DISCURSO DO SR. ATAULFO DE PAIVA
SENHORES Acadêmicos:
A primeira vez que tive a grande honra e me coube o regalo imenso de visitar a vossa Academia foi, precisamente, há quatorze anos, para assistir a uma sessão memorável. Celebrava-se a entrada triunfal de Afonso Arinos, a quem o Sr. Olavo Bilac recebia.
O poeta ia acolher ao romancista, e este nos dava a conhecer, num primoroso lavor, os traços mais palpitantes da vida íntima e da existência política e literária de Eduardo Prado, que, mercê da singular harmonia da sua curiosa individualidade e da sua feição intelectual genuinamente combativa, se elevou às transcendentes regiões da Arte, compreendendo e ao mesmo tempo amando, com o seu espírito superior e forte, os destinos e as glórias da nossa nacionalidade.
A esse tempo o vosso augusto grêmio bafejado ainda não fora por propícios Fados. Sem recinto próprio, assistia e deliberava em casa alheia, como prenunciou algures, com a costumada perfeição, o vosso confrade Sr. Mário de Alencar.
Havíeis então recorrido, em busca de agasalho, ao Gabinete Português de Leitura, para que, sob a vossa égide, luzir viessem, em noite que inolvidável ficou, duas refulgentes estrelas da literatura pátria.
É mister se conheça de perto aquele belo edifício, um dos raros exemplares da arte pura que alindam esta grandiosa Capital, para que se tenha uma aproximada impressão da importância e do brilho de que se revestiu aquela reunião acadêmica.
Os pioneiros criadores do “Gabinete Português” quiseram dotar a cidade com um monumento artístico, elegante e suntuoso, espécimen impecável do gênero gótico-manuelino, que bem simbolizasse as aspirações, os sonhos e todo o admirável conjunto dos ideais lusitanos. O artista quis, antes de tudo, deixar fielmente reproduzidos os caracteres originais e altamente respeitáveis da tradição. E o tradicionalismo, em todas as épocas, não deixará de ser a expressão do nosso melhor amor e gratidão ao passado, muito embora cedendo o passo, pelas injunções do progresso, à formidável ação do evolucionismo, que se tem de moldar aos ciclos e aos ritmos do ideal, assim na arte, como na própria ciência, e assim na estética, como na literatura.
Eram, no entanto, o tradicionalismo e o evolucionismo que se davam cordialmente as mãos sob os hospitaleiros tetos da biblioteca lusitana, onde a harmoniosa combinação das linhas graciosas e os delicados primores da arquitetura faziam resplandecer a calma imponente da sessão acadêmica.
Na cadeira da presidência sentara-se Machado de Assis e na fila de acadêmicos divisava-se o Barão do Rio Branco, que pela vez primeira se apresentava às cerimônias da Academia. Débil claridade derramava-se por todo o recinto, imprimindo ao ambiente uma nota empolgante e respeitosa. A esse tempo já era indício de bom gosto a luz morna misteriosa, das câmaras solenes, dado que a orgia estonteante dos candelabros irradiando a flux, chocava e contrafazia as pretensões, aliás justificadas, dos artistas de boa têmpera.
Afonso Arinos, falando em meio de religioso silêncio, despertou logo particular encanto, mormente quando, num misto de admiração e ternura e com o sutil e raro poder descritivo que tão próprio lhe era, discorreu minuciosamente sobre toda a obra do ilustre paulista, estudando-a em seus íntimos recessos. Por sua vez, o Sr. Olavo Bilac, cantando na sua prosa feiticeira as boas-vindas ao novo hóspede, produziu um discurso que é uma eloqüente e peregrina página aditada à sua extensa obra, patenteando como estava digna e naturalmente destinada a cadeira de Eduardo Prado ao seu carinhoso amigo e seu par na inteligência e no caráter – o escritor genuinamente nacional do Pelo sertão. E, findas que foram as duas formosas orações, espalhou-se por toda a sala, entre palmas fragorosas que por muito reboaram, um murmúrio sensacional e intenso de prazenteira expansão.
Volvidos apenas oito meses, e quando extintos se não achavam ainda os rumorosos ecos da festa acadêmica (assim vo-lo pode revelar agora um pesquisador paciente), eis que um velho livreiro, lidador, generoso e amante do brasíleo solo onde formara quantioso pecúlio, legava em testamento, a esta instituição, a soma vultuosa de alguns milhares de contos de réis, para que ela, levando a efeito mais fecundo programa, alcançar venha com melhor proveito os seus superiores desígnios.
Com esse notável episódio, deveras auspicioso para o vosso grêmio, tenho encerrado a lembrança do simpático acontecimento cuja indelével impressão debalde vos tento exprimir sob a excepcional comoção que ora me avassala.
De indústria, pois, e só de indústria, é que neste momento vos recordo a forte refulgência daquela festa literária, uma das mais sublimadas de quantas heis celebrado, e só assim lícito se me torna, afinal, fazer-vos, antes de me sentar nas vossas honrosas cadeiras, uma confissão desassombrada, embora rude, no singelo propósito de deixar desvendado, esclarecido, sem vacilações perturbadoras, o segredo da minha convergência para o vosso egrégio cenáculo.
Fulminaríeis, indubitavelmente, com o peso máximo da vossa condenação quem, malbaratando tão nobre companhia, aqui entrasse, a praticar, em contrário da mais estreita lealdade que vos é devida, o mais feio dos delitos morais – a insinceridade.
Afeiçoado à conscienciosa meditação, desenvolvida por um espírito aplicado e resoluto, e aspirando ao aperfeiçoamento social, pelo comércio afável e sadio dos homens, retirei-me cheio de encanto e enlevado daquela solenidade, não sem deixar de experimentar um sentimento indeciso de inveja, sim, de inveja, por partilhar do excelso destino reservado à vossa douta e seleta grei. Não vos alvoroteis, senhores, não vos aflijais à só idéia de que eu intente dar honras de excelência moral e foros de dignidade a um dos sentimentos de pior casta – a inveja, – paixão essencialmente concêntrica, incutida e fecundada por vício dos mais abomináveis – a depravação do amor, – inspirada por pensamentos sombrios e tumultuosos, por consuntivos pesares, pelo egoísmo ferrenho, por ambições pecaminosas, por incontida apetência unida a um surdo rancor, paixão inimiga dos grandes corações, ora calma, dissimulada, precavida e mesta, ora folgazã, incauta, desfaçada e ardente.
Cousa complexa, intrincada e melindrosa, bem se vê que a inveja é, de todos os sentimentos ocultos, o mais difícil, talvez, de ser analisado e, certo, um dos mais raramente compreendidos. Às vezes, uma existência inteira não basta para a revelar, porque o indivíduo enfermiço disfarça suas mazelas sob o manto de uma exterioridade complacente, entretanto que ela por aí vai vivendo a sua existência cobarde e malsã, alimentada somente de ideais impuros e vis, sempre pronta a abater caracteres, a macular tudo o que é do bem, tudo o que é sincero, tudo o que é elevado e nobre.
Vestindo vários aspectos, ela envolve, em sua forma habitual, um desejo licencioso, temperado de desgosto e gana, nascido da simples contemplação da fortuna, da alegria, da ventura, da posição, da saúde, da beleza, do bem-estar, do repouso do que, em suma, possa constituir ou mesmo parecer a felicidade ou a razão do relevo de outrem na vida. Conseqüentemente já não causa pasmo que ela chegue a cravar seus felinos olhos em cousas mais subalternas, que deveram passar despercebidas até às almas mais irrequietas.
