Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Celso Vieira > Celso Vieira

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Aloysio de Castro

RESPOSTA DO SR. ALOÍSIO DE CASTRO

SENHOR Celso Vieira:

Não sei se algum dia refletistes quanto à condição de quem deve de corpo presente receber, em público, elogios. Para uns é deleite, para outros provança. Os que vivem de encômios e sem propósito os buscam cada dia por mil formas, neles conhecendo todo o alimento e a razão mesma da existência, esses não podem ocultar a euforia que lhes traz essa apetecida digestão, preparadora do bom dormir e do bom sonhar; outros (e vos suponho neste número) desambiciosos de honrarias, em tudo pesando o relativo das coisas e o transitório dos juízos humanos, se não menosprezam o louvor será por não descomprazer os demais e por que não pareça recusarem com indiferença ou ingratidão o que, bem ou mal, se lhes oferece. Naqueles a vaidade em lua cheia. Nestes uma graça de cortesia, que é, no fundo, como resignação de vítima.

Vem-me agora à lembrança o que um dia passou com Olavo Bilac, em vossa presença. Um admirador o exaltava rosto a rosto. E o poeta calado. “Príncipe dos poetas!”, soltava o homem, farfalhoso, agarrando-lhe os botões do vestuário, gesto muito useiro quando o agressor receia que a preia lhe escape às unhas. “Nenhum escritor te leva as lampas!” E o poeta calado. “Extraordinário, fantástico, colossal!” (três adjetivos muito do sabor dos trópicos). Afinal Bilac não teve mão de si e rompeu: “Por favor, não continue, não estou bem. Sou um homem doente, dispéptico e acabei de jantar.” Inútil obseração. O colocutor sai-lhe à queima-roupa: “Cada uma das tuas crônicas, na Gazeta, resolve um problema da vida!” E então Bilac: “Sim, da minha vida, porque me pagam cinqüenta mil réis”.

Sr. Celso Vieira, não têm botões as nossas fardas e entre as nossas poltronas permeiam as de outros acadêmicos. Tendo que dar-vos as boas-vindas nesta recepção, serei hoje o vitimário, como o ministro dos sacrifícios, que entre os romanos imolava as vítimas. Acabais de jantar. Tranqüilizai-vos, vendo-me escorvar a garganta e compor o movimento para o discurso: serei comedido no panegírico.
Aqui entrais com uma vitória plena, em primeiro escrutínio. Sabeis quão raro é nesta Casa esse fogo visto, esse transpor o átrio logo de vencida. O resultado alegrou a todos, eleito um escritor de verdade, de conta, peso e medida. Mas o vosso prestígio, confessemo-lo, tirou à sessão aquela graça especial dos imprevistos, das marchas e contramarchas, dos escrutínios sucessivos, um, dois, três, quatro, o que às vezes parece pouco.

Pois já éreis dos nossos antes de entrar à Academia. Vossa modéstia, essa encantadora graça tímida que vos não permitira sonhar “o sonho das mil e uma noites acadêmicas”, a que há pouco vos referistes, retardou a hora da vossa chegada. Daqui vos chamamos e lá, em Santa Teresa, na casa dos livros, onde uma lâmpada severa todas as noites se acende para a hora do estudo, que é como hora de oração, ouvistes o nosso convite. O gosto da divina solidão vos levou para essa Casa, que tem um pouco de santuário, porque nela viveu Carlos de Laet, no topo da colina, no Curvelo, o mais poético e formoso ponto desta cidade, ali aonde as auras chegam frescas, lavando os ares, e o olhar se perde na imensidade do oceano. Embaixo o turbilhão da vida agitada, num desenfreado corre-corre, o viver cada um fora de si no ruído trepidante e na confusão, que faz esquecer tudo. Na altura a paz da meditação e do sonho, o viver a sós, sem sair de si mesmo, ouvindo o próprio coração, que nada quer esquecer o conversar, à calada, com as estrelas remotas, a palpitarem marcando o tempo, nas refulgurações do céu profundo.

