Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Acadêmicos > Celso Furtado > Celso Furtado

Discurso de recepção

Discurso de recepção por Eduardo Portela

A Academia Brasileira de Letras recebe hoje parte substancial da construção brasileira contemporânea. Recebe Celso Furtado. E com ele, e nele, recebe o intelectual enraizado, nem messiânico, nem profético, mas tão-somente, e sobretudo, o servidor público, o cidadão alistado, mobilizado segundo as vicissitudes e as exigências da nossa modernidade insubmissa. Não do nosso modernismo verde e amarelo, indisfarçadamente cafeicultor, impulsivamente patriótico, propenso à tagarelice e à galhofa. Justamente o que faltou a este modernismo — sob tantos aspectos — transformador, foram as indispensáveis quotas de modernidade, que o tornariam mais lucidamente universal, mais civilizadamente urbanizado, mais culturalmente plural. Faltou uma dose maior de modernidade no modernismo brasileiro. Ela só chegaria posteriormente, embora progressivamente.

Chegaria com os poetas, com os narradores, com os artistas, com as três interpretações emblemáticas que irrompem nos anos 30, e que trazem as assinaturas, já de si reveladoras, de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. São interpretações do Brasil que inauguram, cada qual a seu modo, um novo estatuto hermenêutico.

Celso Furtado, pela sua própria inserção geracional, chegaria depois. O seu clássico-moderno Formação Econômica do Brasil é de 1959. Aí se instaura uma percepção outra, no interior da qual a economicidade denega a contabilidade, e o social, mais o seu mediador insubstituível, o Estado, assumem os papéis principais da cena histórica.

A vida de Celso Furtado se distingue pela infatigável peleja, pela vontade jamais enfraquecida, de combinar e conduzir, no projeto brasileiro, de modo algum insensível ao latino-americano e ao internacional, democracia e justiça social. São instâncias éticas e políticas, com as quais vive pela vida afora, levando juntos a ancestralidade nordestina e, se me permitir Carlos Drummond de Andrade, o «sentimento do mundo».

Há no nordestino uma espécie de pré-história, de imaginário coletivo cravado no fundo da memória, que termina desempenhando uma função altamente pedagógica. As dificuldades, a corrida de obstáculos, que constituem o próprio Nordeste, são igualmente, e duramente, fontes de saber. «Nascer no Nordeste» — diz Celso Furtado, em texto ao qual não falta a qualidade literária — «é não conhecer a infância. A gente, ali, já nasce adulto». E acrescenta, em frases que recolho arbitrariamente: «o convívio com a miséria nos retira o encantamento da infância. Comecei a entender as palavras ouvindo falar de mortes. De mortes por doenças, pelos tiros, pela fome. No Nordeste, somos adultos, porque a consciência do mundo é a consciência do risco, do perigo e do precário. Não há meninos no sertão. Há adultos prematuros, velhos prematuros, mortos prematuros.» Sou tentado a supor que, aí, a realidade social precede ou inspira a teoria social. Ao contrário do que parece acontecer com o conhecimento acadêmico. Um dos fatores de crise desse conhecimento reside no fato de que ele se compraz em pressupor, deixando-se levar pelo irremediavelmente contemplativo.

É fácil identificar, nesse Nordeste distante, o permanente estado de guerra. Logo, para Celso Furtado, a guerra era sua velha conhecida. Mesmo assim, sem que levassem em conta o que poderia ser redundância pouco ou nada imaginosa, ele foi convocado e integrou a Força Expedicionária Brasileira. Participou do front aliado na Segunda Guerra Mundial. São contingências vitais diante das quais ele costuma comportar-se integramente. Mas na verdade a sua frente sempre foi, e continua sendo, a frente da paz. Pode-se até falar no alistamento voluntário no pelotão da paz. Não a paz das retóricas perdulárias e insinceras. Tampouco a paz passiva dos proprietários de castelos no ar, porém a paz consistente, fundada na redução das desigualdades, nas solidariedades ampliadas, nas chances educacionais fortalecidas.

