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Discurso de posse

DISCURSO DO SR. CLÁUDIO DE SOUSA

SENHORES Acadêmicos:

Esta assembléia, para mim sem par, seus olhos, seus rostos, sua atenção e seu próprio silêncio vos terão dito que se espera de minha palavra alguma coisa que me amedronta por demasiada e excessiva; que devo falar menos pela necessidade do que pelo brilho; e que cada um de vós, por zelo muito justo pelo companheiro que deixou de existir, e muito injusto para com a minha pobreza, requer ou exige que eu interprete seu sentir acerca do morto querido, e o faça com o espírito, as luzes e a delicadeza de sua comoção que, infelizmente, não possuo.

Por estas palavras, que adaptei a meu caso, começou Pelisson o panegírico de Luís XIV, em memorável sessão da Academia Francesa. O mesmo, ou ainda maior embaraço assalta-me neste momento. Sei que se me promete grande vossa indulgência, mas o receio de excedê-la aumenta-me o vexame. Ao entrar no templo maravilhoso que nos herdou o grande poeta morto, sinto-me ofuscado por suas gemas, de prismas raros, de fogos perturbadores, nos quais a luz se crispa ao sopro da inspiração, dando-nos a vertigem das fulgurações. Tesouro de valores tão raros devo desvendar-vos na solenidade deste recinto augusto, onde tudo, do edifício histórico, que relembra época de esplendores, à altiloqüência de suas letras, títulos e luzes, aos louros de suas quarenta poltronas, se combina e se coliga para abater-me a pequenez, reduzir-me a ambição, esmagar-me a vanglória!

A vanglória, porém, Senhores Acadêmicos, não foi a enganadora guia que me trouxe. Minha ambição foi, apenas, a de aprender convosco a lição da sabedoria, reconquistando, ao mesmo tempo, para o teatro brasileiro, a poltrona que lhe havíeis concedido no ato de vossa fundação, com Martins Pena por patrono e Artur Azevedo por titular.

Entendestes com muita bondade admitir-me em vossa ilustre companhia, não em atenção a meu valor, que é nulo, mas como estímulo a nosso renascente teatro, em cujo nome me cumpre agradecer-vos a inexcedível honra que lhe concedeis. É bem verdade que alguns proclamam a inexistência do teatro brasileiro, ou sua inferior qualidade, com pouco mais do que a comédia de costumes.

Mas a comédia de costumes é a que caracteriza e individualiza um teatro, a que lhe dá corpo e alma, sangue e raça, independência e personalidade. Ela mergulha com o escafandro da análise e os olhos agudos da sátira no mais íntimo da alma da nacionalidade, recolhendo-lhe as comoções virginais, os anseios, os sustos, as curiosidades, os sobressaltos, as alegrias, as tristezas, as núpcias, os amores, a estética íntima dos pudores, a filosofia sagrada da moral, o relicário augusto das tradições, pesando a oiro fio os amuletos de sua fé e as flores de suas virtudes. E quando, depois de ter mergulhado e remergulhado, surge à tona, emergindo à luz das ribaltas, é ela quem vasa com o estilete da ironia as impurezas, os detritos, os vícios, as taras, as imperfeições e os pezes, na bem-intencionada faina de purificar e engrandecer a alma de sua raça.

Todos os teatros nela tiveram o primeiro berço, e as alvíssaras da glória. Plauto, com ela fundou o teatro latino, na língua dos deuses, na frase de Varrão, e de sua obra diz-nos, ainda hoje, o epitáfio que a comédia, a prosa, os versos, os jogos, o riso e o amor, de luto, e a chorar, gravaram sobre sua lápide:

Postquam est morte captus Plautus
Comœdia luget, Scena est deserta,
Deinde risus, Ludus, Jocusque et Numeri
Innumeri simul omnes collacrimarunt.

Na evolução do teatro o decorrer dos séculos, o tecer das aranhas lentas do tempo, o defluir das heranças através das gerações vão, aos poucos, criando o apuro das indagações psíquicas, dos exames introspectivos, das análises subjetivas, dos inquéritos e das perscrutações morais de toda a espécie. Nossa civilização não alcançou aquele apuro. A vida, afora talvez ligeiro tumulto federal, corre-nos serena, tranqüila, blandiciosa, abundante nos celeiros da província, com frutos nativos e terra dadivosa. Não se compreende, pois, que o teatro, reflexo do meio e da civilização, venha pôr-nos em cena embates, conflitos, desequilíbrios morais e sociais que devemos pedir por empréstimo a outros povos, para fingir requintes e vícios iguais ou maiores do que os deles. Para tal teatro temos apenas os trezentos de Gedeão, que mal bastam para dez ou doze récitas anuais das companhias francesas, por alguns apenas preferidas porque trazem os últimos modelos da moda feminina...

Faltam-nos para ele público e conseqüentemente atores. Um e outro só se formam com o teatro-escola, que é função dos governos. Teatro-escola, e não as simples escolas dramáticas, como a que heroicamente dirige, com desvelo raro, o espírito inigualável de Coelho Neto, sem verba para imprimir um programa!

Teatro-escola com prosseguimento no teatro subvencionado, constituindo assim uma carreira, uma profissão certa com a finalidade prática dos cursos universitários. A França, e não vos é isso novidade, subvenciona três teatros em sua capital, afora outros, para o aperfeiçoamento da cena dramática. E exige-se que por simples jogo de fadas, sem auxílio oficial, ou, antes, ratinhado e espoliado pelo fisco, que faz da arte dramática fonte de gordas rendas, nosso teatro surja com inteira perfeição, no mesmo nível do teatro europeu!

O que temos feito equipara-se, sem deslustre, ao teatro das civilizações equivalentes. E a prova disso é que muitas de nossas peças estão sendo incluídas em repertórios estrangeiros. Aqui, entretanto, ficam vazias as poltronas do Municipal, ainda mesmo que pagas, – o que é expressivo – nas récitas de assinatura em que se represente peça nacional de mais alto entono. Nosso teatro não pode, pois, ser mais do que é, expressão da alma popular, sincero, risonho e despreocupado.

Com muita precisão, disse um de vós, Amadeu Amaral, numa crônica a respeito desta eleição: “É bem verdade que ainda não temos nenhum Ibsen, mas como é aqui, no Brasil, que a Academia tem de escolher seus membros, contentando-se com a prata de casa, não se deve levar a mal que ela não vá pedir ao Sr. Gabriel d’Annunzio para nela representar o teatro nacional, nem ao cardeal Mercier para nela representar as letras religiosas.”

É nobre e generoso, Senhores Acadêmicos, o exemplo que dais de aplauso e de encorajamento a nossas letras teatrais. E a sucessão que me confiais eu posso recebê-la sem maior vexame do que o de minha obscuridade, porque Vicente de Carvalho me prejulgou digno dela quando, em eleição anterior, me deu o voto. Resta que o público vos siga o exemplo, e ajude-nos a florescer o teatro, historiador seguro e imparcial de nossa civilização confidente de nossas alegrias e de nossos pesares, o espelho, enfim, de nossa alma irrequieta, febril, ansiosa de progresso, pletórica e voluptuosa, capaz de todos os triunfos, e de todas as formas de beleza, e que se abre no esplendor mágico de nossa natureza, grande, formosa, inebriada de sol e apassamanada de matizes como a vitória régia nas águas nemorosas e triunfantes de nossos grandes rios.

*  *  *

Foi justamente do culto de nossa natureza e costumes que tirou Vicente de Carvalho as belezas do rimário que, muito cedo, lhe desabrochou da alma. Aos 18 anos, em 1885, publicou seu primeiro livro de versos, Ardentias, e quatro anos mais tarde, o segundo, Relicário. Era, então, um lírico apaixonado que fazia a seguinte profissão de fé:

Prefiro o obscuro rouxinol mavioso da Menina e Moça aos pavões bizarros do parnasianismo. Já o nosso grande Musset, que os contemporâneos acusavam de não saber fazer versos, dizia que

                                                                “... les oiseaux
Qui sont les plus charmants sont ceux qui chantent faux.”