Não faltará quem pergunte se ainda há disto pelos tempos que vão e se os homens ainda têm olhos para olhar ao alto. A resposta, ei-la convosco, que sabeis compor uma vida onde há a força da contemplação, um pensamento altivo, a aspiração da serenidade e a alegria interior, que é o sublime em nós mesmos.
Nesse gabinete de estudo, onde a vossa pena traçou assídua tantas obras de primor, um discreto amigo vos acompanha nas horas do devaneio silencioso. Ei-lo ao vosso lado no retrato com que o nosso Adelmar Tavares ilustrou a conversação literária entretida convosco certo dia, para transmiti-la a um jornal de Recife. O companheiro, “Jick”, esplêndido Angorá, perfeitamente digno de um soneto de Baudelaire, com afinada tradução de Felix Pacheco, não é de etiquetas, porque o vemos refestelado, aliás não sem certa gravidade erudita, entre livros e papéis, na vossa mesa de trabalho, onde, caneta em punho (sempre é bom gosto dar ao homem o símbolo da profissão) apareceis sentado com circunspeta elegância.

Ao ver tão bela gravura eu entrei a hesitar se éreis vós o retratado e, admirável surpresa, figurando-me no recinto e olhando pela janela, em vez das cerúleas claridades e dos morros que aqui nos cercam por toda a parte, divisei nos longes, através dos vidros embaciados pela neve, as águas do Sena, o cais, as pontes e em frente o Louvre. Quem ali estava à vossa mesa era Sylvestre Bonnard, e o gato aquele “Hamilcar” cheio de virtudes militares, como o pintou Anatole France, Hamilcar “príncipe sonolento da cidade dos livros”, rebuscando junto ao fogão, defensor dos in-folio contra a chusma dos roedores malditos. 

O estimável animal monta guarda à vossa biblioteca, prestigiado com a consideração de que o cercais; mas não ponho em dúvida que ele seja afinal convosco o que era Hamilcar com Sylvestre Bonnard, cujas palavras tinha em menor conta que as da governante da casa. Homens de livros, pensava o gato de Anatole France, falam sem dizer nada, as governantes sim, “palavras de bom sentido”, como “o anúncio de uma refeição” e outras promessas agradáveis. Ai dos homens de pensamento, não são somente os gatos que tomam por vãs as palavras da sabedoria humana.

Que é a sabedoria na voz do mundo atual, com a sua mentalidade objetiva, o triunfo mecânico, o gosto do nudismo, pernas sem meias, no frenesi da desordem? O sábio, força é reconhecê-lo, está hoje em desvalia. Depreciaram-se as bibliotecas. Para o estudo não há mais nem tempo nem disposição. Um principal que se tornou acessório, e nem isso. Roubar horas ao sono para dá-las aos livros? Noites desveladas em lidada aplicação? Madrugar na mesa do trabalho, a fronte nos textos? Reservar à leitura esse mínimo de quatro horas diárias de que ninguém pode abrir mão, prezando-se de culto? Hoje, moços e velhos, todos se perguntam para que tais luxos. Mais vale andar a flaino, conversar em coisas frívolas, ir aos cinemas e às praias, matar o tempo na testada dos cafés ou meter-se de gorra no carnaval do ano inteiro. A superioridade dos espíritos se afirma agora por processos novos. Pois venha já essa boa democratização que, segundo a fórmula do dia, nivele ombro por ombro os homens todos, na aurifúlgida mediocridade e na gozosa ignorância. No fim das contas todos chegam às mesmas alturas. É da época e não se torce o rumo aos tempos.

Nem mais sequer dos mesmos escritores se reclama a luz do estudo. Um escritor improvisa-se. Não é preciso o mestre. Qualquer homenzinho de por aí além se anima a versar letras e doutrinar, na imprensa ou no livro. Onde aprendeu ninguém sabe. Nasceu escritor. De qualquer modo se escreve e está bem: há sempre quem admire e nunca falta a pompa do elogio, com máquinas montadas, zabumba, lanternins e foguetório.