A constelação que envolve as obrigações formadoras, o seu amplo entendimento do papel da educação, mostram como ele é capaz de diferenciar recursos humanos e recursos profissionais. O programa educacional democrático e republicano destaca o cidadão como alvo prioritário. Educar consiste em formar o cidadão. O cidadão inclui o profissional e o ultrapassa.

A compreensão de que a cultura fortalece a educação tornou-se uma exigência do próprio desenvolvimento. Identificar hoje déficit cultural nesse ou naquele projeto, nessa ou naquela ação, ou ainda na reflexão pedagógica, significa desobstruir o caminho do desenvolvimento humano, perceber o perigo que representa o modelo unidimensional de desenvolvimento, cada vez mais esvaziado de intersubjetividade, de afetividade, de eticidade, enfim.

II

O objeto da reflexão de Celso Furtado, certamente objeto-sujeito, é o Brasil. O Brasil contextualizado, regionalmente e internacionalmente. O seu vigor interpretativo consegue vencer a inapetência reflexiva da economia. E todos nós sabemos que só as grandes construções críticas conseguem transpor os limites de suas disciplinas de origem. Por isso, com ele, a economia deixa de lado a sua prepotência congênita, a sua solidão arrogante, e se toma uma disciplina operacional. Jamais inútil, nem tampouco absolutamente impositiva, como se imaginou nos seus intermináveis dias de glória. Furtado compreendeu logo as carências das disciplinas ortodoxas, incapazes de dar conta de fenômenos complexos, ou de situações perplexas. Nunca o atraiu o fato econômico no seu isolamento auto-suficiente e na sua paranóia claustrófoba. Prefere ser, e esta opção se torna imediatamente clara, o pensador estratégico, localizado e historicizado, que se recusa a cair na vala comum dos tecnocratas impermeáveis à história, esses mesmos que gesticulam e se debatem contra o fundo falso da nossa contemporaneidade.

Celso Furtado é o político que pensa, o que já é em si um acontecimento pouco freqüente, ou pelo menos extravagante, e busca o poder pelo que neste possa haver, e não raro há, de serventia pública. A capacidade de pensar e, nos prazos convenientes, repensar, se junta a compreensão transitiva da função pública.

A ação coletiva nunca é uma prática em si. É, antes, um trabalho para o outro. Furtado a entendeu assim, nos seus mais diferentes desempenhos, acadêmicos e executivos, no Brasil e no exterior, no governo e no exílio. A sua conselheira, nesse empreendimento levado a efeito em regime de urgência, foi a história, acompanhada do seu mais apurado olhar político. E quando a leitura econômica da história cede lugar à leitura histórica da economia.

III

Embora sua genealogia moderna seja facilmente identificável, Celso Furtado guarda a distância regulamentar com respeito à versão fechadamente iluminista ou ilustrada do intelectual. Chega mesmo a descrer do poder transformador da ação intelectual todo-poderosa. «Estamos numa época histórica — diz ele à revista Novos Estudos, do CEBRAP, em 1995 — do declínio total da influência dos intelectuais, que espero seja passageira.» A sua própria concepção do homem deixa de ser a essência mais ou menos intocável, para se tornar o projeto político socialmente encarnado. Fica como que abandonado o lado ocioso dos filosofemas da consciência, descendentes do racionalismo puro ou do idealismo abstrato. E nesse sentido que avança o seu pensamento estratégico, jamais resignado diante dos regimes de exclusão. A exclusão, a intercepção ou a não inclusão, constituem males sociais com os quais em nenhum instante compactua. Por isso freqüentemente retoma àquela compreensão compartida com Raul Prebisch: «o problema fundamental da América Latina não é econômico; é político.»

Em função desse quadro, ou dessa hipótese reflexiva, verifica-se uma alteração nos perfis, outrora estáveis, do intelectual e do economista. Ambos perderam muito do que fora, em outros tempos, o sentido da vontade pública.