Não compreendo a arte que faz da beleza da frase o valor exclusivo do verso. A poesia moderna – isto é, a parnasiana – faz-me lembrar os manequins destinados ao reclamo dos alfaiates: por fora, desenham-se as formas corretas da roupa bem talhada, dentro, dorme um pedaço de pau toscamente ajeitado ao feitio do corpo humano. Entretanto, não defendo o desleixo da forma. Penso que a frase, como roupagem que é do pensamento, deve ajustar-se-lhe com elegância e correção. Apenas não quero que por amor ao apuro casquilho se faça da poesia o manequim do verso...

Entretanto, ainda que se declarando infenso ao desleixo da forma, seus primeiros livros apresentam tais defeitos de linguagem que o próprio poeta deles fala quando, mais tarde, em 1912, reuniu no volume Versos da Mocidade os que lhe pareceram aproveitáveis das Ardentias e do Relicário, depondo no prefácio:

A todos eles fez o autor, tanto quanto lhe foi possível, as modificações precisas para os limpar dos defeitos de forma que os desfeiavam, e que entendiam particularmente com o respeito que se deve à língua em que se escreve. Em matéria de linguagem, e de regras em geral, o autor foi, na mocidade, um revolucionário entusiasta, como o comum dos moços, e até mais, talvez. Afigurava-se-lhe a gramática portuguesa em muitos casos apertada tirania exercida ilegitimamente sobre o falar brasileiro.

E atentem bem neste fecho: “era muito de moda naquele tempo – isto é, há 40 anos atrás – o jacobinismo literário, ou, mais precisamente, filológico”.
Vê-se, portanto, que o horror à gramática, à sintaxe e ao estudo, é sintoma de passadismo mais passadista do que nós mesmos, filho da preguiça e neto da tolerância, e nem, ao menos, originalidade imprime aos programas “marinetistas” de hoje.

Não havia, entretanto, naquela época o selvagem prazer a que se dá o sadismo da pseudocorrente literária ultramoderna de destruir tudo o que o passado nos herdou por modelos de ritmo e de beleza, desarrimando-nos a alma dos firmes esteios em que se ela arquitetou, e nos quais se abordoa com a disciplina das tradições, na cadeia do sangue, na perseverança da crença. Não havia o furor vazio de auto-singularidade, de exotismo e de escândalo, de sinos, de sinetas, de reco-recos, de bumbos, de pratos, de trombones e de saxos, o delírio de disfonias e de anarquias que Carlos de Laet definiu “como uma confusão de guizos, chocalhos, matracas e maracás, instrumentos bárbaros que imitam o coaxar das rãs, o silvo das cobras, o pipocar das girândolas, o estouro das minas, os miaus das onças e os berros das feras enraivecidas”. E por felicidade do ilustre mestre da graça ática, não lhe chegaram aos ouvidos as orquestrações de fundos de caçarola e frigideiras, de cacos de louça, e de quantos apetrechos mal ressonantes se servem às orquestras renovadoras dos ritmos, cujos executantes, ao alto dos coretos, substituindo as frisas elásticas, gingam o corpo, a contorcer-se em horríveis esgares, a saltar e rodopiar sobre si mesmos, picados por infernal tarântula, intercalando na música gritos e guinchos agudos, sacudindo os instrumentos, encompridando-os e encurtando-os, como se bombeassem de dentro deles a fúria epiléptica...

E não pára aí a loucura da disfonia. Da Europa ainda agora nos anunciam a criação da música do hiper-prisma, com o acréscimo de revólveres, metralhadoras, claps-claps da China, gaitas de fole, malhos e bigornas autênticas!

Mas isso não passa, Senhores, de momento efêmero de carnaval. Não se perderão as serenas tradições, porque para elas há, em todos os tempos, a família dos solitários de Port-Royal, que, como esta ilustre companhia, se sabe conservar, na frase de Victor Hugo, ao serviço das altitudes da inteligência e da fé. Port-Royal nada queria, nada pedia, nada ambicionava. Vivia na sombra do mundo e na claridade do espírito, a dois passos da Versalhes de Luís XIV, que deslumbrava o mundo. Um dia a força de destruição, que, como os movimentos sísmicos, periodicamente agita as sociedades, penetrou-lhe os umbrais. A casa foi destruída, os alicerces exorbitados, os túmulos violados, os campos desolados, e Port-Royal desapareceu sob as lavouras novas que o mercantilismo planta nas cinzas do ideal e da fé. Mas as sementes que Port-Royal havia deixado nas almas não tardaram a reflorir, porque não há força de cataclismo que as possa alcançar no seguro refúgio do sangue de uma raça. Port-Royal continuou a existir na fé, na arte, nas letras, na ciência. Tudo em Port-Royal foi destruído, pilhado, saqueado, incendiado, tudo, tudo, menos Port-Royal!

“É que eles, diz Victor Hugo, caminhavam para seu ideal cheios de vontade única e de fé profunda.”
Esta vontade única e esta fé profunda dão sublimidade às idéias e santidade às ações. Acusar de decadência uma época porque cultua aquelas virtudes, e nelas se exalta, é negar à fé e à vontade suas raízes mais robustas, abeberadas na experiência do passado, no aperfeiçoamento gradativo do esforço, na seriação lenta mas segura do raciocínio. Que espécie de jacobinismo malsão é esse que acoima de decadência a fidelidade aos modelos clássicos em que se vazaram as belezas estilísticas de nossa língua, o amor das glórias, as maiores que têm cabido nas idades menos remotas, dessa raça fulgurantemente coberta de louros e de cicatrizes inesquecíveis pela batalha de todos os grandes ideais, desse Portugal que nos desvelou a infância no mais majestoso de todos os berços reais, forrado com as brancas velas de suas naus, coberto com as bandeiras aurifulgentes de suas conquistas, à sombra de uma cruz que se tornara, pela força do heroísmo, num estelário de feitos de arrebatadora bravura?
Nunca se pode acusar uma época corrente de decadência, pois não se sabe se os tempos seguintes serão melhores ou piores. Nossos sucessores, e só eles, poderão avaliar da força de nossa vontade e da eficácia de nossa fé. O drama humano é, apenas, mera sucessão de acidentes. Não tem, como a tragédia cósmica, o fenomenalismo fatal do peso das massas, da atração dos volumes e das outras determinantes dinâmicas.

Nossa vida é cadeia que se não interrompe de avôs a netos. Nós não somos nós mesmos. Dentro de cada um, e independente, vive um pedaço do passado que é respeito, amor, superstição, piedade. Em 1830, quando o Romantismo deu batalha ao Classicismo, e assaltou as academias, e varejou os museus, e vaiou e apedrejou Racine, pregou, também, a guerra contra a decadência. A escola romântica durou, porém, menos de meio século. Nova geração rebentou-lhe à frente, e assaltou-lhe, por sua vez, as academias e garotou nas cercanias dos institutos, e vaiou, e apedrejou. E os revolucionários de 1830, já encanecidos, passaram a pedir respeito à velhice, aos dogmas, aos princípios, porque a velhice, os dogmas e os princípios eram, agora, eles...  Pode-se asseverar, portanto, que o grupo que hoje apupa os modelos clássicos virá sentar-se amanhã nestas poltronas, e pagará então a dívida de hoje.

A fórmula literária não é mais que o instrumento biossocial de uma época, nascida de uma agonia, reverdecida numa juventude, para se extinguir numa velhice, no círculo fatal que se ajusta à vida das idéias e à vida das pessoas. Mas ao defluírem as águas nos cursos normais, deixam para trás cristalizações definitivas que são o passado, no que tem de adquirido e de fundamentalmente estável. Quando nos grandes temporais as águas se revolvem e se revoltam, se reptam e se revidam, se recontram e se ressoltam, se reptam e se retorcem, se retraem e se retravam, e no furor da bravia revolução abre a espumarada no ar o branco jardim das novas núpcias, parece que o presente dominou o passado, que, no ar, no espaço, no mundo, no universo se subvertem todas as noções, se despencam todos os princípios, ruem fragorosamente todos os ídolos.