Amadurecido na força do estudo sério e da severa disciplina mental, tendo horror à popularidade fácil, que transige com o gosto dos incultos e despreza as dificuldades da arte, vós vos criastes como escritor, Sr. Celso Vieira, pela inspiração e pela técnica, um posto à parte, de extrema distinção.
Um longo e aturado tirocínio vos temperou a pena.
Passou rápida a infância, no sítio natal, em Garanhuns. Correndo através das sebes das pitangueiras, trepando a cantar pelas árvores, sentistes um dia a fragilidade dos ramos. Caído ao solo, o pássaro tinha uma asa quebrada, o vosso braço esquerdo. E então com certeza aprendestes que nenhum fruto se busca sem prova, nem nas árvores nem na vida.

Mas já Olinda vos chamava com os esguios coqueiros viridentes. Não subistes por eles; outra árvore, a do saber, vos atraía para as bibliotecas. Era tempo de granjear a vida e entrastes a uma livraria, em cujo serviço estivestes vários anos, livros sempre na mão, ora vendendo, ora lendo. Imitastes a Millevoye, que em tempos de rapaz (já de outra vez o recordei), moço de livraria, todo se dava à leitura. O patrão tinha princípios. Na livraria não se lê, negocia-se. E prenunciou: “Vous lisez, jeune homme, vous ne serez jamais libraire.” A experiência não falha, também vós não passastes a livreiro.

Da livraria ao jornal não é distante o passo. Eis-vos sentado a uma das mesas de revisão do Comércio de Pernambuco. Era por esse tempo Baltazar Pereira, diretor da Província, o mais grado dentre os jornalistas, em Recife. Certo dia lhe enviastes pelo Correio uma composição poética. Ele vos não conhecia. Gostou e publicou. A Revista Contemporânea, de Teotônio Freire e França Pereira, já vos acolhera com aplauso e o vosso nome entrou a luzir entre os poetas e prosadores recifenses, Demóstenes de Olinda, Paulo de Arruda, Miguel Barros, Faria Neves Sobrinho e outros. A Província não tardou em chamar-vos, confiando-vos, tão moço, a crônica dominical. Estou que nesta consagração acadêmica nada vos comoverá como o perfume desta saudade, a evocação dessas primeiras estréias e do espírito daquele que foi, no jornalismo, o vosso mestre. Vós no-lo pintastes num retrato verdadeiro, em que Baltazar Pereira aparece como o tipo da lealdade política, tendo-se constituído em Pernambuco, após o assassínio de José Maria de Albuquerque Melo, seu antigo chefe, o símbolo do destemor e da altiveza no prélio contra o poder. Bem se sabe o que os espera, aos que entre nós se levantam contra personalismos dominantes. Mas o ostracismo de vinte anos não o dobrou, e o grande poeta satírico que era Baltazar Pereira, distanciado no alto, preferiu a fala enganosa dos homens a conversa dos bichos, sorrindo nas alegorias do Livro de Fábulas, que compôs com simplicidade de mestre. O artista venceu e sobreviveu.

A atuação jornalística que com tão boa estrela iniciastes no Recife teve festejado seguimento na coluna de honra da Província do Pará, durante o laborioso septênio da vossa residência em Belém, aonde vos levara, como Oficial de Gabinete, o Governador Augusto Montenegro. Em 1915, já então entre nós, começamos a aplaudir o vosso terceiro ciclo na imprensa, nessa colaboração d’O País, que havia de durar, com breves pausas, por três lustros, e na qual vos firmastes entre os poucos mestres do nosso jornalismo. Folha de preclaras tradições políticas e literárias, a que Quintino Bocaiúva emprestara esplendor não superado, nas colunas d’O País tivestes por companheiros escritores de pulso, um Paulo Barreto, um Malheiro Dias, um Azevedo Amaral, um Alves de Sousa, para só citar alguns. Endimião, que reúne trabalhos publicados nesse jornal, é dos mais celebrados dentre os vossos livros.

