O FRADE ESTRANGEIRO
O que mais particularmente nos interessa na vida de Vieira, é, senhores, o santo amor que sempre dedicou à catequese e à liberdade dos índios. Os brancos efetuavam pelo âmago do país correrias em que aprisionavam e reduziam a cativeiro os prófugos selvagens. Arrancavam-lhes as mulheres e as filhas, matavam as crianças, e dos homens válidos faziam, à força de pancadas, servos para os trabalhos rurais. Era a escravidão debaixo da forma mais odiosa. A nossa história colonial está cheia desses horríveis atentados, eterna vergonha pela intrépida iniciativa dos nossos avós. Pois bem, senhores, foi contra esta ordem de coisas que se ergueram os jesuítas e à frente deles o famoso Vieira.
Sabeis qual a magnitude da sua obra? Que no-lo diga um dos seus mais conceituadas biógrafos. Depois de citar os missionários que Vieira distribuiu pelas diversas estâncias ou aldeias, explica ele:
“Estes são os filhos de Santo Inácio, que de dois em dois, como os discípulos de Cristo, se apostaram a levar, por aquela inculta região e barbaridade cega, os resplendores da doutrina e da fé. Depois, pelas ocorrências do tempo, teve, em parte, alguma mudança este sistema. O espaço desta campanha de norte a sul (aqui chamo, senhores, vossa atenção) é de mais de quatrocentas léguas por costa; as cristandades e aldeias que nelas se contavam, eram cinqüenta e quatro; as almas, mais de duzentas mil. Não se contém nesta resenha com estância determinada, porque queria estar em todas, o capitão e cabo de todos, o padre Antônio Vieira; porque, disposto primeiro o seu exército para a parte do norte, isto é, do Maranhão até o rio dos Amazonas, reserva-se para passar ao sul até a Fortaleza do Ceará, que são os dois termos do Estado, e ainda revolvia no ânimo mais comprida jornada.”
(André de Barros, Vida do padre Antônio Vieira, página 117 da edição lisbonense de 1858.)
Eu vos pergunto, senhores, onde atualmente os planos de civilização dos indígenas, os quais com este se possam comparar? O nativismo, que tão vesgos olhos lança aos estrangeiros, nossos auxiliares em religião, deveria olhar para isto e chamar a si a magna tarefa da catequese. Não é lógico que, sendo para ele essencial requisito o haver nascido no Brasil, à sua triste sorte abandone tamanho número de brasileiros natos, de que, pelo menos, se poderiam fazer magníficos eleitores, soberbos oradores de meetings e até ministros do Supremo Tribunal.
E os srs. positivistas, também, por que não se entregam a essa nobre missão? S. Francisco Xavier e S. Inácio de Loiola figuram no calendário de Augusto Comte, a 22 de S. Paulo, que é o sexto mês do ano... O que vemos, porém, é que os missionários dessa grei, em vez de se atirarem às privações, às intempéries, aos perigos, como o pregadores católicos, fazem questão de dinheiro para se estabelecerem em uma basílica, e com pingue dotação garantida. Eu bem quisera contemplar o bispo positivista do Rio, sozinho, ou com dois ou três companheiros, a trabalhar pela catequese nas florestas de Goiás ou Mato Grosso. Eu sentiria que de suas palavras não pudesse brotar a luz do Evangelho, mas em todo o caso lhe respeitaria a sinceridade... Tal, porém, não sucederá, senhores; os propagandistas de comtismo preferem ir para a capital da França, Paris, centro de todas as mundanidades e prazeres.
E já que tocamos neste assunto da catequese, preciso é reconhecermos que o não muito que existe, absolutamente não tem cunho nativista, porque é fruto dos esforços e da corajosa dedicação de frades estrangeiros.
São dominicanos estrangeiros os que ora catequizam nas margens do Araguaia, em territórios do Pará e de Goiás. Fundaram ali a colônia da Conceição do Araguaia, núcleo de mais de quatro mil pessoas; mantêm dois colégios, um internato de cinqüenta meninas, e um externato para número indeterminado de meninas, dirigido este pelas irmãs Dominicanas, que ali são mestras e exemplares de recato feminil.