Mas os temporais passam. As águas amansam-se e ajeitam-se, amaream-se, amortecem-se e amoucam-se, anistiam-se e amesinham-se, ameninam-se e ameigam-se e, finda a procela, os náufragos que se debatem sem norte e sem fanal se vão socorrer ao rochedo que, então, reaparece, sereno, inflexível, inelutável, e inamovível. É o rochedo imortal da tradição que revive dentro do mistério do sangue, da herança, das religiões e das raças. Mas as revoluções são, ao mesmo tempo, úteis. São o arado que corta a terra empedernida dos dogmas e oferece novas superfícies ao sol da razão, fazendo surgir do subsolo da rotina a vida oculta que, eternamente, renasce. Não desapreciemos, portanto, o esforço desordenado mas entusiasta da nova geração. Ela cumpre um destino, realiza uma fase, determina um período na evolução que as rodas pesadas dos carros de guerra prometeram à terra, arroteando-a, e ao homem, virilizando-o. Que é a guerra senão a disciplina da destruição? Tudo nela se alia, se conjuga, se aparelha, se engranza, se coordena pela ordem e pelo método para espalhar a desordem, a ruína, o incêndio, a morte, o aniquilamento.

É a construção que se arma para a destruição, o paradoxo de ferro e aço para transformar o tudo em nada! Sua disciplina de desorganização implanta-se como segunda natureza no ânimo guerreiro, e tanto aí se aninha que, terminada a refrega, arrasadas as cidades, devastados os campos, minado o solo, ensangüentados os rios, enfumaçados os ares, ensarilhadas as armas, cessada a guerra, persiste ainda. Atacam-se, então, os princípios. A longa contenção da disciplina, ao desafogar-se do arreamento e dos correames bélicos, tenta desoprimir-se, igualmente, da disciplina moral que se consubstancia nos princípios, nas fórmulas, nas religiões, nas estéticas, nas filosofias. É agudo ulular de instintos desaçamados, fase de confusão psíquica e de predomínio voluptuário, de inversão de valores em que a farândula de novos-ricos avieirados de improvisadas nobrezas se substitui a todas as noções que os séculos armazenaram.

Mas dentro deste caos sente-se que os espíritos de eleição não se satisfazem com as fórmulas que a guerra envelheceu ou desautorizou. O Naturalismo fatiga-os, o Parnasianismo entedia-os na impassibilidade de seus modelos de mármore e de bronze. Querem movimento, agitação, impulso.

Prui-lhes a alma a ânsia dinâmica. Os futuristas, os cubistas, os dadaístas, e todos os “istas” que se sucedem sem se fixar, são o vespejar ainda incerto daquele impulso, à procura de sítio onde possam instalar a colméia. Por enquanto apenas se vê, de positivo, a terra revolta. O semeador virá? Sim, que virá. Qual será a nova semente, a nova arte?  Quem o sabe? Neste momento o que se apresenta é literatura dos instintos, sexual e concupiscente, sem nenhuma elevação, insaciada por insaciável, de licenciosidade que não pede meças a Catulo, a Marcial ou a Aretino, e que se vende, entretanto, às centenas de milhar. É ela que dessexualiza a mulher, a acamarada a seus vícios, lhe masculiniza as vestes, lhe apara os cabelos à moda das penitenciárias e dos presídios, lhe mete uma cigarrilha garota à boca, uma picada de morfina na pele, um gingar de marujo no passo, uma cartola na cabeça e uma concepção anárquica no cérebro...

Esperemos, entretanto, que à proporção que se reconstruírem as cidades, que se reconstituírem os templos, que se repovoarem os lares, se recomponham, também, as artes, aproveitando-se os alicerces da tradição clássica.

A mocidade que tenta destruí-la, ou dela emancipar-se, e que lhe assalta as amuradas das academias e dos institutos, pretende, com ingênuo esforço, derruir algumas centúrias de conquista lenta e segura. A tarefa é ingente mas digna, até certo ponto, de um sorriso de indulgente admiração, pois atesta que não atravessamos fase de decadência, se os mais moços de nós, a adolescência que apenas embarbece tenta a empresa simplesmente homérica de destruir dezenove séculos e pico de formação espiritual com um shoot de foot-ball!

Voltemos, porém, à vida literária de Vicente de Carvalho, que, iniciada com Ardentias e Relicário, se interrompeu, em 1894, com a conversão do poeta ao positivismo, “num brusco movimento de entusiasmo juvenil”, como ele próprio o classificou. Pareceram-lhe, então, os versos que fizera indignos da alta concepção do mestre, e, julgando-se incapaz de atingir a perfeição, abandonou a lira. O positivismo veio reproduzir em nossas letras o colapso filosófico de que foram elas acometidas na evolução do Romantismo para o Naturalismo, depois dos imprevistos luminosos da intuição de Tobias Barreto. Mas o que o poeta procurava no positivismo, ele não lho podia dar, isto é, a certeza.

Preocupada, apenas, com os processos de investigação, a filosofia de Comte não se consolidara com o contrastar imprescindível da teoria da prova, que é a lógica. Cinco anos bastaram-lhe para se desiludir e voltar às letras. Antes de passarmos a período ulterior, detenhamo-nos um momento junto à obra do adolescente. Seu desprezo à forma era absoluto; apenas o preocupava a idéia. Musset encanta-o, mas o Musset, como já vimos, para o qual o pássaro que canta melhor é o que desafina, o Musset apenas impressionista, que galopava livremente através da gramática e da prosódia, sem amor à rima e à ênfase, na frase de um de seus críticos, e não o que mais tarde, jugulando-se e disciplinando-se, dava a sua arte a estabilidade das formas imperecíveis, e ia bater o mea culpa às portas do sufrágio da Academia, conquistando votos como o de Ancelot, que ainda nas vésperas da eleição dizia ao editor Charpentier: “Esse pobre Alfredo é rapaz amável e homem de sociedade, mas, coitado, nunca soube fazer um verso!”

O primeiro Musset era “o rouxinol céptico e licencioso” de Vitet, o poeta da mocidade, o trovador da Ballade à la lune, o Musset da grisette e do primeiro muguet de maio, que, na crítica de Heine, nunca mentia, traduzindo, apenas, seus sentimentos, e que não era admirado, mas amado. Musset embriagado de vida, devorado pela sede dos prazeres – como Catulo na sua vila de Sírmio, coroado de pâmpanos e de louros, a esgotar nos lábios de Lésbia a taça doirada de falerno – era uma imagem sensual de paganismo que seduziu, empolgou, dominou a sociedade, enquanto o Musset da Malibran, e de Les Nuits, – soluços ritmados, lágrimas de elegia fundidas em diamantes raros, choradas por deuses infelizes, a mais alta sublimação da poesia – esse apenas vivia e vive no culto dos que sabem a arte e a entendem. E entre estes alistou-se, depois, Vicente de Carvalho, que, extintos os fogos da juventude, cristalizou, como Musset, em forma mais pura o esforço mais perfeito, as maravilhas de sua inspiração.
Em seus primeiros versos nota-se ainda a influência bironiana, que vanguejava, então, nos últimos lampejos. A melancolia artificial do fim do século passado cobria-lhe, às vezes, de crepe a lira, a melancolia de Ossian cultivada no lirismo sentimental de Lamartine.