Nas vossas formosas crônicas e nos vossos diálogos filosóficos não custa descobrir-se a concepção de arte que sempre vos guiou, esse amor do belo em si mesmo, do belo só em si, conforme a lição platônica. Comentando as coisas do dia, do pequeno fato vos alçais às generalizações, o vosso pensamento se alheia das influências regionais e um vivo sentimento do universal vos conduz à visão superior da alma humana, através de uma ironia que é também feita de doçura e de piedade. A humanidade agita-se, na contínua mutação dos tempos: a eternidade sorri do que passa.
Que deliciosa página simbólica essa Tentação da China, que agora entreescolho por amostra. Pois até no Celeste Império tudo se transmudou, virado o Imperador em Presidente de República. O europeu quer entrar, quer dominar. O chim sorri, certo de que, quando tudo passe, a China não passará. “permanência única na terra envelhecida”, a China “torre de porcelana entre os bambus, donde o chim remira obliquamente, desconfiado e em silêncio, todas as nossas metamorfoses e mudanças, com aquele sorriso enigmático, indecifrável, amarelo, que é talvez o próprio sorriso da eternidade”.

Com a mesma pena que traça amplas visões históricas, exceleis nos pequenos quadros, como nessas finas miniaturas psicológicas, que o Sr. Osvaldo Orico há pouco coligiu no vosso livro, digno do título Para as Lindas Mãos.
Sois dos raros entre os nossos escritores em quem se pode conhecer estilo, o donaire da forma, a palavra luzindo pela beleza de si mesma, nos mil valores que exprime, de idéia, contorno e som. Mas o estilo, flor de distinção e nobreza, dando ao artista a sua nota pessoal e única, como ao músico, no tanger o instrumento, o modo de desferir-lhe as cordas, o estilo reclama uma subtileza de sensibilidade que é verdadeiramente um dom de eleitos.

Nos recamos da vossa prosa tudo é alinho e decoro. Sente-se o toque aristocrático de um fidalgo de três solas, mestre do bom gosto, que foge o entono, o prolixo, o sem-sabor e a odiosa vulgaridade.
Vê-se que possuís a qualidade mestra do escritor, o saber do idioma. Já parece coisa de espanto amar as riquezas da nossa lídima linguagem, quando hoje ela por aí vai, desbotada, relaxada, desprezada, enquanto prosperam as chulices da gíria e o falar enxacoco. Pois quem mais se atreve à paciência de a estudar por muitos anos e ainda pela vida inteira? Isso de linguagem ninharias, coisas de nonada. Se os erros gritam, vem por desculpa o uso, que faz lei. Cômodo e simples.

Mas que esplendor essa língua quando vazada com tão venusta forma e tão ricos matizes, como nas vigorosas páginas do vosso Anchieta, desse livro que há de durar, monumento da nossa literatura histórica.
Versando assunto copiosamente tratado, em quatro séculos, por penas eruditas de cronistas, alcançastes fazer, contudo, obra pessoal, em que a figura do grande apóstolo do Brasil se nimba como de um halo de beleza nova.

Eu vos confesso o meu desprazer pelos romances históricos e pelas biografias romanceadas. Ou a verdade ou a ficção. Que adianta ao fato real, quando o queremos conhecer, a fantasia que com o feio ou o belo o desfigura e o transforma? Em que se faz precisa à fantasia, que é de todo livre e tem o céu para voar e se basta por si, porque tudo nela se contém, a estreita realidade que lhe corta as asas? Não me seduz esse terreno neutro, em que se não sabe onde uma termina e onde começa a outra.
Fostes fiel aos fatos históricos. Tão formosa a vida de Anchieta, dir-se-ia que porventura a esmaltastes com a imaginação. Mas é que a verdade, a verdade nua, também pode ser bela. E a mais bela verdade é sem dúvida uma bela vida.

A infância, na branca Tenerife, o despertar da vocação, a adolescência em Portugal, noviço na Companhia de Jesus e aluno na Universidade conimbricense, assistimos às primeiras auroras do gênio de Anchieta (quero pronunciar “Antxeta”,  como no tempo do apóstolo, pois ali vejo, a sorrir-me, o Sr. Afrânio Peixoto, como a me recordar a sua reivindicação ortoépica e a dizer-me que o “ch” basco deve soar como “tx”).
Eis agora chegando Anchieta à terra brasileira, em 1553, à cidadezinha que, havia apenas quatro anos, Tomé de Sousa plantara, encarrapitada no outeiro. A baía de Todos os Santos entressurge como em tela majestosa, no quadro em que a descrevestes. Ali “o lagamar translúcido, móbil, semeado argenteamente de conchas e calhaus, ondeando ao sol por vinte léguas”.