Estrangeiros também são os Salesianos que trabalham em Mato Grosso. Ainda hoje, neste mesmo salão do Círculo, mostraram-me uma fotografia de catecúmenos mato-grossenses. No meio deles estava o catequista, não um positivista de fraque, mas um homem de batina, de fisionomia calma, plácida, com a serenidade que dá a consciência do dever, e tendo ao peito a sua, a nossa Cruz a Cruz, seu e nosso emblema, seu e nosso estandarte, seu e nosso programa.
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Prossigamos, porém... A mais comprida jornada, de que falava André de Barros nas palavras que vos li, não chegou infelizmente a realizar-se. Proibidas que foram as entradas livres, enfureceram-se os colonos e arderam em fúria contra os jesuítas.
Entradas livres! Notai bem, com que artifícios de linguagem sabe o demônio colorir as suas negras idéias. O que o colono do Maranhão pretendia, era isto: fazer entradas livres. O jesuíta empecia-lhes esta liberdade... Logo era o jesuíta o inimigo da liberdade, e elemento antiliberal e abominado. Considerai, porém, que a entrada livre era a incursão em procura de misérrimos escravizandos; era a lascívia a pascer-se nas mulheres, era a ferocidade a cevar-se nos homens. O que eles queriam, esses colonos do Maranhão, era a liberdade de entrar abusivamente pela propriedade e pela segurança dos outros.
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Não podendo, portanto, os do Maranhão, tolerar as represas que lhes punha Antônio Vieira à cobiça e à incontinência, cercaram os padres no seu colégio; tiraram-nos de lá no meio de apodos e injúrias; arrastaram-nos pelas ruas e obrigaram-nos a embarcar sem o conforto que exigiam a dignidade sacerdotal, os muitos serviços que tais homens tinham prestado ao Brasil. Senhores, tudo isto nos parece cruel, selvagem, absurdamente bestial; mas outra não é, através dos séculos, a longa história de apostolado católico. E, se dispostos vos achardes a um movimento de orgulho, acreditando viver em época de maior tolerância, lembrai-vos do que entre nós sucedeu, há dias, quando monges veneráveis pelo seu saber e pelas suas virtudes foram coagidos, de noite, e sob a iminência da morte, a deixar o seu cenóbio, asilando-se à sombra protetora do palácio arquiepiscopal. Hoje, como sempre, a liberdade é o mote, é o pretexto, é a falaciosa divisa, mas a realidade é a perseguição contra os que, desbravando os caminhos de Deus, encontram e têm que desalojar a serpe do interesse.
Não acompanharei, senhores, o padre Vieira em todos os incidentes da sua longa existência. Para isto fora mister não uma, porém muitas conferências. O que fica dito, é o essencial, e aqui não posso senão esflorar os assuntos, receoso de fatigar-vos.
(Conferência pronunciada a 22-5-1903, in Páginas escolhidas, por João Ribeiro, tomo I, 1906.)
MICROCOSMO
SUMÁRIO: Há vinte anos Rezando e chorando... A ironia do vencido Os louros que me furtaram Preso no Senado Uma inundação de bondade “Já vi o povo” Uma frase do Sr. Lafayette Punida pela Abolição A voz da justiça histórica.
Foi em 1888. Era um domingo; mas já se tinha resolvido que pela urgência da matéria haveria sessão no Senado, onde por esse tempo era eu redator oficial dos debates.
Um frêmito de impaciência agitava o espírito público. Pairava no ar qualquer cousa de insólito, de extraordinário, quase atingindo as raias do inverossímil. A abolição do cativeiro assim de chofre, num decreto de poucas linhas, transcendia a expectativa dos mais audazes e assoberbava as resistências dos mais conservadores. Todos nos sentíamos em uma dessas culminâncias, que são como que arestas por onde se efetua o divórcio das águas da História.
Ouvi missa, nesse dia, na pequenina igreja de Santa Ifigênia, na Rua da Alfândega. Impressionava-me um grupo de pretos que ali se achavam; homens e mulheres, alguns bem velhos... Rezavam e choravam silenciosamente... Não apanhavam, decerto, em toda a sua importância o grande momento social; mas nas principais linhas não lhes podia ele escapar Não há brutalidades de opressão que matem o amor da liberdade.