Não se compreendia um poeta alegre, bem nutrido, bem calçado, nem deidade que tomasse regularmente as refeições. No restaurante do luar servia-se a estas uma gota, apenas, de rosicler na corola de um nelumbo, e àqueles, uma lágrima de mulher vertida na taça de ônix do crepúsculo. Os pobres bardos, com refeição tão escassa, viviam madrigazes, escaveirados, ganindo de fome e de tristeza... alimentados, apenas, de ideal.
Ouvi estes versos de Vicente de Carvalho naquela época, quando o poeta tinha menos de vinte anos:

Tu que és forte, rebrame em fúria, Natureza!
Eu, caído num fundo abismo de tristeza,
Invejo-te a expansão livre do temporal;
E no tédio feroz que me assalta e me toma,
Sinto ansiarem-me na alma instintos de chacal...
E compreendo Nero incendiando Roma!...

E tal tédio podia lá ser naquela época de alegres estudantadas, que alarmavam o ambiente provinciano da Paulicéia acadêmica com as ruidosas cervejadas do Corvo, as serenatas românticas, as atitudes à D’Artagnan ou à Dom Quixote, a capa espanhola e o chapéu desabado, de que ainda aqui vos podem dar notícia Augusto de Lima e Coelho Neto, da mesma geração do poeta, e de Raimundo Correia, Valentim Magalhães, Dias da Rocha, Pedro Lessa, Raul Pompéia, Teófilo Dias, plêiade brilhante que fazia vibrar as arcadas do casarão conventual do Largo de São Francisco com o trinçar e retrinçar de seus sonhos, que iam e vinham com a ronda das andorinhas de estação a estação?

Nem aquele tédio era crível, nem o satanismo baudelairiano de Wenceslau de Queiroz, que representava, então, o pólo oposto da poesia acadêmica. Encontravam-se, ambos, Nero e o diabo, e em alegre camaradagem iam comer m dos célebres bifes da Sereia, tão macios que se não se levava conta na força que se dava à faca cortava-se o bife, e o prato...
A natureza meiga e finalmente afetiva de Vicente revelava-se nas suas deliciosas Cantigas:

Sobe o sol?  A noite desce? 
Dia ou noite são-me iguais:
Quando chegas, amanhece,
Fica noite, se te vais.

Sei que há roseiras viçosas
Porque, com os olhos em ti,
Vejo cobrir-se de rosas
Um lábio que me sorri.

Seja abril ou junho, quando
Eu estou à tua espera,
Assim que tu vens chegando
Principia a primavera...

O amor ao mar, o oceanismo que mais tarde deve ser a nota predominante de seu plectro, já na primeira obra se prenuncia com Beira-mar, Olhando o mar, e Marinha, a pesca das tainhas em Santos, quadro de colorido magistral, iluminação exata, figuras admiravelmente traçadas, dinamismo palpitante, uma das mais interessantes páginas de nossa poesia descritiva.

A par desses primores, peralteava-lhe, às vezes, a fantasia em versos pitorescos entremeados em assuntos delicados, como os que se seguem, tirados de um “Madrigal”:

Amanhece. No céu desestrelado
      Raia o sol de janeiro
Rubro como um inglês enconhacado...

Terçava, às vezes, no verso como na prosa, as armas do humorismo, não sendo essa, que por sinal muito apreçava, a feição mais feliz de seu espírito.
Para fechar a notícia da primeira fase de sua vida literária, vou ler-vos a “Velha Canção”, paráfrase de Hugo, que vos dará idéia da delicadeza de sua alma quando não se tomava dos furores delirantes de um Nero de vinte anos:

Nunca eu pensara em Rosa. Ela tinha vinte anos
Eu, quinze. Uma manhã deu-me ela o braço, rindo,
E ambos, rindo, a palrar, fomos leves e ufanos,
Campo em fora, a vagar sob o azul do céu lindo.

Muito senhor de mim, sereno, eu caminhava
A seu lado, a falar, com distraída voz,
De que? Nem sei. De mil nadas. Ela escutava:
E o seu olhar azul me perguntava: E após?

Tentando ela apanhar um jambo num jambeiro,
Prendeu-se lhe no galho a manga; e, arregaçada,
Pôs-lhe indiscretamente à mostra o braço inteiro.
Ela corou. Eu ri. Ela sorriu. Mais nada.

Insinuando-se entre a emaranhada alfombra,
Um córrego rolava espumas furta-cor.
Em roda, a natureza adormecera à sombra
Cheirosa e tutelar das árvores em flor.

Com um ar de criança, ela, rapidamente,
Descalçou-se... Eu sentei-me, à toa, no barranco;
Pus-me a olhar o regate, e na água transparente
Vi um pé pequenino alvejar, muito branco...

Voltamos. Rosa vinha apoiada a meu braço.
Absorta, mal dizia um sim ou não banal.
E eu achava-lhe um ar estranho, de cansaço
Ou desânimo... Um ar diferente, afinal.
Já nem sabia mais o assunto em que falar-lhe.
Caminhava ao seu lado, acanhado e indeciso.
Vendo-a, às vezes, sorrir, e, às vezes, borbulhar-lhe
Um suspiro através das rosas de um sorriso.

Fomos andando assim. Chegamos, está visto.
Ao separar-nos, Rosa, estendendo-me a mão,
Disse-me: – Bem, adeus! Não pensemos mais nisto!
...E é só nisso, afinal, que eu penso desde então.

Ressalvando-se a linguagem e as extravagâncias muito da época de seus primeiros versos, neles se anuncia o poeta vigoroso que, vinte anos mais tarde, “reduzido pelo tempo a idéias menos radicais”, lançava segunda profissão de fé nestas palavras:

No verso, as idéias e as expressões fundem-se, e não há meio de as separar. Não creio que haja poetas de forma, e poetas de outra espécie. Não sei de poeta digno desse título que valha por obra em estilo atamancado, e não exprima na língua de oiro dos versos que ficam, idéias e sensações. Em todos os tempos os versos que ficaram são os que têm a eternidade da perfeição.

Era sua conversão ao Parnasianismo que tanto guerreara. Daí por diante pode-se dizer que adotou a definição de Desmoulins, de que um verso nunca é bom quando pode ser melhor, e limitando a produção, procurou, apenas, aprimorá-la em edições sucessivas.
Dizia Sainte-Beuve a propósito de um poeta francês:

Em poesia, podem-se lançar e perder muitas flechas. Basta, para glória do artista, que algumas delas alcancem em cheio o alvo, e façam ressoar toda a árvore profética, o carvalho de Dodona, nela se cravando.

Se bem que os carvalhos que circundavam o templo de Zeus, em Dodona, fossem muitos, e que vibrassem profeticamente não com flechas mas com o dedilhar das brisas, admitamos as flechas para dizer das desferidas por Vicente de Carvalho na fase do amadurecimento de seu estro nenhuma se perdeu. Poemas e Canções, o volume que encerra o mais precioso de sua produção, é estojo opulentíssimo de jóias tão bem lapidadas como as dos ourives célebres de Ponte Vecchio.
Pelas galas do espírito, pelos recamos e afeites das imagens, pela plasticidade do verso, pela melodia dos ritmos, pelo harmonioso dos desenhos e pelo impressionismo do colorido, como por suas graças castiças e simpleza ática, é livro que por si só sagra um poeta.

Seus painéis são variados, da ingenuidade à grandiloqüência, ao épico, e ao sublime, que é atingido sem o gongorismo dos retóricos ou as interpolações dos didatas. Seus versos, entretanto, como o poeta confessa, custavam-lhe grande esforço. O que neles parece simplicidade é tortura de esmeril e de lima, mas tortura que encontra a forma definitiva sem se trair, sem se entremostrar, dando-nos a impressão de que o verso brotou espontâneo na modelagem perfeita. Falam-nos eles, às vezes, à sensibilidade como suaves frescos e encaustos no ambiente nostálgico de vetustas naves, cujos muros malferidos pelo tempo a hera religa, recompõe, cicatriza com suaves bálsamos e verdes óleos, a cerzir carinhosamente com a flor de sua mocidade o triste e descosido coração de uma velhice. Ungem-se outras vezes de misticismo, como nestes versos:

Maria! Nome tão doce,
Nome de santa... Parece
Que o digo como se fosse
O resumo de uma prece.
Tem tão mística doçura
Abre asas à fantasia:
Maria! – o lábio murmura,
E a alma ecoa: “Ave-Maria!”