O que nos enche de assombro é a afetada despreocupação, é a indiferença simulada com que – vã ilusão – espíritos que se não pode deixar de reconhecer superiores fingem, amiúde, não se entreter com as inocentes frivolidades de que é tão fértil a ingenuidade humana. Observando com excepcional sagacidade, outro vosso companheiro, o Sr. Paulo Barreto, em uma das suas crônicas sociais, deliciosamente assinala, por exemplo – a inveja da elegância masculina. Da elegância masculina! Mirabili dictu! E aprecia:
“Não há raiva mais feroz do que a desta inveja – a raiva que os outros homens têm dos homens com o gosto de saber vestir. Tem-se comentado muito os olhares das mulheres para outra mulher bem vestida, mas ninguém nota o rancor dos homens em presença de um homem bem vestido. As senhoras, quando vêem passar ou conversam com os homens notáveis, acreditam que da futilidade do trajar só cuidam os encantadores. Engano! Cuidam todos.”
E o Sr. Paulo Barreto conclui afirmando “que ainda ao encontrou um só homem, em evidência ou não, que não fosse suscetível ao elogio que lhe fizeram do fato”.
Mas o estranho sentimento de que teria sido tocado o neófito que a palavra vos dirige é antes uma nobre pseudo-inveja, cuja misteriosa força sutilmente afaga e em breve domina todo homem vibrátil às emoções supernas, sensivo, pois, às seduções da Arte; é esse mal necessário de que falava o irreverente Voltaire, – “que no caminho da virtude toda alma superior sente no seio e, como uma leve ferretoada, nos compete a proceder melhor”; é a expressão do anseio espontâneo e aperfeiçoador de privar com o mérito verdadeiro, muito própria, aliás, dos amadores de justas práticas moralizadoras, os quais se comprazem em ver através da vida o anelo alentador, de gozar o próximo sucesso nascente, aureolado por todos os predicados de nobreza, e as glórias do triunfo celebradas pelas mágicas forças do mundo social.
E verdade é que a Academia só começou a ter definido e acentuado o seu relevo quando, por seu turno, entrou a ser invejada. O fenômeno aí está, perfeitamente caracterizado, para grande júbilo dos vossos ideais.
Nunca nos faltou nesta terra a aspiração de afeiçoar, congregar, de alguma sorte atrair, numa colaboração eficaz e conjunta, os elementos que despontavam e propendiam para o cultivo da literatura nacional. Não obstante o sentimento de sociabilidade, sempre tênue e lasso, fugia a todos os esforços. Os grêmios de letras dispersavam-se e desapareciam, a maior parte das vezes, no meio da apatia e da descrença geral. Ninguém punha dúvidas, e mui naturalmente, como resultado da severa lógica dos fatos, nesta injustiça que por aí corre incontestada, de que, como em tudo o mais, nas questões literárias, o espírito associativo dos brasileiros é totalmente nulo e não passa de um capricho efêmero e ocasional.
A Academia resistiu, com pujança admirável, a esse preconceito supersticioso. Não lhe faltaram, porém, dissabores e obstáculos. Durante os três primeiros lustros, sem embargo do devotamento dos seus fundadores, teve de suportar a triste situação da indiferença, que é um dos grandes males que friamente perpetram os incrédulos de todas as nossas obras coletivas.
Bem certo é que o vigoroso surto que ela ofereceu posteriormente só se acentuou melhor quando as vossas sábias deliberações começaram a ser apreciadas, discutidas, criticadas ou combatidas. Nem lhes faltaram, de par com as expressões zombeteiras dos irônicos, os balofos remoques e as chufas dos maliciosos, que nunca falham, mas que servem, insensivelmente, para excitar a ação orgânica e consciente das fortes e sinceras esperanças. A própria oposição à célebre e malsinada teoria dos expoentes, cuja criação se deve à inspirada intuição e ao poderoso sentimento confraterno do Sr. Afrânio Peixoto, nunca passou de um pretexto e não passa mesmo de sintoma. Sabem todos que pelas mãos dos genuínos letrados é que penetram neste instituto aqueles que expressamente pertencem ou não à verdadeira república das letras. Certo, os últimos não se sentem exilados, porquanto desde que pisam a vossa passagem vestibular, defrontam justamente os compatrícios que no romance e na poesia conquistaram posição de escol e, na primeira linha, os recebem de braços abertos, fazendo-os encontrar neste recinto, como era seara abençoada, um amplo regaço de benevolência e de liberdade.
Elevando-se ao grau a que atingiu, esta instituição, já agora admirada, querida e elogiada, entrou a realizar a sua função primordial: ser uma associação fundamentalmente representativa da cultura brasileira. A grandeza e o sucesso da Academia já eram, pois, um fato, e a vontade daqueles que granjearam o seu glorioso convívio sobejamente se justificava, ainda antes do simpático movimento do milionário munificente que, amando-a em recatado silêncio, pode enriquecer-lhe o patrimônio financeiro num impulso raro e nobilíssimo.
Senhores. Julgo ter dito bastante dos motivos que me arrastaram até vós, para que tente dissimular a viva emoção que me domina ao receber, neste ato, a vossa dignificante investidura. Dou-vos nesta oração um imperfeito atestado dos sobressaltos, da perplexidade do desassossego que experimentei quando me preparava para bater às vossas portas, a solicitar os vossos honrosos sufrágios. Alguns dentre vós, com quem de longe em longe e porventura me avistava, mal sonham a irresistível atração que, de velha data, sobre meu espírito vinham soberanamente exercendo e, se lícito lhes fosse adivinhar, ter-se-iam certificado, pelo meu ar febricitante de lutador, quanto vacilei, como muitas vezes me faltaram a coragem e a energia para arrostar o preconceito esdrúxulo que se me antepunha anomalamente, e tanto mais que até então não ousaram levantar a cabeça além das minhas humildes aspirações, pois bem sabia que elas não podiam ascender à altura em que pairam os vossos decretos.
A vossa indulgência – ainda uma vez mostrastes – não tem limites. Inteiramente despreocupados de considerações estranhas, haveis invariavelmente feito assentar nessa cadeira que, aliás, pertence a um dos mais inspirados poetas, somente os cultores das letras jurídicas, e, naturalmente, esse foi o único título que justificou a aceitação do nome que se vos apresentou e explica, por um lado, a vossa benévola acolhida e, por outro, o motivo da sucessão.
Nem quisestes indagar de certos traços – com reverência o digo – diametralmente opostos e inconciliáveis das duas individualidades que ora se substituem. Artur Orlando, a quem me cabe a honra de suceder, sob a sua fisionomia um pouco tediosa, posto que extremamente simpática, descuidada de ademanes, despida de convencionalismos, com o seu aspecto às vezes algo embuchado e bisonho, ocultava títulos preciosos, de segura indulgência, revelando logo, pela sua riqueza intelectual, o exato senso, o vigor das idéias, notável e não vulgar penetração científica. Patenteando naturalmente e com sinceridade um largo desprezo pelas cousas fortuitas, ele começava mesmo por ter esse precioso privilégio dos homens superiores: – não fazia cabedal nem caso da compostura do vestuário.