No Senado já se sabia que naquele mesmo dia tudo ficaria acabado. Esperavam-se contudo por um lado, receavam-se pelo outro as manifestações de Paulino de Sousa, um dos mais valentes e autorizados adversários do projeto libertador. O discurso veio, mas não inflamado de indignações e apenas saturado de pungentes e amargas ironias:
Não demoremos, porém disse quase textualmente o ilustre filho do Visconde de Uruguai , não demoremos por mais tempo a vitória dos abolicionistas. Ouvem-se desta tribuna os sons festivos das músicas. Consta que para a assinatura do decreto legislativo já baixou do Paço Sua Alteza a Princesa Imperial. Não façamos esperar uma dama de tão alta jerarquia!
Cito de memória, mas essas foram pouco mais ou menos as palavras do orador. Tenho ainda nos ouvidos a singular tonalidade com que as proferiu.
Depois a votação... Quando se proclamou o resultado, houver as galerias uma explosão que repercutiu e se propagou por fora na multidão aglomerada às portas do Senado. Estava consumada a grande obra... Não havia mais escravos no Brasil!
Foi invadido o recinto e vitoriado, por um grupo de abolicionistas, o Senador Dantas, que estava radioso lá no seu posto, na bancada à esquerda da mesa, dando e recebendo abraços infindáveis. Ofereceram-lhe uma enorme grinalda de flores artificiais, da qual ele arrancou algumas folhas para mas oferecer generoso!
Tome (sic), fulano disse que também te cabem alguns destes louros.
Pede a verdade se declare que nunca me distingui nos ardores da propaganda abolicionista, tal qual a planearam e foram executando os seus protagonistas; mas ao velho Dantas não era desconhecido o meu horror à escravidão, a franqueza com que no Jornal do Comércio mais de uma vez os verberei, e alguns quase nulos serviços que em tal sentido lhe havia prestado.
As folhas dessa coroa eu as pus numa pasta que nove anos depois os republicanos me tomaram (contra a minha vontade) ali no edifício da Liberdade, quando o destruíram e lhe deitaram fogo. Não somente os livros têm curiosos destinos, mas também os pedacinhos de glória. Habent sua fata...
Ainda não esqueci o aborrecido desgosto que tive de curtir ouvindo o fragor do turbilhão humano que se agitava na praça as aclamações incessantes, as notas estridentes das charangas, os foguetes, pontuação indispensável de todo o entusiasmo nacional ao passo que, retido pelas minhas funções, permanecia eu preso no velho casario da Rua do Areal, a consertar as frases dos excelentíssimos oradores.
Um deles, o estimável Senador Correia, bem me lembra que com imagem menos correta terminou patrióticas ponderações. Ele exortava os concidadãos a construírem sobre aquela cicatriz o edifício da prosperidade nacional... Estava escrito (segredou-me o sarcástico Francisco Belisário) que isto de Abolição havia de acabar sempre errado!
Quando logrei sair, na companhia do meu saudoso amigo Nicolau Midosi diretor de uma seção da Secretaria do Império e fundador de uma Revista Brasileira, que atingiu crescido número de volumes e antecedeu à do José Veríssimo estávamos persuadidos de que já se aplacara o movimento popular; mas quanto nos enganávamos! Era dificílimo romper a turba na Rua do Ouvidor. Para entrarmos no Jornal do Comércio, onde eu também colaborava na publicação dos debates, preciso nos foi, a mim e ao meu amigo, solicitar ingresso pela travessa lateral, aonde iam dar as oficinas.
De muitas janelas discursavam oradores, alguns fardados, do Exército, e com figuras do mais levantado entusiasmo para com a “mulher sublime que num lance de pena quebrantara grilhões três vezes seculares”. Abraçavam-se transeuntes que mal se conheciam. Nem uma desordem, nem uma disputa colérica! Uma inundação de bondade alagava todos os corações. Havia lágrimas em todos os olhos.
O Sr. Artur Azevedo, cujo republicanismo larvado ainda não fizera explosão, teve em uma de suas crônicas feliz expressão para pintar a intensa vida desse dia, o mais interessante talvez da nossa História:
Agora, sim disse ele já posso contar que vi o povo!...
E era realmente o povo, o verdadeiro povo, quem a 13 de maio de 1888 estuava nas ruas, confraternizava nos hotéis, nos botequins, nos restaurantes, onde não havia um lugar vago, sendo preciso esperar cerca de uma hora, para a mais incompleta refeição, pois que em toda a parte se tinham acabado as provisões... Pois se o povo, em massa, havia saído para a rua!