Verdejante, frondosa na espessura dos matagais, à esquerda, Itaparica defende e abriga a enseada. Por encostas e socalcos, à direita, encurva-se o anfiteatro de colinas, onde mal branqueava a urbs, desentranhada a pouco e pouco do âmago da selva que embebia na terra vermelha, cingida pelo mar vibrante, os seus milhões de raízes. Ao fundo, vaporizam-se os montes como nuvens tranqüilas, imóveis, azulam-se cabeços pedregosos, sobre os quais se desdobram ou se esgarçam véus, tecidos de névoas, bordados a ouro, desfeito em chuva. E todo o Recôncavo, além, desata em florões soberbos a magia dessas paragens com o seu numeroso arquipélago, o alvor das praias longínquas, o entrelaçamento dos mangues recobertos de ostras, a diáfana pureza dos ares, a fluidez murmurante das águas correntias.

Agora é o catequista, que entra em contacto com o índio, o índio que “respira à distância o cheiro da caça, do fogo e do mel”, o índio que tem “a dissimulação do tatu ou da cobra verde”, “a pele rija do tapir”, “o grito da araponga”, “o salto do bugio”. Ei-lo, ajaezado, o Tupinambá, no autêntico retrato que bosquejastes em largas pinceladas e que estou certo ralou de saudades o Sr. Roquette-Pinto:

Canibal da era neolítica, em pleno delírio cromático, num país de fogo e de sangue, o índio trazia o sexo apenas velado pela tanga, penas amarelas grudadas ao cucoruto, manilhas de outras, polícromas, nos pulsos e nos tornozelos, ramais de búzios ao pescoço, tembetás de osso e de âmbar ou de quartzo na beiçola, pingentes nas orelhas, adornos de barro cozido na face esburacada. Abaixo dos joelhos, como franjas, pendiam as tapacurás vermelhejantes, e por todo o corpo depilado, sinuosamente, ondeavam lavores negros ou rubros, feitos a tinta de genipapo ou de urucu. Outras vezes, sob a plumagem dos cocares, ele prendia às ancas uma roda de penas cinzentas, largas penas de ema, balouçantes.

Tudo é assim no vosso livro, tudo cores e aromas, como despertando o cheiro da terra inviolada.
Vemos depois Anchieta, já passado a São Vicente, tomar destemeroso, serra acima, o rumo de Piratininga: “Orfeu caminhava para o inferno selvagem”. Que portentosa visão da natureza nessa caminhada, galgando a montanha:

Abaixo se descortinava a profundeza, ampliada sempre, dos vales frementes de bosques, fragrantes de veigas. Segredavam as fontes, de pedra em pedra, como náiades brancas e frias e correr num desejo, para a ardência do sol. Vagamente, no espelho dos rios, a luz criava miragens de incêndio, o arvoredo punha sombras movediças, duplicando a agitação das copas. E através de penedos, chapadas, boqueirões, despenhadeiros abruptos, por onde se retorciam lianas, a formosura da terra semelhava o desafio de uma virgindade ameaçadora, mas irresistível, ao domínio potente dos homens.

Enfim, fundado o Colégio de São Paulo, fundada São Paulo, coração do Brasil. Mas eu vos não posso agora acompanhar através de todo o texto, nos intrépidos passos do Anchieta cuja incrível atividade dilatada por tantos lustros, entre constantes perigos e traições, sofrendo os últimos rigores nas proezas da catequese, Simão de Vasconcelos deixou marcada num simples e perfeito adjetivo retratando o padre, apoucado no porte, como “atuoso” na vida.