Admiro e louvo sem restrições a respeitável e distinta classe de seres invejáveis que avaramente guarda, na despreocupação das vestes, a linha da sua impecável gravidade e que, ocultos sob o desalinho e o disparate das roupas, não necessitam dos frívolos incômodos e enfadonhos artifícios da gente rebuscada para que, mesmo longe, nos deixem ver, dentro da sua massa impertérrita, às vezes desgraciosa, mas sempre venerável, o bom senso, a circunspecção e tudo quanto enfim é capaz de integrar a pureza e a preeminência dos caracteres ilibados.
Desses predicados valiosos, infelizmente, não se forra o vosso novo prosélito. Uma inclinação natural e espontânea, muito compatível com a sua alma ingênua de modesto provinciano, levou a pensar (naturalmente em erro) que não seria pelo cultivo de algumas inocentes bagatelas e fugidias nugacidades que se haviam de desencadear as desgraças, as calamidades publicas e os flagelos da humanidade. Afeiçoando-se, pela regra apelidada de bom gosto, ao feio e quase execrável pecado do mundanismo (e a expressão aqui nada mais significa do que o inverso do retiro sombrio e do tugúrio convencional onde se recolhem, em vida contemplativa, sábios mestres e divindades lunáticas do falso entendimento e do rude siso), imaginou que, provido de calculada dose de bom senso e recatada alegria de fruir a vida, esse devia ser, na verdade, e à míngua de outros, um ponderado recurso de parecer educado e conviver em sociedade. E, se uma nítida compreensão de sensatez, que sabe medir e procura se elevar, não o lançou jamais além das linhas de esmeradas correções, nunca sentiu bem por que se não havia de tolerar essa culpa levíssima, que, mesmo no trajar, sem os adornos da ostentação ou do exagero, quer revelar a intuição consciente das regras do bom tom.
Os bons exemplos não merecem abandono. Nos tempos da oposição ao cesarismo romano, o filósofo Traséia era uma figura que atraía todas as atenções da sociedade. Homem do mundo, em toda a significação moderna da expressão, a sua casa se notabilizava e distinguia pela freqüência contínua das senhoras de boa companhia, e, amando apaixonadamente o teatro, chegou mesmo, certa vez em Pádua, sua pátria, a surgir no palco, em costume trágico, escandalizando a todos. Não obstante, esse varão ilustre, cuja austeridade não tinha limites, era, no conceito dos historiadores, o mais honesto homem do Império, de uma doçura e de uma tolerância inigualáveis para com os virtuosos e os humildes, e foi até uma das vitimas de Nero, quando, em pleno Senado, recusou conceder honras divinas a Pompéia.
Não precisamos, porém, lançar vistas para tão longe. Nós mesmos presenciamos a mesquinha guerra com que aqui se flagelava um certo Joaquim Nabuco, cuja figura aureolada cometia, aos olhos de muita gente, o feio crime de manter impecável a sua elegância de fino cavalheiro, não se lhe perdoando que para o seio de Câmara dos Deputados levasse o seu fraque talhado rigorosamente e marcado por um vistoso cravo rubro, que alarmava a representação nacional. Não teve outra fonte a ironia – Quincas, o belo – com que o cognominaram por longo tempo. Contudo nem o tremendo sacrilégio de que o criminaram impediu que ele se erguesse à altura de grande brasileiro, recebendo em estátua a sua justiça consagração, porque soube ser um dos grandes paladinos da redenção dos escravos; foi, como embaixador, um dos mais ardorosos defensores dos interesses internacionais da nossa Pátria e ajudou eficazmente a fundar uma Academia que é o centro mais brilhante da nossa cultura intelectual e o mais notável acontecimento da história literária do nosso país.
Naturalmente há de surgir por aí algum inquiridor perserverante que se incumba de estudar e descrever como se forma entre nós a lenda do dandismo e como, da noite para o dia, na nossa vida social, aparecem guindadas, como que eleitas, à eminente posição de árbitros petronianos umas pobres e modestas criaturas que, sem embargo, são de surpresa colhidas com as excelsas honras que assim se lhes conferem, só porque tiveram sempre a simplicidade de acreditar que a gentileza do trato, a amabilidade, a doçura da palavra, os gestos corteses de sociedade e de salão e o distinto convívio das damas continuam sendo formas e expressões de sentimentos apurados e nobres. Todavia tais supostos árbitros devem bem saber e convencidos estar que razão de sobra assiste à triunfante legião dos espíritos superiores, que nunca malbarataram o tempo em quejandas futilidades, erradamente tomadas por alguns filósofos lá da outra banda do oceano como índice de requinte social.
Mas as discórdias e desinteligências essenciais, que, para ventura de todos, hão de sempre nos preservar da uniformidade acadêmica, nunca foram embaraço para as vossas deliberações, pois tudo isso pouco importa à Academia, à qual, como ao Paraíso e ao Inferno, – na expressão do Sr. Olavo Bilac –, por diversos caminhos se pode igualmente chegar.
Quando Artur Orlando mereceu a vossa alta consagração, já era portador de uma obra que, pela sua feição profundamente conscienciosa, discreta e sincera, alimentada pelos grandes ideais de liberdade, justiça e democracia, tinha direito e fazia jus às homenagens dos pensadores contemporâneos. No seio da serena e laboriosa existência, o seu espírito livre e extremamente emancipado e a sua forte educação clássica formaram o trabalhador profundo e infatigável, perito em lavrar com mãos delicadas as substâncias preciosas das ciências e das letras.
Nenhuma análise, por mais fina, exata e penetrante, poderia descobrir, isoladamente, a matéria geradora em que se fundiu o espírito superior do pernambucano ilustre cuja sucessão ora se opera. Ela somente brotaria inteiriça e consolidada pelo amplo estudo que, algum dia, se fizesse da atmosfera, do meio, do ambiente moral em que ele cresceu e viveu, onde começou a fazer a prova da sua intelectualidade, desabrochando afinal em perspectivas luminosas, em revelações progressivas e triunfais.
Sílvio Romero, na História da literatura brasileira, pretende que houve uma escola baiana, pelos fins do século XVII até ao começo do século XVIII, mais tarde uma escola mineira, uma paulista, uma maranhense e outra pernambucana, segundo os lugares onde se foram reunindo grupos seletos de homens cultos cuja produção literária tomou vulto e deixou fundas raízes na história do pensamento nacional.
A classificação não passou sem contraditores. A crítica de escol arma uma pena vigorosa para lhe lançar a refutação. José Veríssimo, a propósito da falada escola mineira, insurge-se contra a tendência de se criarem na nossa literatura essas entidades fictícias, essas feições e aspectos que todo o talento dos inventores não bastou para realizar ou fazer aceitáveis. Não há escolas de idéias nem de obras, mas simples agrupamentos artificiais de indivíduos que somente o acaso do nascimento e da contemporaneidade juntou, sem algum laço ou requisito comum.
Georges Brandes socorre e ampara os conceitos do crítico. Um grupo é o resultado da união natural e desinteressada entre espíritos e obras de uma tendência comum; uma escola é o resultado de uma comunidade consciente de autores que se submeteram à direção de uma convicção qualquer mais ou menos distintamente formulada. E Veríssimo arremata agora: o que separa a escola do grupo (e a distinção é intuitiva) é não haver no grupo senão a camaradagem literária, a união natural de tendências comuns e, ainda, de um comum espírito, ao passo que o que caracteriza e define uma escola é a existência de um credo literário ou estético ligando autores que podem, aliás, ser de tendências diversas, mas que consciente e voluntariamente seguem a mesma estética.