Quando, depois da meia-noite, fatigado, quebrantado pelo trabalho, pelas emoções, pelo contágio daquela nevrose inaudita e inigualável, consegui chegar a casa, e mais sossegado entrei a ponderar sobre tamanhos sucessos, ainda lá embaixo, na cidade, eu ouvia, das alturas de Santa Teresa, o surdo rumor da cascata humana.
Dentro de mim também soava o epinício da assinada vitória: Não há mais escravos no Brasil! Pareceu-me que mais acesas rebrilhavam as estrelas, e que nos rugidos do mar propínquo já não havia lamentos de escravos, senão rugidos de um povo senhor... Mas de repente uma frase se me acordou na lembrança, e gelidamente me impressionou.
Eu a tinha ouvido uma vez, no Senado, dos lábios do Conselheiro Lafayette, o emérito burilador de sentenças que se recortam na memória, nítidas e frias como as agulhas de neve em que se aguçam as cordilheiras:
“Têm-se visto (opinou S. Exa.) filhos que perdoam aos assassinos de seus pais; porém, jamais alguém viu que um homem perdoasse a quem lhe destruiu a fortuna.”
Triste, mas verdadeira observação, que muito não tardou a realizar-se!
O povo que a 13 de maio atapetava de corações o caminho por onde ao trono ia passar Isabel, a Redentora, indiferente lhe volveu costas, quando um ano depois a viu abatida, caluniada, proscrita e punida, até na prole, pelo grande crime da Abolição...
A mulher excepcional e abençoada a quem coube a dúplice glória de vibrar dois máximos golpes na escravidão, foi desamparada pelos seus colaboradores, pelos redimidos, e sozinha se achou acometida pelos rancores dos que na Monarquia, vingaram os prejuízos da fortuna...
Ela que, interrompendo a fatalidade hereditária, mandou que de ventre escravo nascesse livre descendência, vê hoje prolongada nos filhos a pena do exílio que lhes veda o ingresso em terras do Brasil...
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Estas reminiscências do magno dia são instrutivas: elas têm uma filosofia prática mais fortemente acentuada que as exortações dos moralistas.
Entre os delírios que circundavam o carro da Regente, em 1888, e o soturno embarque no Cais do Pharoux, antes do alvorecer do 17 de novembro, há uma lição da instabilidade das coisas humanas, uma dolorosa evidência do nada que somos.
Ovações, e protestos, discursos, poesias, palmas, flores, dedicações juradas, hinos, aclamações tudo como por encanto desapareceu; e de tanto só restou, na escuridão da noite fatal, a esteira fosforeante da lancha em que de vez se alongava Pedro II, com os seus.
De pé na plaga, só um vulto ficou, imóvel, e que até hoje assim se conserva.
Chamam-lhe Saudade, mas é a justiça da História, que incoercível desdenha as brutezas da tirania e os engodos da corrupção.
Deixai-me dar uma voz a essa Justiça, que emudeceu dolorida:
Benditas, benditas as mãos que em nossa pátria espedaçaram os últimos grilhões do cativeiro!
(O País, 10-5-1908.)
MACHADO DE ASSIS
Desejara não escrever sobre o caro morto. Outros já o têm feito. Outros ainda o farão melhor. Em sua glória, aliás, e definitiva colocação no panteon literário, nada pode influir o meu juízo nestas páginas efêmeras da imprensa, amanhã já dispersas, e que com razão têm sido comparadas aos antigos oráculos de Dodona, lançados em folhas de carvalho, com pretensões a dirigirem os povos, e logo tomadas pelo vento e por ele arrastadas ao limbo do olvido. Mas ninguém faz como quer. Insensivelmente se me volve o espírito para a câmara ardente onde no seu esquife enflorado se embarca o velho amigo, caminho da eternidade.
Eu não ignorava que Machado de Assis estava enfermo; e só me admirava a resistência daquele débil organismo, quando bem a cheio no coração o sabia ferido, desde que de súbito o colheu a irreparável desgraça a perda da mulher, em quem mais do que em nenhuma cabia o doce epíteto de consorte.
Dolorido ainda não há muito o víamos aí pela rua, ou na Livraria Garnier; mas singularmente se enganava quem o supunha vivo. Nem sempre se agoniza no leito. Agonia é luta, luta com a morte, que afinal sempre entoa o canto de vitória. O pobre Machado agonizava de pé, e ocultando na sua impassibilidade de moderno estoico os tremendos combates que lá por dentro se lhe travavam.