Que esplendor e variedade de quadros e tons, aqui e ali nos dais, com força de estilo incomparável à do Euclides da Cunha, dos Sertões. Agora o viver do silvícola, sacudindo a seta do arco, os combates do canibal, a tangapema vibrando o golpe nas vítimas. Noutro passo, aquela primeira missa, entre os selvagens, na aldeia de Iperoig, a “missa da primavera”, “sob a ramada umbrosa e vernal do grande bosque”. Não se corta pelo meio tão formoso período:

Chilrava perto o riacho. Limpidamente, a gorgolejar nos pedrouços; era infindável a música dos sabiás pelas alturas, pelas folhagens dos buritis. Em volta os índios espiavam, acercando-se mais e mais da imagem de Cristo. As genuflexões, as bênçãos, os transportes da Eucaristia, ao ar livre, tudo maravilhava o gentio nesse ritual desconhecido e harmonioso. Trespassando a ramaria, arqueada, como um dossel verde-claro, vinha uma flecha de sol de maio atingir o crucifixo, aureolar os celebrantes, e o passaredo orquestrava derredor, com alegria ruflante e sonora, à missa da primavera.

Rodam os anos, crescem os trabalhos de Anchieta. Enfim no Rio de Janeiro. A criação da cidade. O reitorado da Casa de São Vicente. E depois as últimas viagens, o ocaso no Espírito Santo, a coroa final, a grandeza da humanidade para a entrada na glória. Destes à narração desses últimos dias do santo uma expressão de insuperável beleza. Quando ele caiu de repente no chão, “foi como um lírio desfeito por uma rajada”. Depois, “alçada a cruz, processionalmente, os índios de Reritigbá levaram-lhe o corpo fechado em uma caixa de cedro até à vila de Vitória”. “Nesse pequeno féretro, pequeno como um berço, repousava meio século de prodigiosa heroicidade cristã.”

Magnificando as nossas letras com o vosso Anchieta, mostrastes-nos, Sr. Celso Vieira, uma pena digna da Legenda Áurea ou de um Florário dos Santos. É um livro edificante pelo fervor espiritual e pela luz da fé, que radiando lhe atravessa as páginas. Não há nele exortações tonitruantes. A palavra é serena, mas cheia de unção, daquela força simples que nos influi a verdade e comove e acende ainda as almas regélidas. Lendo-se um livro assim, sente-se vivo o alento de Deus. E então é peito por terra, para levantar a esperança ao Criador e subir-lhe os apelos de nossa alma, ao Criador que do pecado e da miséria nos ressuscita para a virtude e para a glória.

Essa luminosa força de crença se sobredoura na obra do poeta, porque o vosso livro é como um poema, eu dissera outro Evangelho nas Selvas, capaz de irmanar-se ao portentoso canto de Varela.
Falando de poesia estou a transportar-vos para os tempos da primeira mocidade, com a recordação dos vossos ensaios poéticos, quando publicastes em Recife aquela expressiva amostra de simbolismo, na tradução do soneto das vogais, que celebrizou Rimbaud:

A negro, E branco, I rubro, U verde, O turquezino,

acabando com aquele sublime Ómega,

Ómega... o raio azul violáceo dos Seus Olhos.

Naquele tempo havia sonho e no “Noturno” nos dizeis sentir a alma deslizar por ele como

Um raio de luar numa cidade morta.
Depois, a retina incendida, o desejo em mil formas, vinha a visão amada,

Sobre a glória pagã de uma cidade em chamas.

Afinal, extinto o clarão onde se foi a alma inquieta? Desenganada,

No ermo crepuscular de uma cidade em ruínas.

Nessa formosa página lírica e em tantas outras que me fora grato citar, estava o poeta dos vinte anos. Foram-se os vinte anos. Foi-se com eles o poeta, ou acaso por se não descobrir disfarça os metros na prosa?

Eu tenho para mim que a poesia é flor da madureza e linguagem do coração experiente. Vede. Quem faz versos quando moço, de comum abandona a musa, amor de um dia; quem os começa a escrever mais tarde, quando a vida se espelhou no suor dos trabalhos, nos breves risos e nas longas lágrimas, então já não pode calar a lira nem fora dela encontrar a força das consolações superiores. Amor que não passa como passam as flores dos vinte anos.