Evocam-nos, então, a meia-luz das igrejas claustrais onde a própria sombra parece monja estendida no lajedo a soluçar um pecado de amor, e as notas lentas do órgão rebanho triste de monges que atravessa a nave a desfiar as contas de seu rosário...

São, outras vezes, velhas cerâmicas que decoram com seus tons azuis um muro encastoado em trecho de paisagem. Ou ainda esplendem de colorido, como céu primaveril que se desdobra em longo veludo, no qual se expõem jóias de raro fulgor, coroas de constelações, adereços de rútilas estrelas, e as pérolas raras que se aleitam nas nebulosas.

Do campo vasto de sua imaginação pode-se dizer o que dizia Latino Coelho da Hélade: cada colina tinha sua oréade, cada rio uma náiade, cada arbusto uma dríade, cada angra uma nereide, cada burgo um epônimo e uma história, cada pedra um mito ou uma tradição, e vivia a natureza a sorrir o riso dos deuses, e eram os valos frescos e umbrosos, as montanhas pitorescas, as veigas férteis, o mar cerúleo, o firmamento límpido e anilado. Sua concepção estética é a natureza, sem outra filosofia além de seu próprio panteísmo. No meio dela, ao vê-la ensolarada, ou velada pelas sombras do crepúsculo ou envolta no negro manto da noite, ao sentir-lhe o hálito sadio, a carícia das brisas, o perfume das flores e dos frutos, ao deliciar-se com a variedade cromática dos painéis, dos vales alfombrados de redolentes arbustos, das florestas de balbutir misterioso, das montanhas de imponente destaque, das colinas empampanadas de verdes festões e doirados racimos, ao contemplar-lhe todas as maravilhas e ao embeber-se de todas as suas belezas, o poeta entrega-se à inércia sensual, que não indaga, não analisa, não inquire de origens ou de finalidades.

É nesta inércia sensual, neste panteísmo dionisíaco que vige e viça a poesia de Vicente de Carvalho. E seu próprio ateísmo, que o levou à célebre polêmica com o padre Sena Freitas, para defender a memória do amigo e do escritor, de Júlio Ribeiro, a cuja agonia se quis emprestar rumorosa conversão ao catolicismo, seu próprio ateísmo, dizíamos, não é mais do que o resultado da mesma inércia. O poeta receava perder as riquezas da contemplação se levasse aos olhos as lentes da análise. Sabia que as religiões nasceram da contemplação, para com elas nascer a filosofia, a par desta os sistemas teológicos que se reuniram pelo neoplatonismo, e depois pela escolástica, para matar todas as belezas pagãs, e construir um mundo triste, que se gera na dor, que vive na dor, e na dor se sepulta.

Não queria ir além da contemplação. Vivia extasiado diante de uma paisagem encantadora, paisagem que ele mesmo transplantara com suas mãos, desde a plantinha delicada que o impedia quase de respirar para não a fenecer com o calor de seu hálito, até a árvore secular, cujo peso e cuja majestade carregara em suas estrofes; desde o primeiro orvalho das manhãs de sol, que colhera em conchas nacaradas, e transportara com o passo de um atáxico, lambendo o solo com os pés de medo que se ele derramasse, até a matilha de maretas que desaçamara para perseguir a terra em flor, que “com o fito de escapar aos braços do oceano se escondia e ansiava atrás de cômoros de areia e de penhascos de granito”; desde o sargaço que “ao ouro leve do sol bubuia atoa” sobre as vagas até os barcos de pescadores, de velas enfunadas como o peito alvo das garças; desde o pequenino nada até o grande tudo, que em toda a natureza encontravam seus versos fonte de amor e de beleza.

Avaro de seu precioso gemário, do inapreciável joial que sua lira dessamoucara, facetara, burnira e engastara, guardava-o a sete chaves, como se guardam os grandes tesouros da terra. Temia o étnico de Estagira e o apóstolo messiânico. Temia que um ou outro lhe arrebatasse toda aquela riqueza de sonho que dormia descuidada a um canto do bosque, ou nas orlas do mar. Sua religião, entretanto, corria a cortina a todos os horizontes, transmontava alturas, vadeava rios, transpunha cordilheiras, vencia os mares e vazava as distâncias, porque sua fé que era a própria natureza estava em toda parte, e ia dentro de sua própria alma, inconsciente, apenas, das fórmulas e dos dogmas.
A paixão pelo mar acentua-se na segunda fase de sua métrica. Nas Palavras ao Mar, cujos primeiros versos

Mar, belo mar selvagem
De nossas praias solitárias,

ficaram em todas as memórias como os “verdes mares bravios de minha terra natal”, de Alencar, respira-se a frescura das brisas marinhas, o cheiro picante da salsugem. Suas ondas movem-se, acachoam-se, despedaçam-se nas areias da praia. Seus pescadores, desde a figura até o linguajar, são humanos, quase palpáveis.
São versos brancos que para Voltaire nasceram apenas da impotência de vencer uma dificuldade, e para Banville nunca poderiam ser versos, asserções que Vicente de Carvalho destrói com a exuberância, a harmonia, e a perfeição de seu ritmo.
Do mar diz Shakespeare que é infiel como as mulheres, e destas afirmou Catulo, castigado pela ingratidão de Lésbia: “o que diz uma mulher àquele a quem ama deve-se escrever sobre a onda fugitiva ou sobre as asas do vento”...

Nam mulier cupido quod dicit amanti
In vento et rapida scribere oportet aqua.

Se um não é justo para as mulheres, ninguém acoimará de injusto o que definiu as perfídias do mar. Vicente não as conheceu, entretanto. Era um pescador apaixonado, não platônico como Alphonse Karr, para quem a pescaria seria ainda mais interessante se não existissem peixes. Para os pescadores contemplativos o peixe deve ser o importuno que lhes perturba a abstração picando o anzol... Vicente, porém, não pensava assim. Pescava pelo prazer de colher o peixe.
Numa pescaria perdeu um braço, e outra foi a causa de sua morte.

Estivera horas e horas sobre um penhasco a pescar, em dia de tempo rude e hostil, indiferente à chuva e ao vento, lhe proveio a grave moléstia que o arrebatou dentre nós.
Era um exilado do mar e da floresta na civilização urbana. Em carta a um amigo assim se exprimiu:

Veste-me a pele branca o espírito desnudo,
Corre abundante em mim sangue de guaianás,
Simples, rudimentar, insubmisso, incapaz,
Ai, no fundo não sou mais do que um bugre, eis tudo!
Que porventura herdei de algum avô beiçudo.

.......................................................................

Imagina esse filho inculto da floresta,
Que ama o céu porque é belo, e ama o sol porque luz,
– Perdido na cidade ignóbil e funesta,
Cheia de sombra e pó, caiada e desonesta,
Velha Aspásia, garrida, e a desfazer-se em pus.
Referindo-se, em seguida, na mesma carta ou confissão íntima, à magistratura, de que foi um dos luminares, define-se:

Alma apenas capaz de adejar, fugidiça,
Em vôos leves de uma asa de beija-flor;
E obrigada a pairar nas regiões da Justiça
Como um corvo que sobe ao céu, todo esplendor
Para, do alto, melhor lobrigar a carniça...
Ai, a alma do tupi, bem mal domesticada
A macaqueação cabocla do europeu,
Conserva, forte e viva, a angústia de exilada
A saudade fiel de tudo que perdeu,
Da floresta nativa, ausente e devastada.