Quando quem escreve estas linhas começou a entender de literatura, já o nome de Machado de Assis era apontado como o de exímio cultor das letras. Sua obra poética, primeiro ensaiada em jornais e revistas, ia tomando vulto e formava volumes. Suas crônicas, seus contos, suas novelas repetidamente acusavam o lavor de um artista da palavra. De vez em quando apareciam no teatro algumas das suas tentativas dramáticas, e todas deixavam a impressão de um talento mesurado, e eurrítmico, isto é, que por principal mérito de forma houvesse o sentimento de comedido e decoroso, no sentido em que o tomava a estética dos clássicos.
Porque ele o era, um clássico verdadeiro, no tocante à forma, no minucioso estudo da língua, e no escrupuloso cuidado com que se apartava de quanto se lhe afigurasse dissonância.
Espírito assim conformado, claro está que não se podia alar em grandes surtos aos extremos em que por vezes o rigor da crítica apanha os geniais desvairos de um Shakespeare no drama, de Hugo no tentame lírico, ou de Hoffmann no conto. O famoso ne quid nimis (“nada em demasia”) achou no glorioso extinto impecável observante. Sabe-se que os termômetros comuns podem marcar desde os grandes frios, mais gélidos ainda que o próprio gelo, até a cálida temperatura em que a água se faz vapor; mas; por perfeita que seja a graduação, só aproximativas se revelam as indicações do instrumento. Nos extremos, então, muito é possível errar a observação termométrica. Quando, porém, para as temperaturas médias, dos aposentos ou dos corpos humanos, a coluna está preparada de modo que só funciona entre próximos limites, não é difícil apanhar com justeza diferenças mínimas, em décimos de grau. O termômetro estético do nosso Machado era um desses aparelhos de precisão, impróprios para as temperaturas violentas das paixões, mas admiravelmente calibrado para indicar e traduzir, com máxima exação, toda a gama das modalidades físicas entre dados limites, que aliás são os comuns na vida social.
A religião e a política, eis as duas causas por que mais se apaixonam os homens; e nunca ninguém as viu discutir pelo extinto chefe literário. É que isso, e com razão, lhe parecia uma luta, e ele absolutamente não se propunha lutar. Seu campo de ação ele o delimitara na expressão dos afetos brandos ou na crítica impessoal dos costumes crítica em que jamais se demasiava, não direi até a ferroada, porém mesmo até a picada de alfinete. As personagens mais ridículas e censuráveis, nos contos e escritos de Machado, nunca tanto o são que deixem de ser socialmente aceitáveis. Se fora a charge uma “publicação a pedido”, nenhum dos criticados acharia motivo para um processo por injúria.
Temperamentos assim tímidos e moderados não é raro que descaiam na fraqueza ou pusilanimidade; mas tal não sucedia com o nosso querido morto. Sua eurritmia (peço licença de voltar ao termo tão bem feito para dizer a minha ideia); a sua eurritmia estética prolongava-se no terreno moral. Incapaz de censurar com veemência um abuso, ele também o era de baixar à lisonja. Em suas relações oficiais sabia guardar conveniências, mas não se vergava a elas. Impoluto, impoluível no tocante a interesses pecuniários, tão absurdo lhe fora um conchavo, uma culposa complacência, quanto um solecismo ou uma vulgaridade estilística. Sabe-se que o arminho tem à lama horror instintivo, asseio que se exagera contando-se que, se acaso se mancha, logo morre de nojo. Daí aqueles altivos brasões dos Rohan, da Bretanha, onde figura o arminho com a legenda Potius mori quam foedari. Antes morrer que manchar-me! Soberbo lema de fidalgos; e que sem deslize da verdade também se pudera por sobre a lápide deste honrado homem do povo, tão fidalgo, ele também, na imaculável probidade.
Modesto nas suas origens, porque começou a trabalhar como simples operário tipógrafo, ele cresceu até às alturas em que o vimos, não por um desses abalos sísmicos com que frequentes emergem celebridades, como no Oceano Pacífico se improvisam ilhas; e antes a compararíamos, a fama literária do extinto amigo, àquelas outras formações madrepóricas, que lentas e lentas se vão erguendo do abismo, pelo trabalho acumulado de muitos anos. O que fora recife, alteia-se finalmente exornado de plantas, que um dia serão árvores, desatando-se em flores e frutos de bênção.