Sem o querer, talvez ao impugnar o princípio, José Veríssimo, definindo-lhe os característicos, explicou a maneira, traçou a forma por que se consubstanciou de modo todo particular essa admirável agremiação que no Recife marcou o vasto horizonte das letras nacionais. Simples grupo regional de literatos ou escola consagrada de cientistas, o nome pouco importa. O essencial é o fato. A obra e a ação fundiram-se. No meio das controvérsias e das discórdias, a filiação dos espíritos acentuou-se, aproximando-os numa comunhão de idéias capitais. Para que não faltasse nada ao cometimento, onde não havia somente um agrupamento acidental de prosadores e poetas, salientou-se a chefia consumada e segura de uma inteligência poderosa que desbravou o terreno e traçou diretrizes – Tobias Barreto.
O movimento seccionou-se em períodos perfeitamente caracterizados. A sua primeira fase foi poética. Castro Alves, Tobias, Palhares, Luís Guimarães, Pinto de Lima, transportaram para a língua portuguesa as vibrações altissonantes, as antíteses e a suavidade da lira hugoniana. Eram os condoreiros que contribuíram para dar vivacidade e brilho ao estilo dos nossos beletristas. Isso foi pela década de 1860. Na década seguinte a crítica toma a dianteira à poesia, que se modifica. Sílvio Romero, Celso de Magalhães, Sousa Pinto, Generino dos Santos, Inglês de Sousa, Justiniano de Melo, aparecem nessa quadra.
De 1870 por diante acentuam-se as tendências científicas dos estudiosos do Recife. É a fase de iniciação filosófica. Já em 1868, Tobias chama a atenção para o positivismo, que começa a fazer prosélitos nesse centro literário. Mas, após a guerra franco-alemã, as suas vistas se voltam para o pensamento germânico. Littré e Spencer, contudo, mantêm o domínio dos espíritos. Há principalmente uma fascinação viva e completa, em toda a massa pensante da mocidade acadêmica, pela obra vigorosa, fecunda e original do sábio britânico.
Ninguém se julga suficientemente instruído e verdadeiramente intelectual sem sobraçar, pelo menos, algum dos dez volumes do Sistema de filosofia. Nas estantes de todas as bibliotecas há de aparecer, bem saliente e viva, de vermelho, se possível for, a lombada dos Primeiros princípios, dos Princípios de biologia, da Classificação das ciências, da Filosofia do estilo, da Gênese da ciência, da Estática social, ou de qualquer outro nobre condimento com que se manipula toda a vastíssima, prodigiosa e preeminente doutrina spenceriana.
Nenhum discurso, nenhuma oração, dignos desse nome, passará sem uma referência à idéia da nova lei moral, que afirma a sua crença no conseguimento da perfeição da Humanidade ou no do progresso, que não é um acidente, mas uma necessidade. Longe de ser o produto da arte, a civilização constitui uma fase da natureza como o desenvolvimento do embrião ou a eclosão da flor.
Nos livros que dos prelos saem, como nas palestras literárias, se há de necessariamente falar na psicologia experimental, que ensina a descobrir, descrever e classificar as diversas modalidades da sensação e do pensamento, no estudo não só estático, mas também dinâmico, que não constata apenas os fatos, mas ainda a sua gênese, o seu desenvolvimento e as suas transformações.
Com o concurso de Tobias Barreto, em 1882 – ato que constitui um verdadeiro acontecimento literário, pela grande repercussão que teve – iniciou-se a última fase da escola, a mais fecunda, mais duradoura e mais brilhante: a fase jurídica.
O mestiço genial, que surgira do seu retiro da Escada, para deslumbrar a mocidade, com a sua palavra ardente, e os mestres, com o seu vasto saber, trouxera a concepção monística do Direito com Haeckel, Noirée, Ihering, Hermann Post e toda a plêiade de pensadores e juristas alemães. Ao fragor da sua crítica e à sedução da sua propaganda, os estudos receberam uma nova e fluente orientação.
A filosofia do Direito sem o Direito Natural, a arqueologia do Direito, olhada pelo prisma do evolucionismo, a etnologia jurídica, os modernos processos da criminalística, começaram a ser objeto de acurado estudo entre nós. Foi a Escola do Recife que familiarizou os juristas pátrios com a nova feição dos estudos penais e foi ela que, primeira no nosso país, fez uso do método histórico comparativo aplicado aos estudos do Direito. Leve-se à conta do seu alto crédito esse último serviço prestado à nossa literatura jurídica.
O Congresso de Direito Comparado, de Paris, em 1900, com Raymond Sallells à frente, teve o único intuito de chamar a atenção do mundo pensante para a disciplina científica que impunha uma nova diretriz à ciência comparativa, pelo estudo paralelo das legislações sob a base da política jurídica, considerados, ao mesmo tempo, as tradições nacionais, o espírito público e as possibilidades práticas. O Direito Comparado passa a ser uma ciência que se constitui em estado independente, com o seu objeto próprio, suas leis e seus métodos, distinta da história comparativa das instituições e da própria Sociologia, embora esta, por sua vez, se sirva da história, que é o instrumento de observação por excelência, para pesquisar e estudar as leis que presidem à formação, ao desenvolvimento e, de modo geral, à própria vida orgânica da sociedade.
Não foi, portanto, sem grande ufania e não menor contentamento que o novo aliado que ora vos fala, assistindo e tomando parte naquela assembléia internacional de Paris, teve ocasião de verificar que, enquanto os eminentes congressistas franceses procuravam dessa maneira despertar a grande massa de juristas que pareciam ter perdido toda a consciência do laço que une o Direito ao desenvolvimento geral da civilização, já os pensadores pernambucanos conheciam a fundo aqueles conceitos, familiarizados que estavam com os nomes dos seus principais propagandistas, que eles tornavam conhecidos mostrando, em largo descortino, as grandes noções da interdependência íntima a cada momento observada entre aquele mesmo Direito e a evolução econômica social e política de todos os povos civilizados.
Tudo isso operou a escola pernambucana. E fez muito mais. Não é necessário exagerar-lhe os serviços para lhe acentuar os méritos. Sem dúvida, ela não conseguiu transformar a preocupação intelectual e metafísica da nossa raça, que é a idealização científica e a inspiração dominadora das nossas instituições lendárias e seculares. Através do período revolucionário, que está passando, toda a incomparável beleza do Catolicismo aparece mais forte do que nunca. A renascença do espiritualismo acentua-se, e a mocidade volve, de novo, a procurar na obra filosófica alguma cousa além do evolucionismo, que dê a medida, se não bem exata, contudo o mais possível aproximada das nossas tendências intelectuais, morais e éticas.
Quis, entretanto, a Fatalidade que, depois de lastimável dispersão, a morte, a crua morte, ceifar viesse muitas daquelas existências preciosas, fazendo desaparecer um a um quase todos os brilhantes combatentes. Sousa Bandeira foi o último dos extintos. Dos vivos somente quatro nomes estão em evidência pública: Clóvis Beviláqua, Urbano Santos, Inglês de Sousa e Graça Aranha.
A escola desfez-se, não sem produzir brilhantemente muitos e valiosos preceitos. Derramou um punhado de idéias novas que a geração seguinte só teve que assimilar, havendo, porém, cuidado pouco da frase e abusado muito de certo vocabulário haurido na História Natural e pelo monismo posto em voga. Mas as palavras gastaram-se no atrito da vida, e a substância espiritual que elas representavam afeiçoou o nosso patrimônio intelectual à meditação e a mentalidade nacional ao estudo dos novos problemas científicos, cuja orientação, sem dúvida, a escola não estabeleceu originalmente, mas, recebendo-a das fontes européias, adaptou-a ao nosso meio e calorosamente difundiu.