Costumava Vicente de Carvalho contar a seguinte passagem, que aplicava a seu modo de ser. Ao despedir-se o General Couto de Magalhães do chefe de uma tribo de caiapós do Amazonas, que o hospedara em sua taba, convidou-o a vir morar no Pará, enumerando-lhe todas as comodidades que aí encontraria, caminho de ferro, bondes, luz, telefone e mil outras. O índio pensou um momento e respondeu:

– Não vou. E o melhor é o senhor ficar aqui, onde não se precisa de nada daquilo!
Vai longo, porém, este louvar, e há tanto que dizer! Como deixar, entretanto, de me referir ao “Pequenino Morto”, jóia delicadíssima de sentimento, a seus admiráveis sonetos de cunho camoniano, aos fragmentos da Arte de Amar, de suave lirismo e que ficou por concluir, e a muitos outros lavores primorosos? Não posso, igualmente, calar minha grande, minha profunda admiração por “Fugindo ao cativeiro”, que é para mim, fraco entendedor de versos, e incapaz de os fazer, a página mais vigorosa, mais robusta, mais extraordinariamente batida e mais imperecível de todo seu rimário, porque é profundamente nossa, profundamente humana, arrancada da mais dolorosa das tragédias nacionais.
Nossos poetas, com poucas exceções, como a de Castro Alves, quando quiseram tentar a elegia e a poesia épica, pediram a terras estrangeiras, a história estranha, os motivos de seu carpir e de seu arroubo. Vicente de Carvalho conseguiu dar-nos uma tragédia hugoana, um drama de raça, sem sair das fronteiras de nossa história, tão rica de epopéias ignoradas, e no-la deu dentro do incomparável cenário da selva virgem, ainda ressoante do heroísmo guerreiro das tribos indígenas, do rechinar das flechas, do estridor e alarido dos conclamas bélicos, do ulular dos borés, do trapezape dos tacapes, do cascavelar dos maracás, dos rinchos e bufidos das feras, em imortal alto relevo gravado com o bronze da carne negra dos escravos no bloco de verde mármore da floresta soluçante, cujos rios transformou em lágrimas desesperadas a jorrar de pálpebras de granito. É uma das poucas e comoventes messenianas que temos em nossa poesia. Além da riqueza dramática das cenas, e do vigor das rimas, há ainda a considerar o apuro da propriedade de expressão, como neste verso:

Muge na sombra a voz rouca das cachoeiras

que nos dá, na simples palavra muge, impressão auditiva exata do longínquo ruído das águas. Esta cata do termo exato e original depara-se nos a cada passo na obra de Vicente. As rajadas descabelavam as maretas, as ondas coaxavam, o marulho gorjeava tristemente e outras formas de dizer igualmente originais abundam em seu verso e em sua prosa.
Acerca da obra de Vicente de Carvalho disse nosso ilustre presidente,1 em uma de suas, como sempre, brilhantes páginas:

Quando se enumeram os grandes poetas que apareceram entre nós no último quartel do século passado, cita-se Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Olavo Bilac. É a trindade gloriosa. No entanto há nela uma injustiça. Por que não se aponta poeta da mesma geração e de igual valor, Vicente de Carvalho? A designação de trindade não se oporia à entrada de mais um nome, malgrado todos os protestos possíveis da matemática porque os famosos três mosqueteiros de Dumas eram, também, quatro...

Mas tal injustiça, se essa trindade resumisse, na opinião da crítica, as glórias poéticas daquele período, seria igualmente notória para com outros da mesma geração, como Luís Murat, que ainda hoje ilumina esse recinto com as cintilações de seu espírito, ao lado de Alberto de Oliveira, esse tipo heráldico de príncipe, nobre no porte, no gesto, no olhar, na voz, com distinção tão própria e tão imponente que suas maneiras deslembradas de artifício têm vagares solenes de rituais, e que, se não fosse tão alto de porte, e não sobrasse em altura de alguns decímetros à medida, seria em pessoa um dos mais belos de nossos alexandrinos.

Mas injustiça não existe porque todos aqueles nomes andam entrelaçados na admiração nacional.
Vicente de Carvalho foi um pouco de tudo, além de poeta. Foi advogado, foi magistrado, tendo chegado a ministro do Tribunal de São Paulo; foi fazendeiro, e extraiu da Natureza, além do oiro da poesia, papel moeda de boa circulação; foi jornalista, e ainda perdura a fama do Diário da Manhã, na fase de sua direção; foi político, e chegou a secretário do governo de seu Estado; foi industrial, e dirigia ainda ao morrer importante empresa de viação; foi cultor de assuntos econômicos, e tem trabalhos publicados acerca da valorização do café; foi cronista, polemista, conferencista, e até mesmo, o que pouco se sabe, escritor de uma comédia para amadores, que se intitula Luizinha, e está publicada. Se bem que o epigrama não fosse o feitio de seu espírito, deixou-nos também alguns de acerado gume, como o seguinte, acerca do beijo das mulheres:

Lábios feitos de mel, de rosas ao sereno,
De céu do amanhecer franjado em rosicler
Entreabriu-os Satã; e, enchendo-os de veneno
Sorriu. Tinha inventado o beijo da mulher...

Dissemos que o humorismo não foi a feição mais feliz de seu espírito, mas, como os bons espíritos em tudo que lavram herdam bom fruto, também nele legou-nos Vicente algumas páginas deliciosas, como Crianças, que já foi lida nesta Academia por Humberto de Campos, e que reproduzo:
Era o dia de São José, daquele velho barbudo, calvo, túnica vermelha caindo dos ombros, nas mãos o cajado de amendoeira milagrosamente abotoado em flores, e que, desde longínquos avós de cuja memória já só ele restava, se mantinha como o santo predileto na devoção da família.

Era o seu dia, segundo a consagração do calendário. E ao fundo do oratório aberto, destacado, dominando de toda a majestade de sua estatura de dois palmos uma corte de pequenas imagens secundárias, com um ramo fresco de lírios aos pés, o santo resplandecia no clarão da vela benta piedosamente acesa em sua honra. Ali estava ele, iluminado e glorioso, o bem-aventurado carpinteiro de Belém, escolhido por Deus, como o mais puro entre todos os homens puros, para depositário e guarda fiel da predestinada, fecunda virgindade de Nossa Senhora.

Segundo uma tradição remota e que vinha, de geração em geração, transmitida de pais a filhos, a velha e encardida imagem recebia pontualmente todos os anos, naquele dia que o calendário lhe destinava, uma singela homenagem de veneração, de confiança e de amor, sob a forma de um ramo de lírios que se desfaziam em perfume aos seus pés, e de uma vela benta que ardia e se derretia em sua frente.
Os três pequenos, pilhando-se sozinhos, livres de qualquer intervenção adulta, tinham resolvido entre si dar uma busca ao interior do oratório aberto. Jorge, o mais velho, concebera a idéia e dirigiu a ação. Era já um homenzinho de cinco anos, chefe natural e terrível do grupo. Fecundo em planos e travessuras, ousado na execução, distribuindo com mão forte e pródiga despojos e taponas, Jorge era acatado e seguido.

Puxou vigorosamente para junto da meia cômoda, em que assentava o oratório, uma cadeira; ergueu para esta o Joãozinho, cujos três anos eram ainda incapazes, sem apoio e sem auxílio, de altas cavalarias como essa...

– Agora você! disse com voz de comando, dirigindo-se à irmãzinha; e ajudou-a a subir. Em seguida, cumpridos os deveres de chefe, Jorge subiu por sua vez, colocando-se atrás dos outros dois.
E os três, encantados, puseram-se a examinar a um por um os sagrados moradores do oratório.
Havia um São Pedro, com os olhos cheios de arrependimento de ter negado o Divino Mestre, fitando vagamente o teto. Tinha na mão a chave dourada com que abre às almas dos eleitos as portas da bem-aventurança; e, a seus pés, o galo tradicional, talhado toscamente, abria as asas desiguais, esticava o pescoço, um pescoço exagerado de cegonha, e repousava sobre a túnica azul do santo a crista quase quadrada.

Fronteiro a São Pedro, com o cordeirinho branco aos pés, a face rubicunda e moça, as pernas nuas até o joelho, São João apoiava a mão esquerda na longa curva do seu cajado de pastor, e estendia o braço direito num gesto majestoso de benção ou de prédica.