*  *  *

O poeta e o prosador podem estar mão por mão com o jurista. É o vosso caso, em que o louro apolíneo vem hoje ornar a beca do austero secretário da nossa mais alta corte de justiça local, onde, entre embargos e desembargos, há tantos anos viveis com as letras do Direito, admirado e estimado dos nossos juízes.

Um secretário é tudo. É de todos o que mais trabalha e menos aparece, é o que organiza as coisas para a hora certa e move a roda. Mas não basta exatidão, meticulosidade e diligência. A função impõe-lhe especiais deveres, até no físico, que pede severidade e comedimento. O secretário é a discrição, a reserva, um homem que se não pode dar a expansões e precisa ter nos debates a que assiste a difícil virtude do silêncio. O entusiasmo da causa pode arrastar os outros, com altas vozes, ademanes e ainda mais. Mas o secretário, na cadeira, com o lápis apontado, há de guardar a imobilidade da estátua.
E a ata? Bem mais difícil ler uma ata do que ler um discurso.

Ramalho Ortigão, mestre de elegâncias, queria poucos gestos nos discursos lidos. A gesticulação, em verdade, vem de seu, espontânea, surge com o que se diz. E então, se o discurso é lido, já o orador não experimenta, ao pronunciá-lo, essa emoção primeira da idéia nascente, que lhe despertaria o significativo complemento do gesto.

Busque o orador nessa circunstância outros recursos da arte. Ler uma ata, à própria, é ler parado, com atitude gravemente inexpressiva, a voz como toada monocórdia. E se os ouvintes bocejam fastientos, é saltar sutilmente as páginas, antes que cabeceiem e descaiam na letargia. Que habilidade em tudo isso!
Na vossa brilhante e operosa carreira pública, Sr. Celso Vieira, a dignidade de secretário vos foi constantemente atribuída. Secretário de um Governador de Estado, secretário, por longos anos, da administração policial nesta cidade, secretário da Conferência jurídico-policial, secretário da Comissão codificadora das leis processuais do Distrito Federal, secretário da Conferência de limites interestaduais, secretário de um Ministro de Estado, ainda agora acumulais as funções de secretário na Corte de Apelação e na Comissão de nomeações e promoções da justiça local. Evidentemente uma predestinação ao secretariado.

Mas em todas essas situações sempre o secretário esteve de boas andanças com as letras e entre tantos escritos e ensaios que publicastes quero recordar os vossos experientes estudos de polícia científica, reunidos no vosso livro Defesa Social, que os competentes consagraram.

*  *  *

O amor das tradições, na certeza de que todo progresso intelectual tem as suas nascentes nos elementos preparados pela obra dos que vieram antes, o culto pelo helenismo nas perfeitas formas clássicas e pelo mistério das civilizações extintas, enfim, todas as características da vossa personalidade literária e do vosso espírito conservador estabelecem, em muitos pontos, aberto contraste com os princípios a cuja defesa se entregara, nos seus últimos anos de vida, um dos vossos gloriosos antecessores nessa Cadeira, o inesquecível Graça Aranha, cujo elogio vos coube traçar, já que a morte nos levara o sucessor imediato, Santos Dumont.

Neste, o desejo de conhecer as forças da natureza, essa curiosidade genial, que foi em todos os tempos o grande fator do progresso humano, o chamara à glória. Já imortalizado pelos seus remontes de águia, que voou livremente e buscou no alto o beijo da luz, ele não desdenhou contudo da imortalidade acadêmica, e com duplo respeito hoje lhe saudamos a memória.

Graça Aranha, distanciado da Academia desde 1924, aqui continuou e continua presente em nosso afeto e em nossa vívida saudade. Nada importa que estivesse noutro campo de idéias, em matéria de orientação literária. Não nos pusemos às más com ele e nunca deixamos de admirar no artista excelso de Canaã e de Malazarte a força do seu idealismo criador, transparente naqueles olhos encandeados pela ilusão e tão expressivos da sua bondade e da sua poderosa inteligência.