A figura do intelectual nos oferece um eletroencefalograma extremamente arrítmico. Oscila entre o beletrista e o especialista precocemente aposentado, com ou sem honrarias, com ou sem os benefícios da aposentadoria; o chômeur do espírito, aquele que assistiu, perplexo, ao deslocamento do seu virtuosismo pela sofreguidão da cultura virtual; e finalmente aquele que pressurosamente se fez a relíquia tombada ou autotombada. Esse desenho sucinto se vê agravado pela vertiginosa eclosão do perito, o portador do conhecimento apenas funcional, todo voltado para uma aspiração de rentabilidade, ou duvidosa ou equívoca, porque toda ela engendrada à revelia de solidariedades sociais. Celso Furtado não pertence a nenhuma dessas espécies, cada dia mais estranhas, embora por razões diferentes. Ele é antes o ator social dessacralizado, investido de obrigações intersubjetivas, interpessoais, interculturais, visíveis a olho nu.

Já no plano mais especifico da economia, Celso Furtado se distingue enquanto economista público. E que nessa curva derradeira da modernidade, os economistas se dividem em públicos e privados. Os primeiros são públicos não porque excluem a esfera privada, mas porque se destacam pelo exercício incessante da liberdade. Os segundos são privados não só porque defendem interesses apenas privados, mas porque se mostram excessivamente dependentes de suas carreiras pessoais. A economia foi das primeiras ciências a ser privatizada. A mais recente é a informática.

IV 

Transcorrido o período apologético da idéia de desenvolvimento, menos ou mais independente, mais ou menos dependente, já se pode flexibilizar, matizar, pluralizar, o que fora um conceito uniforme e, conseqüentemente, incapaz de compreender a rede de mutações que o envolvia e condicionava. E o que vem acontecendo com a obra de Celso Furtado, em diversas pontuações, em Desenvolvimento e SubdesenvolvimentoDialética do DesenvolvimentoO Mito do Desenvolvimento Econômico, ou em estudos mais recentes.

O desenvolvimento sempre foi pensado a partir de si mesmo, como projeção inevitável e infalível do núcleo hegemônico. Hoje talvez se possa dizer que, mesmo nos instantes mais bem-intencionados, foi uma idéia retirada do fundo do baú da história dos vencedores. Aqui, portanto, cabe um registro, que merece especial atenção. Foi Celso Furtado, e seus colegas da CEPAL, que iniciaram o trabalho de deslocamento, de desapropriação intelectual, historicamente plantado. Ainda há pouco dizia ele, em texto preparado por solicitação do Banco Mundial: «Minha indagação partia da idéia de que o subdesenvolvimento, por sua especificidade, estava fora do alcance explicativo das teorias do crescimento econômico.» E acrescentava: «No esforço de interrogar a história como economista, cedo me convenci de que os conceitos de que me estava servindo eram fruto da observação das estruturas sociais que se haviam formado com o capitalismo industrial. O entendimento das estruturas sociais engendradas pela expansão internacional do capitalismo» — continua Furtado — «impunha uma apreciação crítica desse quadro conceitual. A denúncia feita por Prebisch em 1949 do ‘falso universalismo’ da ciência econômica apontava nessa direção.» Assim convencido, Celso Furtado leva adiante notável esforço de redução crítica sem cair nas malhas do nominalismo ocioso. Digo isto porque, quando a noção de desenvolvimento recorre ao adjetivo — sustentável, durável — é porque a sua substantividade está comprometida. As cicatrizes do desenvolvimento selvagem continuam sangrando, indiferentes aos apelos da ética, das desigualdades, dos direitos humanos, do meio ambiente. Como então falar em «sustentabilidade»? Celso Furtado sabe e nos ensina que já é hora de gerar a axiologia do desenvolvimento, apoiada na força aglutinadora dos valores «pós-materiais», no enlace moral da racionalidade, no respeito à intersubjetividade.