Jamais, contudo, a escola ocasionará o olvido daquele que fora o seu mais típico e glorioso representante. Tobias Barreto, bastante persuasivo, alma cheia de vigor e de expansão comunicativa, soubera fazer e cultivar não poucas afeições, tendo, por isso, encontrado, entre homens de nome feito, alguns que lhe prestaram o auxílio da sua simpatia, embora deles depois se separasse. José Higino e João Vieira estão nesse número. Todavia, entre os jovens a sua ação foi mais enérgica e mais viva, tendo sofrido notavelmente a sua influência Martins Júnior, Gumercindo Bessa e Fausto Cardoso, que não podem desde logo ser esquecidos, e, bem assim, Sílvio Romero, que já a esse tempo se fizera professor e se transportava para esta Capital, onde veio ser o paladino da escola que ajudou a criar e a desenvolver.
No Recife, porém, o discípulo mais ligado ao mestre, o mais devotado e mesmo mais querido era Artur Orlando. Oferecendo-lhe um exemplar dos Ensaios e estudos de filosofia e crítica, o famoso corifeu escrevera esta expressiva dedicatória: “A Artur Orlando, o amigo incomparável, o companheiro de batalhas, do qual bem pudera dizer o que disse Hugo de Lamartine, que somos uma espécie de par homérico, sendo ele quem traz a lança e eu quem dirige os corcéis.” E não houvera exagero no colorido nem excesso no tom carinhoso e no enunciado fraternal dessa oblação.
Orlando era um combatente às direitas, sempre alerta, para a defesa como para o ataque, nos jornais, nas revistas, nos livros, nas palestras; doutrinando, se necessário desmantelar teorias, e desferindo sarcasmos temerosos ou leves ironias, nas suas crônicas amenas e eruditas exposições, quando preciso meter a ridículo o adversário. Espírito sério, fizera, não obstante, as suas primeiras armas em um hebdomadário satírico, e o vezo da zombaria mordente lhe ficara nas curiosas malhas do seu espírito superior.
Estreou-se bravamente na vida pública, pondo logo em atividade as forças da sua natureza insubmissa e rebelde, a qual se revelou a pleno e subitamente em duas provas científicas a que fora submetido.
Adstrito para um concurso de Retórica, escreveu de improviso uma belíssima dissertação sobre o “estilo”, em que as idéias de Spencer eram rigorosamente aplicadas. Mas todo o seu esforço oral para integrar a disciplina se desmoronou diante do contraditor, que lhe abateu os vôos pelos domínios da psicologia, da história literária e do evolucionismo, pedindo-lhe, num solerte golpe de surpresa, que medisse e classificasse umas odes de Horácio. Orlando possuía o sentimento do ritmo. Parecendo-lhe, entretanto, que desviar o curso das idéias da arte de escrever, a fim de apontar os versos sáficos ou adônios e os pés “dáctilos” ou “espondeus”, era amesquinhar ali o concorrente, retorquiu por meio de um público protesto, feito com o calor da sua alma de moço. A prova, de seguida, era anulada.
Noutro concurso, da Faculdade de Direito, as idéias novas de que ele era portador ocasionaram um ruidoso escândalo acadêmico, semelhante ao que provocara Sílvio Romero quando, perante a congregação do mesmo instituto, declarava, anos atrás, que “a Metafísica estava morta”.
Sabido é que ninguém mais do que Artur Orlando fez timbre especial de usar e ainda de abusar de um vocabulário arrevesado e complexo, posto que bem significativo e apropriado aos princípios que revolucionaram as longevas tendências filosóficas. Até nas expressões e na forma era preciso deduzir tudo das ciências naturais e econômicas, as quais se deram as mãos para que fosse afirmada a idéia de solidariedade no mundo biológico e social. Ele dissera mesmo, nos seus Novos ensaios, que “a concepção nova da matéria, como uma substância inerte e indestrutível, já não pode satisfazer às vistas largas e extraordinariamente belas do espírito moderno. Este se elevou a um plano superior ao mundo da matéria propriamente dita com as suas conhecidas propriedades cinéticas, físicas, químicas, elétricas, magnéticas.
A dissertação do exame versava sobre “o momento histórico das leis”. É um trabalho profundo e cheio de observações curiosas o que ele produziu. Apesar de se tratar de tese quase que inteiramente de Direito Positivo, o autor achou meios e modos de encaixar todo o rosário das suas idéias reformadoras e revolucionárias, a começar pelas denominações características. Trata-se de problema de “fisiofilia processual”, disse ele logo no princípio da dissertação. Webber, Bergman, Struve, Meyer, Savigny, Imbert, Iasale e Gabba só tiveram fantasias subjetivas e fizeram somente distinções sutis. A vida jurídica, como qualquer outra vida, tem formas e funções, e daí uma “morfologia” e uma “fisiologia” do Direito, influenciando-se reciprocamente, sendo uma o complemento da outra. O conceito de Mesmer ampara o concorrente. O princípio da gravidade universal, resolvendo todos os fenômenos do universo, ligando o mais pequeno corpo ao maior através dos espaços interplanetários, foi a força suprema que expulsou a Teologia e a Metafísica do governo moral e social, como já as expulsara da Física, da Química e da Biologia.
Os venerandos e provectos professores ouviam, confusos e alarmados, a audaciosa exposição. O candidato prosseguia, impávido e sem se perturbar. Como criação histórica, como experiência capitalizada, como produto da ação coletiva, o Direito nada tem de absoluto, de universal e de eterno. A sua relatividade comprova-se. A sociedade é uma combinação binária de pessoas e de cousas. Ela supõe a riqueza, como supõe a coletividade. Como elemento “histológico” do corpo social, a riqueza é de importância capital na vida jurídica. Não sendo a riqueza, em última análise, senão um aumento de força diretriz na mudança de lugar e de estado da matéria, segue-se que a alma mater do Direito é a atividade humana. As múltiplas atividades consideram-se milagres perpétuos, inexplicáveis, no seio dos fenômenos “físico-químicos”, ou simplesmente resultantes das forças ordinárias da Natureza, de acordo com a concepção monística do universo. Há uma espécie de equilíbrio. É a feição do “cosmos” jurídico. O Direito passa a ser a disciplina das atividades sociais.
Artur Orlando vai além. Um recuo nunca seria movimento digno da sua probidade científica. É mister levar a coerência às suas conseqüências derradeiras. Afirma ele que deve haver “relação etiológica” entre a “solidariedade do crime” e a “solidariedade do processo”. E lança, afinal, esta proposição singular, que causa forte estranheza e chega a fazer época nas rodas acadêmicas do Recife: “As ordálias no processo são provas ontogenéticas do desenvolvimento filogenético do direito por meio da luta.”
A velha congregação estremeceu, transida de espanto. Trava-se acalorada discussão. Há mesmo um desagradável atrito entre examinadores e o candidato, que prefere desistir das provas, retirando-se do concurso. E, desse conflito entre o monismo “haeckeliano” e o espiritualismo clássico, resultou a desanimação de Orlando, que não mais se quis submeter às demonstrações acadêmicas.
A cátedra da Faculdade perdera indubitavelmente um grande professor, e Orlando, a seu turno, uma posição condigna; mas nem por isso a curiosa esfera da atividade intelectual do ex-concorrente deixara de se entreabrir em vastos e promissores horizontes. Um largo período de intensa atividade põe em vivaz e eloqüente prova os ricos e interessantes aspectos do seu poderoso espírito, moldado pelas forças resistentes e confortáveis da Natureza, que ele amava apaixonadamente.