O fato é que ele, sacerdote que venerara a lei antiga e beijara a opa dos cardeais da nossa literatura, Machado de Assis e Nabuco, ele, contributário da nossa mesa, lactado desde a infância com as mais puras tradições clássicas, um belo dia renegou das crenças, fez pé atrás e desatando os laços que o prendiam a esta Casa, abdicando-se do título acadêmico, vestiu as armas da nova lei, afirmando espalmadamente, embora galante e cortês, que tudo aqui estava errado, que a Academia levava descaminho, que se mudasse de rumo, que era preciso tudo derruir pelos alicerces, num grande esborôo, como nos solavancos de um terremoto.

Lá fora o incitavam que saísse a medir o florete com os da sua companhia, lançando-lhes em crime o apego da tradição e o respeito dos séculos clássicos, onde não há senão bolor. Então ele esforçou a voz e lançou manifesto literário, fazendo penacho do que chamou espírito moderno. Foi a muito bem dizer uma sessão memorável. Com ele fizeram parceria e vieram de camarada, dando-se as vivas e gritando com desenvoltura, jovens confrades de sangue na guelra. A avançada foi brilhante, o discurso de Graça Aranha o rastilho que propagou o fogo à mina. Viu-se então que o puro entusiasmo literário, no fragor dos aplausos, por pouco não deu com tudo de avesso aqui dentro, nesta casa da polidez.
Mas assim como nós médicos às vezes nos equivocamos nos prognósticos, o de Graça Aranha quanto à Academia falhou redondamente. A Academia não morreu.

Fora injusto supor que o misoneísmo a levasse a viver fora do seu tempo e a desconhecer os fundamentos da evolução literária, com os seus ritmos infalíveis. Jamais houve aqui intolerâncias ou dogmatismos, aqui não se denunciam excomunhões e não é da Academia que vem o grito: nós é que somos a verdade.

Todavia, participar do movimento universal de renovação estética não é fazer tábua rasa do passado e adotar sem mais todas as leis de um gosto, que bem pode ser mau gosto. A história literária tem experiências do que valem e do quanto duram os movimentos que se não originam das lentas transformações sociais em cada povo, com a força do tempo, nascendo, ao contrário, como criações artificiais, meras improvisações, que pegam e passam com as modas, simples episódios na sucessão das verdadeiras escolas. Que diria o nosso Graça Aranha se ouvisse neste mesmo recinto o voto insuspeito do Professor Garric, quando no ano passado, depois de estudar as modernas tendências da literatura francesa, não hesitou dizer: “Ôh revient à Racine”?

No verdadeiro espírito literário alguma coisa existe, porém, superior às divergências individuais do julgamento e as preferências de ocasião, sobreposta ao movediço e mudável das correntes estéticas, que têm o seu vaivém com os tempos, como as marés no acesso e no recesso, com o afluxo e o efluxo das águas. Essa força permanente é o sentimento da beleza eterna, que cada um buscará conforme vê a vida.

Vós, Sr. Celso Vieira, empunhando o cinzel grego e afervorado na arte antiga com a paixão de uma grande e nobre alma, vindes dizer-nos que a beleza é o sonho.

Abro o vosso admirável Endimião e no mito helênico contemplo, na gruta de esmeralda ou de âmbar, o formoso pastor do monte Latmus, que abençoado dos deuses imortais se adormeceu sob o plenilúnio, “inacessível ao tempo que nos acurva e à dor que nos deforma”.

Que traduz o sonho desse que “fugiu à realidade humana”? Perguntaste-lo às vozes da Grécia eloqüente e nem elas vos declararam o enigma. Nesse lendário sonho vedes “um lago, em cuja profundidade onicolor se espelham os signos da Inteligência humana e sobre o qual se debruçam com avidez os nossos desejos entreabertos na sombra, à maneira de grandes flores noturnas”.

Sim, tomemos a realidade no sonho. A verdade não estará no escuro de um poço, onde a procurava o filósofo grego, mas no fundo de um lago transparente. A sabedoria é a ilusão da verdade, adivinhada com o sentimento. Andai conosco a embeber o olhar ansioso no cristal dessas águas e a louvar a vida no esplendor do eterno sonho. Sede bem-vindo.