairros do comércio, justamente nos locais de maior movimento, as casas fechadas e as ruas ermas, inquietavam e afligiam pelo seu silêncio trágico. O estrangeiro que visitasse esses trechos urbanos, ignorando a causa de tamanha mudez, julgar-se-ia numa cidade morta, experimentaria o terror do mistério, e adivinharia a sombra de uma catástrofe.
Rumorosas ou mudas, essas demonstrações de tristeza, de respeito e de admiração - mostram a fidelidade do sentimento nacional àquele a quem, há mais de dez anos, recebera com manifestações a que uma vibração de ternura se misturava o mais clamoroso entusiasmo.
Quem esteve nos dois cortejos, reconhece que o mesmo amor palpitava nas festas com que acolhemos Rio Branco, e no adeus que lhe dissemos agora.
A popularidade que alcançara, pelos seus triunfos diplomáticos, em Berna e em Washington, - não deixou de acompanhá-lo afetuosamente nos seus últimos anos de trabalhos e de glória.
A constância dessa fascinação era de toda a justiça, porque Rio Branco nunca deixou de ser o que sempre foi para o povo: o herói, agigantado pelo amor da pátria, que incansavelmente batalhava e infalivelmente vencia, em defesa da nossa honra, e no interesse da nossa grandeza. Se o povo, que tanto o idolatrava, tivesse que enumerar minuciosamente os motivos de sua idolatria, - naturalmente não chegaria com as suas razões ao nível de sua admiração.
Ele não sabe precisamente que dificuldades venceu e que limites fixou o grande homem; e ignora todo o alcance de sua obra diplomática, a feição característica de sua fisionomia de estadista.
Rio Branco aparece-lhe numa névoa luminosa, a da lenda, que a certos respeitos, é a verdadeira glória.
O povo tem a visão confusa, e no entanto exata, de que esse homem possuía as qualidades necessárias para realização das grandes obras que escravizam o reconhecimento nacional e que essas qualidades superiores, ele as empregou em monumentos imperecíveis.
E o povo o amava, o ama, porque sente que havia entre a sua alma humilde e a alma radiosa do seu super-homem um sentimento comum que, apesar de todas as distâncias, as irmanava: o amor da pátria.
Sem dessa convicção tirar vanglória, quantos dos que beijaram a pálida mão que apertava a crucifixo não tiveram a noção dessa conformidade de afetos, pensando que aquela mão agora inerte, depois de tantos labores, afirmara com a pena o mesmo devotamento que mãos anônimas da plebe podem afirmar com as armas, e com a ferramenta do operário.
Louvando merecidamente o patriota, porque toda a vida de Rio Branco foi orientada pelo patriotismo - o sentimento popular glorificou propriamente o estadista, o diplomata, o homem que, numa evidência de batalhas e de vitórias, engrandeceu o seu nome e o nosso.
É esse realmente o Rio Branco que se destaca por uma superioridade inconfundível, e que recebe outras homenagens além das que lhe prestamos.
Foi com efeito à luz de seus triunfos, de representante de nossos direitos perante árbitros, e de Ministro de Estrangeiros, que a sua individualidade se mostrou com o seu prestígio inapagável aos olhos do país e do mundo.
Mas, seria mutilar a sua personalidade, e dar de sua vida alguns capítulos apenas, ver em Rio Branco simplesmente o homem desses últimos anos de notoriedade fulgurante.
Embora seja o resplendor dessa última fase o que lhe dá direito de viver além da morte não merece esquecimento esse Rio Branco que longos anos viveu longe da pátria, na penumbra de seu gabinete de erudito, de cronista, de historiador das coisas pátrias.
E necessário é bem lembrar esse Rio Branco, porque sem ele o outro talvez não existisse.
Foi o Rio Branco que nos vagares de suas pesquisas bibliográficas ia colhendo nas casas e caixas de antiquários velhos volumes que falavam do Brasil; foi o Rio Branco paciente e infatigável remexedor de arquivos e bibliotecas estrangeiras que armou o Rio Branco de agora para as batalhas que o imortalizaram.
Não podemos, não devemos esquecer esse beneditino que, certamente ignorante do que o Destino lhe reservava, ia lendo velhas crônicas, estudando cartas amarelecidas e obscuras, classificando na sua maravilhosa retentiva memórias do nosso passado.
Já nesse tempo o animava o sentimento que o tornou um grande vulto da História que ele estudava com tanto amor. Já então, no seu ex-libris em que se vê desenhado um trecho da nossa maravilhosa baía, e no seu papel de cartas figurava a legenda que era o resumo de sua vida: Ubique Patriæ Memor.
Nunca uma divisa exprimiu melhor um homem. .
Rio Branco era historiador, era geógrafo, porque as crônicas e os mapas lhe falavam da pátria.
Os seus estudos obedeciam antes ao amor de cidadão do que à curiosidade de estudioso. E não era somente o culto desenganado e pessimista de um homem que do seu país ama somente o passado, o que jaz amortalhado em anais, e glorificado em pedras arqueológicas.
O seu carinho de filho enternecido e orgulhoso, tinha um campo de visão amplíssimo. Ele envolvia nessa afeição o Brasil desde o dia do descobrimento até o mais recente de sua existência. Amava-o nos seus homens e na sua natureza, e do seu amor dava a prova mais intensa, estudando, não num exame que abrangesse apenas as massas, isto é, multidões e florestas, mas numa análise que descia a minudências biográficas: às plantas mais rasteiras, aos personagens mais obscuros, aos regatos ignorados, que correm em vales sem nome, aos fatos miúdos que só miúdas memórias registram.
Desse estudo que o amor inspirava, resultaram os feitos que hoje admiramos. Ele saiu da penumbra para a glória, como um rio que, depois de um curso subterrâneo, inesperadamente desenrolasse à luz do sol uma corrente já majestosa. Mas nos dois lances do seu caminho, embora em terrenos diversos, é a mesma linfa que corre. Por ter a pátria sempre na lembrança Rio Branco pôde passar dos labores da crônica à situação de dar a futuros historiadores, do Brasil e da América, espetáculo de uma nobre figura, dessas de quem se pode dizer, como um escritor, que pertencem ao passado pela história e ao futuro pela imortalidade.
15 de fevereiro de 1912.
(Figuras, 1921.)