São Francisco, dentro do seu comprido hábito negro, tinha um ar de suave humildade, com os olhos baixos, o rosto inclinado para o chão e emoldurado por umas enormes, incríveis barbas cor de chumbo.
Completava a coleção das pequenas imagens uma pequenina Senhora das Dores, doce figura de mãe angustiada, com o punhal simbólico cravado no coração até o cabo, as mãos postas, os olhos aflitos e lacrimosos erguidos para o céu.

A primeira cousa que atraiu o olhar do mais pequeno foi o cordeirinho de São João:
– Um bicho – disse ele apontando com o dedinho esticado.
– Não é bicho – corrigiu Jorge – é carneiro.
– Ele morde?
– Não, – explicou o mais velho; – só dá chifrada.
– Mas ele não tem chifres! – interveio Vivi.
Jorge não gostou da objeção que infringia o respeito devido à sua autoridade em assuntos relativos aos animais. E retrucou:
– Tola! Ele dá chifrada com a cabeça.
Eu tenho medo dele – disse Joãozinho.
– Não é carneiro de verdade – assegurou Jorge. – Não se mexe. Quer ver?
Agarrou pelo pescoço o cordeirinho de São João, e puxou-o. A frágil massa partiu-se; e ficou solta na mão de Jorge a cabeça do animalzinho degolado.
E agora? – perguntou Vivi assustada. – Eu não disse?
Vivi, note-se, nada tinha dito àquele respeito.
Jorge, porém, era corajoso e resoluto; meteu rapidamente no bolso a parte arrancada do cordeiro, dizendo:
– Não faz mal, eu escondo. Ninguém conte, hein?
Pouco preocupado com aquele incidente, tão simples e tão vulgar, o despedaçamento de um objeto, Joãozinho olhava já atentamente para o galo posto aos pés de São Pedro.
– Que é aquilo? – perguntou, desconhecendo a figura mal feita.
– É uma galinha – explicou Jorge.
– Eu quero a galinha! – declarou Joãozinho.
– Não – acudiu Vivi. – Aquilo é do santo.
– Mas eu quero!
Jorge era generoso: arrancou e deu ao irmão o galo de São Pedro, com as pernas partidas, e sem crista, que ficara pregada à túnica azul do santo.
Vivi reparou na imagem da Senhora das Dores, por cuja face desbotada pela mágoa corriam lágrimas de sangue; e, comovida, perguntou:
– Por que será que ela está chorando?
Jorge replicou prontamente:
– Você não vê que ela está com uma faca enterrada no peito?
Coitada! – murmurou Vivi. – É melhor tirar a faca.
Jorge tirou a faca.
– Quem será o mau que deu a facada? – perguntou Vivi.
– Foi o barbudo! – opinou Joãozinho apontando para São Francisco.
Devia ter sido mesmo: São Francisco, com a sua longa túnica negra, as suas enormes, incríveis barbas cor de chumbo, era a figura mais feia da coleção.
– Com certeza foi ele! – concordou Vivi.
– Foi! – decidiu Jorge. – Pois vai de castigo.
E agarrando São Francisco, meteu-o, preso, no vão escuro entre o oratório e a parede.
Chegara a vez de São José, que jazia, no lugar de honra, ao fundo do oratório. Jorge, com a erudição pitoresca apanhada nas conversas em que a família, de quando em quando, comentava o padroeiro, começou a instruir os irmãozinhos:
– Aquele é o marido de Nossa Senhora, é o pai do Menino Deus. Mas o Menino Deus não é filho dele, é filho do Espírito Santo, que é uma pombinha.
– É uma pombinha que anda nas folias, em cima da bandeira – interrompeu Vivi.
– Eu já vi! –  disse com importância e orgulho o Joãozinho.
– Chama-se São José – continuou Jorge. – Dantes era carpinteiro; agora é santo. Quando o Menino Deus nasceu, apareceu uma estrela. Os pastores todos foram rezar. Foram também três reis. Um era preto.
– Um rei preto! – estranhou Vivi.
– Preto, sim. Na terra dos negros o rei é preto. Mas é rei.
– E as princesas?
– As princesas, não; que boba! As princesas são umas moças muito bonitas, com cabelo de ouro, e uma estrela na testa...  O outro rei mandou matar o Menino Deus...
– Por quê? – perguntou Vivi.
Jorge hesitou. Na realidade ele estava pouco a par das razões políticas de Herodes; mas não quis dar parte de fraco, e, depois de refletir um momento, respondeu a Vivi:
– Ora porque... Porque era um rei muito malvado.
– E mataram o Menino Deus?
– Não puderam, capaz! São José pôs Nossa Senhora com o Menino Deus no colo, em cima de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado; e todos três fugiram para outra terra...
Joãozinho, apertando na mão o galo arrancado a São Pedro, dobrara sobre a cômoda o braço, encostara a este a cabecinha loura, e cochilava, no aborrecimento daquela exposição de História Sagrada, que Jorge ia cosendo de farrapos. Mas à alusão de um burrinho muito manso, um burrinho ensinado, espetou e deu um aparte:
– O santo está sujo.
Efetivamente. O tempo e a fumaça da vela benta, acendida sempre, durante anos, no dia consagrado a São José, haviam encardido a imagem, desbotando-lhe as cores, envolvendo-a com uma poeira baça e gordurosa.
– É mesmo – disse Vivi reparando. – Está muito sujo. Coitado, é preciso limpar ele.
Jorge decidiu-se logo a limpar o santo. Fez descer da cadeira os irmãos, afastou as pequenas imagens, e o ramo de lírios. Agarrou com a mão esquerda a peanha, e com a direita o pescoço de São José. E, num gesto decidido e forte, tirou-o do oratório.
Daí a instante, São José estava no chão, sozinho, no meio do quarto, anulado e pequenino. Jorge trouxe uma bacia de rosto, larga e funda; e, enquanto vasava nela a água do jarro, ordenou a Vivi que trouxesse o sabão.
Sentaram-se os três. Joãozinho quis logo meter na bacia o galo. Mas Jorge suspendeu-lhe o braço, asseverando que não se põem as galinhas nágua, porque se afogam. E, segurando com todo o cuidado o barbudo, calvo, venerável São José, deu-lhe um mergulho.
– Agora, você! – disse ele, dirigindo-se a Vivi. – Mulher é que lava.
Vivi não se fez rogar. E, carinhosamente, pôs-se a ensaboar o santo.
Daí a momentos, na confusão das tintas que se desmanchavam, São José tinha a barba azulada, o rosto coberto de manchas, a sua calva, aquela austera calva tão lisa e tão lustrosa, aparecia salpicada de rubores que lembravam uma empingem.
Jorge reparou nisso; e ordenou a Vivi que lavasse melhor, com mais força.
Vivi esfregou com energia. A massa molhada começou a esfarelar-se.
– E agora? – perguntou Vivi assustada.
Jorge não respondeu. Tinha ouvido passos na escada. Era a mãe que subia, a ver, decerto, que faziam os três traquinas, tão sossegados havia tanto tempo. Jorge, muito ligeiro, nas pontas dos pés, escapou-se. Vivi seguiu-o logo, enxugando no vestidinho branco as mãos molhadas de tintas diluídas da imagem de São José. Joãozinho, então, sem reparar em nada de todos esses incidentes, percebendo, apenas, que ficara único senhor do campo, apoderou-se do santo, e pôs-se, muito entretido, a lambuzá-lo de sabão. Encontrou-o a mãe nessa tarefa, a que se entregava conscienciosamente; e avançou para ele no momento preciso em que Joãozinho acabava de esfarelar com todo cuidado uma orelha de São José.
– Maroto! – exclamou ela.
E ia fazer cair sobre Joãozinho o castigo merecido pelo horrendo crime, cujos vestígios e destroços via no soalho e no oratório devastado, quando lhe acudiu à reflexão de que tudo aquilo não podia ser obra só do pequerrucho, de que havia forçosamente, no caso, intervenção de mãos mais hábeis, de braços mais fortes, de figura mais taludinha...
– Foi aquele pestinha! – murmurou indignada, pensando em Jorge.
Arrancou das mãos de Joãozinho a imagem escalavrada de São José, beijou-lhe os pés com palavras compungidas em que pedia perdão do sacrilégio dos filhos, e repôs o santo em seu oratório forrado de azul com estrelinhas de ouro, cercou-o com sua corte de pequenas imagens, todas mais ou menos mutiladas, só faltando São Francisco, que continuava oculto, de castigo, no vão escuro... Cumpridos estes atos de piedade, voltou-se para Joãozinho, que apanhara do soalho o galo de São Pedro, e o conservava na mão:
– Você fez uma coisa muito feia, e vai apanhar ou vai para o quarto escuro.
Joãozinho, aterrado, só respondeu:
– Não, mamãe, não!
Ela, porém, muito enérgica:
– Escolha: ou apanha ou vai para o quarto escuro!
Joãozinho fitou-a. Percebeu no rosto severo da mãe que não escapava mesmo. Ora, ele nunca tinha apanhado – e conhecia já o quarto escuro. Escolheu choramingando:
– O quarto escuro, não.
– Vá, então, buscar o chinelo para apanhar.
Joãozinho foi, de cabeça baixa, como um criminoso que era. Quando voltou, trazia sempre na mão esquerda o galo de São Pedro; e empunhava na direita um pé de chinelinho da Vivi...
– Com este, sim? – implorou.
E ia entregar o quase inofensivo instrumento de suplício, quando se arrependeu, retraiu o braço, susteve-se... e com o rosto aflito, os olhos suplicantes, numa vozinha entrecortada de susto e de choro:
– Eu mesmo me dou, sim, mamãe? Eu me dou com força, eu prometo que me dou com toda a força.