Em certa ocasião, Artur Orlando, explicando os elementos componentes da sua formação literária, diz que mais devia à Natureza e à vida do que aos mestres e aos livros. Destes últimos o que mais concorrera para o preparo da sua mentalidade foi a coleção das Fábulas de Fedro, em cujas páginas se refletem, como num espelho, todas as forças naturais. Depois foi o D. Quixote, no qual Cervantes, provocando o riso à custa das loucuras e ridículos humanos, há feito mais bem à Humanidade do que todas as escolas. Existem cousas na vida que somente se corrigem à custa de muita gargalhada, e o riso, pode dizer-se, é exclusivo da espécie humana, sendo o mais poderoso e humano instrumento de seleção social.
A seguir, confessa que o gênio de Henri Heine, com o néctar de seu divino “humour”, lhe produzira uma verdadeira embriaguez intelectual. Kant e Tobias Barreto, Spencer e Sílvio Romero guiaram as inclinações da sua filosofia; mas a matéria-prima da sua educação foi, através de densas brumas e vagas nebulosidades, a Natureza e somente ela, com todo o brilho das suas cores, com toda a elegância das suas formas, com toda a suavidade dos seus perfumes.
Dessas qualidades ardorosas da inteligência, desordenadas, às vezes, mas sempre opulentas e exuberantes, é que nasceram, vicejando com pompa e graciosidade, os dons preciosos do crítico e do literato, do sociólogo, do político, do administrador, mas, sobretudo, do jornalista e do escritor, porque Artur Orlando, servindo-se da sua erudição surpreendente, sempre progressiva e fecunda, se distinguiu, antes de tudo, pelos contínuos e brilhantes combates de imprensa, e, principalmente, pela grande produção de livros magistrais, que só não tiveram repercussão bem popular em razão de haver sempre caprichado em não disputar os sufrágios e favores, muitas vezes banais, da opinião pública. Como jornalista, não fez mistério, depois de longos anos de imensa laboriosidade, em traçar as suas impressões que, nada tendo de pessimistas, são, ao contrário, coadas através de nuvens róseas e desenhadas com as cores da esperança.
Ao Sr. Oliveira Lima deve-se o discurso de recepção de Artur Orlando nesta Academia. Se, com o merecido respeito, é lícito oferecer uma única refutação a esse excelente e magistral estudo de Oliveira Lima, cuja voz, para honra da intelectualidade brasileira, já tem ecoado até em fúlgidas moradas do espírito universal – Sorbonne, Harvard, Royal Society, – diremos que Orlando não era principalmente um filósofo. Fora de dúvida, tinha, como especial preocupação da sua vida, talvez até em grau maior do que qualquer outro escritor nosso, o amor apaixonado dos grandes princípios filosóficos, dos princípios e leis gerais, os quais, espraiando-se pelo seu robusto e ardente espírito, se alastravam afinal pelas menores páginas das suas produções literárias, sociológicas e, em geral, científicas. Mas ele não cogitava nem se ocupava exclusivamente de pesquisar, estudar e desenvolver a ciência universal dos seres, dos princípios e das cousas, para organizar, sob uma forma hodierna e com determinado grau de humano poder, um sistema original, uma doutrina ou um novo método, reformando de antemão a escola de uma época, de um povo ou de um simples agrupamento de homens.
Dessa magnífica estofa, seguro indício dos filósofos verdadeiros de profissão, a nossa pátria, infelizmente, ao que parece, não teve até agora a ventura de possuir um só exemplar, à exceção de Farias Brito, há pouco desaparecido, o único que, no meio da nossa valiosa mas revolta e desordenada evolução mental, procurou realizar, nos domínios da consciência e na esfera dos conhecimentos humanos, uma obra condensadora, rica de concepções novas e elevadas.
Artur Orlando, no afã prodigioso e na ânsia de tudo pesquisar, estudar e esclarecer, pois que era um leitor infatigável e um incansável trabalhador, teve, freqüentes vezes, necessidade, senão de abjurar, ao menos de transigir com as suas crenças filosóficas, que, aliás, nunca prejudicaram o curso caudaloso das suas admiráveis lucubrações.
O Sr. Clóvis Beviláqua, seu amigo devotado, admirador incondicional do seu talento e que hoje, mais do que nenhum outro, guarda sob legítimo orgulho, com a robusta e invejável mentalidade, as gloriosas tradições da Escola do Recife, prefaciando uma das suas obras, teve ocasião de notar que o autor se mostrava um revoltado contra tudo o que era fútil, tacanho, injusto, perverso ou torpe, ansiando por um mundo melhor e mais puro, mas que “andava atormentado pela dúvida, vacilando entre um ceticismo, ora sob a feição aristocrática dos Lange e dos Scherer, ora sob a modalidade motejadora dos Bayle, dos Leopardi e dos Schopenhauer”.
E Martins Júnior, igualmente outro amigo seu fraternal, também observou que Orlando “não teve e não quis ter sequer um sistema filosófico exclusivo pelo qual se modelassem as suas concepções e que por isso é que ele abandonou o positivismo francês, passando a travar conhecimento com aquele nebuloso Eduardo Hartmann, a que Jules Soury chamara – “o último cavaleiro das causas finais”.
Como ser francamente afeiçoado ao estudo da Filosofia e não propriamente um filósofo, nem por isso a figura brilhante de Artur Orlando diminui de valor ou perde de importância. Jean Richepin, da Academia Francesa, ainda há pouco realizava, na Universidade dos Anais, uma série das mais interessantes conferências, exclusivamente dedicadas ao exame e ao estudo da curiosa personalidade de La Fontaine, repetindo, acerca do mesmo, a conclusão, a que já chegara Taine, de que o poeta fabulista, pintando ou querendo pintar a sociedade do tempo de Luís XIV, havia belamente caracterizado e retratado a sociedade humana em geral.
Richepin, no entanto, ao reservar uma conferência especial para tratar da filosofia de La Fontaine, advertiu desde logo que não se ocuparia propriamente do filósofo La Fontaine, o qual, sem dúvida alguma, quis tirar e deduzir de quase todas as suas fábulas a moral como a origem e fim dos seres e das cousas, pondo-os ao serviço da discussão filosófica, a propósito de um verso, de uma anedota, de um adágio. O discurso a Madame de La Sabière, sobre o “automatismo animal”, não teve outros intuitos. Mas, sem ter criado, pelo trabalho especial do seu cérebro, um sistema, nem resolvido igualmente um grave problema vital, cabe a La Fontaine o título de “Grande Pensador”, o que já é muito, nunca, porém, o de “filósofo de profissão”, o que seria muito mais.
O escritor ilustre, meu predecessor nesta cadeira, o pensador profundo, o crítico consciencioso, o polígrafo que abordou todos os assuntos, sem circunscrever em limites acanhados os vôos da sua imaginação e a expansão dos seus conhecimentos, mereceu, sem favor algum, as homenagens desta Academia, como a sua perda irreparável merece hoje o pesar de todos. Mas a evolução de um espírito através da sua obra é a operação grata ao curioso da psicologia, como ao amador literário. Sente-se a alma do escritor afirmando a sua individualidade, a inteligência crescendo em lucidez e amplitude, a expressão adquirindo maleabilidade e firmeza. E sobre a transparência dessa mentalidade refletem-se as questões que agitaram a sociedade do seu tempo, assim como as escolas filosóficas literárias que disputaram a preferência dos construtores de frases e dos sistematizadores de idéias.