Quando se fez a Academia de Letras, realizada em meio da República essa criação aristocrática, ante a qual tinha recuado a democracia zombeteira do Império, se um por um se tomassem os votos para a escolha do chefe, creio que ninguém discreparia na escolha de Machado. Simpático aos mais velhos, porque com eles tinha vivido, ou de pouco os precedera; bem querido dos novos, para quem sempre usava de benevolência, escusando senões e propiciando tentativas Machado foi o cabeça unanimemente aceito pela indisciplinada grei dos homens de letras. Ninguém lhe tinha que exprobrar um ataque ou perdoar uma invectiva.
Quem isto escreve, entrou para a Academia sem saber como. Ouviu dizer que foi sua inclusão no douto grêmio a obra de um confrade com quem outrora havia mantido peleja, e talvez demasiado viva, o Sr. Dr. Lúcio de Mendonça. Se o boato é verdadeiro, só pode redundar em prol do imparcial confrade, que talvez errou, mas supondo fazer justiça a um adversário. Humilde lidador da imprensa, o escrevedor destas linhas ali tão deslocado se acha como, por exemplo, um soldado raso, todo empoeirado das suas marchas e do seu trabalho de sapa, entre donairosos generais, que em sábias manobras ideiam batalhas incruentas. Mas dos motivos por que acredita estar ali condecorado, sobressai o ter como pares alguns brasileiros de incontestado mérito. Era Machado o primeiro desses.
Impossível seria que em vida quase septuagenária, através da administração e das letras, ele não houvesse, muito sem o querer, gerado antipatias, não direi inimizades, e provocado indébitas agressões. Lá pelos intermúndios burocráticos não sei o que tenha ocorrido. Aqui nos literários, época houve em que Machado foi objeto de rijos e porfiosos assaltos... Mas nunca respondeu. A brincar com ele, uma vez, eu lhe disse que ainda o havia de obrigar a ter comigo uma polêmica.
Não faça tal, respondeu-me a gaguejar ligeiramente, que os partidos não seriam iguais : isto para você seria uma festa, uma missa cantada na sua capela, e para mim uma aflição...
Nunca verdadeiramente privei com Machado de Assis, mas de uma vez se me desvendou o homem íntimo e pelo seu lado meigamente afetivo.
Estava eu a conversar com alguém na Rua Gonçalves Dias, quando de nós se acercou o Machado e dirigiu-me palavras em que não percebi nexo. Encarei-o surpreso e achei-lhe demudada a fisionomia. Sabendo que de tempos a tempos o salteavam incômodos nervosos, despedi-me do outro cavalheiro, dei o braço ao amigo enfermo, fi-lo tomar um cordial na mais próxima farmácia e só o deixei no bond das Laranjeiras, quando o vi de todo restabelecido, a proibir-me que o acompanhasse até casa.
Tão insignificante fineza, que ninguém recusara ao primeiro transeunte, pareceu grande cousa àquela natureza retraída, mas amorável. Procurou-me de propósito para mo agradecer e, na longa conversação que então travamos, descobriu-me o coração ulcerado pela recente morte da sua Carolina. Após uma crise de lágrimas, ele me deixou profundamente entristecido: triste por vê-lo assim malferido, triste pela convicção de que para tal golpe não havia bálsamo possível.
Ao tempo em que por vezes nos encontrávamos em festas, tinha Machado uma frase feita, para designar a sua discreta desaparição, sem rumor nem despedidas: “Vou raspar-me à francesa!” Talvez por isto me parece que às pompas do oficialismo ele preferira que mais depressa o levassem para junto de um túmulo querido... Mas não censuro, antes aplaudo o ato do Governo com essas honras excepcionais a um homem que nada foi na política e que não deixa filhos nem parentes poderosos.
Vale! Tem saúde! diziam os romanos aos mortos bem-amados, fórmula absurda porque só aplicável aos vivos. Xaire! Regozija-te! exclamavam os gregos, e sem razão maior. No Cristianismo, que não é só a mais pura porém a mais bela das sínteses filosóficas, quão melhor nos exprimimos com o nosso adeus!
Ele é uma prece, uma suprema recomendação do viajor ao grande Espírito de amor e misericórdia. Adeus, irmão e amigo!
(Jornal do Brasil, 1-10-1908.)