Orgulhoso e cioso de sua terra, como todo o paulista, do nobre orgulho que não representa jactância senão estímulo para todos os cometimentos que possam engrandecer a pátria comum, engrandecendo a região, orgulho que longe de ser censurado como bairrismo devia ser cultivado como a forma mais fecunda de patriotismo nas federações, Vicente de Carvalho tomava parte ativa e entusiástica em todas as suas iniciativas. Foi, por isso, e por natural melindre, que pleiteou ardorosamente uma poltrona na Academia Paulista de Letras, quando já, entretanto, fazia parte desta ilustre companhia. Eu pertencia àquela academia. Vicente protestara contra sua fundação, pelo que não fora nela incluído. Irritou-se com isso. Escritor e paulista, julgava-se com direito a uma das poltronas. Publicou, então, formidável catilinária, incluída no seu volume Prosa e Verso, que fez distribuir à entrada do salão do Conservatório Dramático onde se realizava a sessão inaugural da Academia.

Era um dos acadêmicos o Dr. Joaquim José de Carvalho, médico notável, e escritor fogoso, com muita leitura clássica, possuidor de boas letras, e ainda lembrado no Rio, onde fez suas primeiras armas de imprensa, e de magistério, ao lado de Abílio César Borges. Tomou-se o Dr. J. J. de Carvalho com a investida do poeta, e entre ambos daí por diante estabeleceu-se a luta. Vagou a poltrona ocupada pelo Dr. Rafael Correia da Silva. Vicente resolveu pleiteá-la e fê-lo com ardor, publicando, então, o volume de prosa Páginas Soltas, a propósito de sua candidatura. Bateu-se vivamente contra os esforços do Dr. Carvalho, o Carvalhão, como lhe chamávamos, forte, alto de porte, de vozeirão tonitroante, mas de imensa meiguice e dedicação para com seus companheiros.

No manifesto dirigido à Academia, Vicente penitenciou-se dos ataques que lhe havia dirigido, e a Academia sem rancor elegeu-o para a Cadeira vaga, com justo e legítimo orgulho de tê-lo entre seus membros, recebendo-o o barão de Brasílio Machado com formosíssima oração.

Em Páginas Soltas, Vicente afivelou artigos, crônicas, contos, estatísticas, cálculos, querendo dar talvez definição da variedade de assuntos que sua pena versou, e sempre com inteiro brilho, apaixonando-se por todos eles, como se apaixonava por todos os fidalgos da corte a linda madame de Esparbés. Conta-se dela, a cujas encantadoras mãos, modelo de perfeição, cabia nas ceias de Luís XV a gentil tarefa de descascar as cerejas para Sua Majestade, que as não comia senão assim, que seu coração era volúvel como uma pena de marabu exposta à mais ligeira aragem. O homem era, para a apaixonada Esparbés, um estojo encantado que nunca se esvaziava de sedução.

Sabendo um dia Luís XV das travessuras de sua favorita, disse-lhe, irritado:
– Como posso crer em tuas palavras de amor, se foste amante de quase todos meus súditos!
– Oh, sire, não exagereis! – respondeu-lhe com ar modesto a Esparbés.
– Foste amante do duque de Choiseul.
– Não nego! Deixei-me deslumbrar por seu poderio, pobre de mim!
– Pertenceste ao marechal de Richelieu.
– Não nego, sire, mas ele tem tanto espírito. Se vossa majestade soubesse...
– Cale-se! – gritou Luís XV. – Foste amante de Manville. 
– Oh, sire, ele tem tão linda perna...
– Seja, mas o duque de Aumont, que nada tem, por que lhe cedeste?
– Oh, sire, ele é tão amigo de vossa majestade...

Tenho vivido dentro da natureza e para a natureza, a morte não o apavorava. Era a reintegração. Não queria, porém, a cova, e à imitação dos Parsis, de Bombaim, que expõem os cadáveres ao ar livre no mais alto ponto da crista rochosa de Malabar-Hill, em jardim luxuriante, diante de panorama vastíssimo e cheio de beleza, para que ali se reincorporem ao universo, assim versejava:

Poupem-me quando morto à sepultura: odeio
  A cova, escura e fria.
Ah, deixem-me acabar alegremente, em meio
  Da luz, em pleno dia!
O meu último sono eu quero assim dormi-lo:
  Num largo descampado,
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranqüilo,
  E a primavera ao lado.

E em lindíssimas estrofes descreve o cenário no qual desejaria repousar para sempre, ouvindo passar em redor um frêmito de gozo, e, no farfalhar das árvores, moroso, o rumor de um beijo:

Palpite a natureza inteira, bela e amante,
  Voluptuosa e festiva,
E tudo vibre e esplenda, e tudo fulja e cante,
  E tudo sonhe e viva!

Eis, Senhores Acadêmicos, em poucos e mal ataviados traços, a notícia da obra e da vida de Vicente de Carvalho, notícia que não pode deixar de ser ligeira pela deficiência de meu engenho e pela escassez da hora que vossa paciência me concede. Minhas palavras, obrigatórias neste ato, e só por força dessa obrigação toleráveis, devem, apenas, ter obscurecido o intenso brilho das jóias que vos expus. Vossas luzes, vosso superior discernimento, e vossa arguta perspicácia impuseram-me o cilício desta dura prova, em que minha humildade mais se humilhasse para poder aquilatar da honra que me concedeis. Esquecei-vos, pois, de minhas palavras, lembrai-vos, apenas, dos versos do poeta, e que se realize plenamente o desejo e a ambição por ele expressa, “a ambição de deixar sua alma ecoando sonoramente em outras almas”.

Que seus versos, esterroada a impura ganga desta desconforme oração, fiquem só eles a ecoar nesta sala. Seu corpo não se pôde reintegrar na Natureza, na plena glória e na plena luz de Malabar-Hill: que seu espírito se reintegre no espírito da nacionalidade, na mais alta de suas elevações, em todo o esplendor de nossa natureza, com toda a glória de nossa luz, repetindo ainda:

Amortalhe-me a noite estrelada: arda o dia
  Depois, claro e risonho;
E seja a dispersão na luz e na alegria
  O meu último sonho...