Artur Orlando, que, ao sair da Faculdade de Direito do Recife, era sectário do positivismo científico dirigido por Littré, dentro em pouco, sob a influência de Tobias Barreto, era um monista apaixonado por Haeckel, abrindo a flor da inteligência aos ventos da publicidade. Ele disse do mestre que este não era budista, de tudo o que é ortodoxo e convencional. Sem o pretender, a si mesmo se estava caracterizando.
Na Filocrítica, publicada em 1886, já era esse o estado de idéias de Artur Orlando. O que dá, porém, um sabor especial a esse livrinho de crítica social, filosófica e literária é a exuberância e frescura de conceitos, a vivacidade de expressão e o livre humorismo, que vai da ironia leve ao motejo franco, por vezes mesmo ao sarcasmo, diante da ignorância e de certa endemia de caráter social e político. O primeiro capítulo, estudo de psicologia feminina, – como ensina o autor, com a sua terminologia haeckeliana, – tem por objeto a alma da mulher russa. É uma página interessante, porque, ao mesmo tempo que nos traça em um bosquejo rápido, mas firme, a formação desconcertante da mulher eslava, também nos desenha a idiopatia do escritor. O que ele diz da mulher russa – cheia de saber e de virtude, tomando parte de todas as manifestações da vida intelectual e moral do seu país, nas letras, nas ciências, nas artes e nas indústrias, exercendo a medicina, a advocacia e o professorado, colaborando em revistas, trabalhando em escritórios de estradas de ferro, dirigindo serviços de telégrafos, votando por procuração nos Zemstvos – continua a ser a rigorosa expressão da verdade, hoje que, na frente ocidental do vasto e democratizado Império abatido, enquanto os homens, desertando a causa da justiça e da civilização, abandonam as fronteiras e deixam cair as armas das mãos entorpecidas pela astenia do ânimo, o espírito de combatividade e ardor patriótico se abrigam nos corações femininos, feitos para o amor, para a doçura e para a piedade.
Artur Orlando não foi poeta nem tampouco escritor de fábulas amorosas, no entretecer das quais os artistas fazem correr livre a fantasia, a espalhar frases que brilham como estrelas ou cantam como aves ao nascer do sol ou nos falam à alma como o eco de uma voz que nos vem da profundeza augusta do espaço. Mas teve, como qualquer profano, a sua crise de sentimento e escreveu umas canções sem metro, como as chamou Raul Pompéia, as quais apareceram coligadas, em 1891, sob o título de Meu álbum. É um suave poema em prosa subjetivista, fragmentado, onde palpitam aspirações, estremecem dúvidas e, por entre reflexões de uma inteligência adstrita ao estudo, transparecem os impulsos afetivos de um coração atraído pelo eterno feminino...
Não desestimeis as pudicas reticências, tão expressivas no seu etéreo silêncio. É que Orlando, dentro da invulnerável couraça da sua nobre austeridade, tinha sob ânimo seguro a preocupação constante de um culto incondicional pela mulher, no que ela tem de mais puro em todas as formas. E parece que somente louvores merece por isso. Aqueles que fingem um desdém olímpico por essa fidalga conduta bem sabem como cedo ou tarde sofrem amargo castigo ao pagar o fatal tributo.
No seu retiro da ilha de Chipre, o lendário Pigmalião levou toda a existência a falar mal dos femininos encantos, mas no fim da vida fez-se estatuário e só esculpiu estátuas de mulheres. A mitologia grega refere mesmo o conhecido episódio da louca e perdida paixão do imoral artista pela deslumbrante estátua que lhe saiu do cinzel, prodígio de graça e de beleza, a famosa Galatéia, animada de um fogo intenso, em sua fria e inerte matéria, por vingança de Vênus, a deusa do amor.
No Álbum, de Orlando, não há paisagem, a não ser a suficiente para localizar uma criação de espírito que se objetiva em quadro de fantasia.
Há impressões, estados de alma, reminiscências de leituras. Percebe-se numa página que o escritor leu Tolstoi e Dostoievski; noutra que estudou Lombroso. Mas os nomeia às vezes; não lhes discute a doutrina. Mas deixa entrever uma frase que é o seu juízo sobre o assunto que o autor lido versou. E nessa frase há sempre um conceito digno de ser recolhido.
Dos grandes mestres do romance eslavo ele diz, por exemplo: os seus livros são imensos desdobramentos, no tempo e no espaço, de tudo o que há de belo, de grandioso, de enérgico, de violento, de grave, de familiar, de ingênuo, de patético. Sobre o célebre Homem de gênio, depois de mostrar que entre o gênio e a loucura há disparidade igual à que existe entre a estrela e o grão de areia, Orlando pondera que, nas concepções geniais, há perfeita regularidade como nas lentes que aumentam as formas sem lhes alterar as proporções, porque o gênio não é a incoerência; é, antes, a harmonia, a música do espírito. E, falando do riso, escreve o que mais tarde reproduziu, quando explicou a sua formação literária: – O riso é o mais expressivo e espontâneo dos movimentos estéticos, é a mais poderosa força de seleção na luta pela civilização. Fazendo rir foi que Cervantes acabou com a loucura da Idade Média, com a mania da cavalaria.
Não se esquece, todavia, numa das páginas, de estudar os elementos componentes da masculinidade e feminilidade da alma humana, e, noutra, descreve como, em sonho, fora visitado “por uma encantadora visão, uma tentação de formosura, de graça, de harmonia, ninfa que ele procurou apanhar, mas lhe fugiu, tingindo de rosa o espaço”...
Meu álbum não encerra somente as vibrações de uma alma afetiva. Esboça também idéias e doutrinas, que nos permitem caracterizar a mentalidade do escritor. Em Orlando predomina a inteligência, mas o sentimento não se limita a ser estímulo: acompanha os surtos da mente, para a dirigir quando for preciso. A sua inteligência é principalmente assimiladora; mas a sua assimilação é ativa e muito íntima. Não lhe foi exuberante a imaginação, mas a faculdade reflexa o fez muitas vezes penetrar no âmago das cousas.
Os Ensaios de crítica e os Novos ensaios são livros de larga erudição, em que se debatem questões de Filosofia, de Direito e de Sociologia.
Há longas páginas (sempre o mesmo acorde e o mesmo tema) em que discorre carinhosamente sobre a educação superior da mulher, reclamando, em nome da Biologia, uma imediata reforma dos códigos civis, na parte relativa ao casamento, em bem da moral e dos interesses sociais.
Num dos conceitos avança que “o amor não é o terreno mais próprio para a cultura da fidelidade, a qual supõe a persistência, a coerção, a disciplina, e nada mais insubmisso, caprichoso e indomável do que a bela flor que vive de febre e fantasia”.
Outra ocasião, ao referir-se à mulher japonesa, ele descobre que “na cor dos seus cabelos, ou dos seus olhos, se adivinha o céu iluminado ou brumoso, sob que habita. Na japonesa o vestido não se cola ao corpo, ostentando esta exuberância de nudez velada, que é a mais elevada expressão da volúpia”.