V

Outra das linhas de força do pensamento de Furtado vem a ser a percepção aguda da trama que envolve e confronta Estados nacionais mais ou menos indefesos e grandes empresas internacionais. A valorização do papel político e econômico do Estado, da qual nunca se acham ausentes certos impulsos keynesianos iniciais, nunca o deixa abraçar o diagnóstico fácil e engenhoso do estado terminal que o paleoliberalismo pretende consagrar. Ele identifica a complexidade dos nossos dias. Evita sempre a impugnação de iniciativas inesperadas. E jamais confunde o Estado e suas perversões burocráticas e clientelísticas. Isto não quer dizer que a nação deva prescindir da racionalidade do Estado. Ela deve apenas corrigir os sinais freqüentemente trocados. É da nação, hoje internacionalmente constelada, que o Estado pode receber a sua legitimidade. Daí a maneira como Celso Furtado se mostra tão sensível aos apelos de setores não organizados da sociedade e à emergência de organizações pouco previsíveis.

Celso Furtado reconhece a inevitabilidade da internacionalização. Mesmo assim, continua admitindo a força integradora do mercado interno, e estabelecendo dissociações profundas entre cidadãos e consumidores. O dinamismo do espaço público na terceira modernidade balança a dicotomia sedentária que incompatibilizou o Estado e o mercado. Mas não autoriza a anulação do primeiro pelo segundo. E mais ou menos nessa linha que Furtado se opõe ao hedonismo auto-ilusório (self-illusionary hedonism), esse motor da sociedade pós-moderna, agora basicamente representado pelo consumismo kamikaze da classe média. É verdade que os capitalistas retardatários, no capitalismo avançado, de tal maneira se confundiram com a classe média, na sua irresistível tentação turística, que geraram uma patologia ainda não suficientemente pesquisada.

Além da sua obra marcadamente técnica, Celso Furtado escreveu Contos de um Expedicionário, nos quais a agudeza literária se alia à complexa apreensão das relações interpessoais, às vezes explícitas, não raro implícitas. Escreveu igualmente livros de memórias, como A Fantasia OrganizadaA Fantasia DesfeitaOs Ares do Mundo.

Tenho a tendência a imaginar que as memórias ficaram prejudicadas pela pouca credibilidade dos chamados gêneros pessoais. Aqui não. Aqui o gênero pessoal é tratado com severo escrúpulo impessoal. Furtado escreve com o passado as memórias do futuro. Daí, provavelmente, o crédito de confiança que abre para a utopia. Os diários, as autobiografias, os jornais, as memórias, são expressões, em geral egocêntricas, do delírio individualista. Mas elas podem igualmente ser o testemunho da época, a harmonização correta do indivíduo e da história. Talvez possamos admitir que as memórias costumam ser de três tipos: a memória reconstrutiva, que repõe e valoriza; a memória dissociativa, que afasta e fratura, tão conhecida da psicanálise francesa; e a memória reprodutiva, que apenas copia, fotograficamente, as limitações próprias da fotografia. A memorialística de Celso Furtado, nem dissociativa nem reprodutiva, é antes reconstrutiva. Rememora para prosseguir.

Ortega y Gasset excusa-se de evitar a memória, afirmando que não dispunha de tempo para voltar ao passado. Este perigo sempre existe. Mas Furtado conseguiu escrever a memória para a frente, jamais colada à pura individualidade autocentrada e, por isso mesmo, sedentária. Ele não pertence àquela espécie dos que nasceram meramente para recordar. Não se inclui entre os memorialistas full time. Ele se inscreve entre os que vieram ao mundo para dar forma social à esperança.

VI

Tudo indica que essa tarefa de reconstrução, histórica e social, corresponde a um propósito de reinvenção da democracia, nessa longa jornada que vai da democratização da terra ao direito à imagem, e em função da qual a nação de cidadãos se internacionaliza, sem deixar que se percam traços identitários inegociáveis. Como se, diante de uma interpelação maniqueísta, o sertanejo paraibano respondesse: entre a nação e o mundo, eu fico com os dois.

 

Sessão solene extraordinária do dia 31 de outubro de 1997