Dotado de intensa curiosidade, Artur Orlando enfrenta grande variedade de problemas e anseia conhecer a última palavra do saber humano sobre eles. A inteligência adquire então maior gravidade e solidez e o espírito entra afinal em plena maturidade. Sente-se que a fase do preparo mental está ultimada e que o ensaísta vai limitar o seu campo de ação para tentar construções mais duradouras. Depois de ter perlustrado a Filosofia, o Direito, a História, a Política e a Literatura, opera-se a concentração das suas energias mentais na ciência social. O ensaísta faz-se sociólogo.
A Propedêutica político-juridica é o primeiro produto desta nova e última fase da evolução mental de Artur Orlando. Para ele o problema do Direito são estudos de Sociologia Jurídica. Estudar o Direito sociologicamente é, de um lado, investigar a relação entre os fatores da civilização humana, em sua marcha ascendente através da História, e as formas jurídicas; e, de outro, assinalar as particularidades que a psicologia coletiva imprime às legislações. Como, porém, a sociedade humana vive na terra e recebe a influência do meio cósmico, para resolver o problema jurídico é necessário apreciá-lo não somente sob o ponto de vista de vista social e individual, mais ainda sob o ponto de vista telúrico.
Olhado dessa altura, o Direito é um dos fenômenos capitais da vida coletiva e o seu estudo é uma grandiosa generalização, de caráter puramente científico. Desaparecem as grosserias da chicana, as caturrices do formalismo, as particularidades técnicas, e sobressaem as grandes linhas gerais, que desenham o fenômeno e o fazem destacar na dinâmica social.
Sem preocupações de especializar a inteireza do seu pensamento e a sua sólida cultura em certo e determinado ramo dos conhecimentos humanos, o ilustre polígrafo faz-se agora internacionalista, inclinando-se francamente para a cooperação continental da América, cuja missão e cuja tarefa se lhe afiguram incalculáveis. O seu livro sobre Pan-Americanismo é uma obra de convicção forte. Lida neste momento, em que um elo de cordialidade e de inteligência se estabelece para a integridade tranqüila e concertadora das nações cisatlânticas, tem-se uma nítida compreensão de como o autor avançava e antecipava os seus ideais e as suas esperanças, imaginando uma força nova e prevendo uma nova era de prerrogativas e de imunidades, a qual devia conjugar, em perfeita acomodação, a identidade das tendências políticas com a dos interesses jurídicos internacionais.
Artur Orlando vê que o pan-americanismo, executadas as emaranhadas complicações do nacionalismo e do cosmopolitismo, surge como uma obra de fraternidade entre o pan-latinismo e o pan-saxonismo, despertando entre os povos da América a idéia e o sentimento de um destino comum. A civilização avança para um Direito econômico ou Economia jurídica, e para conseguir esse resultado é que a América procura internacionalizar as suas relações e interesses econômicos. O pan-americanismo procura realizar na esfera econômica o que o Cristianismo realizou na esfera religiosa. Enquanto a Europa ganhou tempo, opondo barreiras à Ásia e despejando na América as levas de imigração que, através do cadinho do Novo Mundo, tem constituído o povo eleito que caminha em busca da terra da promissão, a América procura remédio para o mal que a aflige e para o perigo que a ameaça. Enfim, segundo ele, à América cabia completar a grande tarefa de Alexandre no Oriente e de César no Ocidente, organizando o pan-americanismo em defesa da nova concepção da justiça, da moral, da religião e da arte.
Se lhe foi dado aludir à colonização da América, às correntes para fins comerciais, à organização da família e da propriedade, à constituição de pátrias novas, ao mesmo passo não lhe teria sido senão extremamente grato discorrer sobre a condição da mulher no tempo de Carlos Magno, demonstrando que ela, se, de um lado, estava sujeita à tutela do Estado, em compensação as comunas, levantando-se contra os senhores feudais, tornaram a mulher soberana, não imperando somente pelas suas graças e encantos. Orlando recolhe até uma frase dos irmãos Goncourt: “A mulher, a alma desse tempo..., o tempo de onde irradia a imagem sobre que tudo se modela..., o princípio que governa, a causa universal e fatal, a origem dos acontecimentos, a fonte das cousas.”
Depois de ter estudado e percorrido todos os caminhos em que se encontram profusamente espalhadas as teorias orgânicas da vida social e nos quais aparecem, sob contrastes desesperantes, as leis da moral e as regras do progresso, Artur Orlando pôs em movimento os recursos da sua atividade e da sua energia para cuidar carinhosamente dos grandes problemas inerentes à nossa pátria, das suas fontes orgânicas, dos destinos do nosso povo e do futuro da nossa raça. A sua capacidade de trabalho chega a parecer inesgotável.
A propósito de um simples relatório que, como inspetor-geral da Instrução Pública, teve de apresentar ao governador do seu Estado, o exemplar funcionário julga do seu dever escrever uma longa e preciosa monografia sobre o problema pedagógico no país, o qual, na sua longa concepção, ele entende que não é senão a grande questão do progresso humano, que prima sobre todos os problemas sociais, que está eternamente a surgir, cada vez mais embaraçoso, à medida que a sociedade se vai complicando.
Com a teoria do causalismo físico, admite ainda o malogrado pernambucano um confucionismo da força mental, reconhecendo as idéias e sentimentos como fatores de evolução no meio do determinismo social. A organização do trabalho, do crédito e da previdência é de capital importância; mas esses expedientes econômicos, para produzirem salutares efeitos, têm necessidade de assentar em base mais larga e mais sólida: a educação.
E, assim, ele conclui que a grande fonte de corrente humana é o pensamento, a ação não passando de um manômetro, que mede a pressão do vapor e a aceleração do movimento, mas não modifica o primeiro, nem dirige o segundo. É a célula do cérebro que reina e governa; a dos músculos aguarda ordens, cumpre decretos.
O trabalho intelectual, entretanto, continua intenso e incessante. Agora são os artigos de revistas, novas monografias, memórias diversas apresentadas às assembléias científicas. Nenhum deles tem cunho banal. Todos discutem teses de alta transcendência. No Primeiro Congresso Médico de Pernambuco aparece e chama a atenção geral a dissertação sobre O trabalho como fenômeno econômico e fisiológico, na qual afirma que sem a organização fisiológica, baseada sobre o estado integral da produção e do motor humano, quer em relação às horas do labor, quer em relação ao organismo individual e social, não será possível avaliar autorizada e eqüitativamente as reivindicações do homem moderno.
O Terceiro Congresso Brasileiro de Geografia recolhe um substancioso trabalho de Orlando, sobre O clima brasileiro, fenômeno, como diz ele, complexo, que se compõe de vários elementos, sujeitos a múltiplas circunstâncias, umas exclusivamente cósmicas, dependendo da forma e posição da Terra, e outras geográficas, dimanando da estrutura do globo, da sua distribuição em terras e águas, montanhas e vales, florestas, campos e desertos. Pretende que há no Brasil todos os climas. O nosso grande problema a resolver, porém, é o saneamento do solo, a drenagem do pântano, – insaciável minotauro, resistente hidra de Lerne, não somente da Grécia, mas de Roma, da Itália, da Algéria, de todas as regiões alagadiças e paludosas. E o autor termina categoricamente: o solo brasileiro, por sua forma, sua extensão, seu relevo, suas disposições orográficas e hidrográficas, está a influir de modo decisivo sobre a massa atmosférica e a direção das correntes aéreas, para formar um clima ao mesmo tempo uno e múltiplo, que, de acordo com a orientação simultaneamente longitudinal e transversal do Amazonas e do São Francisco, é a maior garantia da integração nacional e da diferenciação federativa do Brasil.
Em 1908 o escritor quis dar uma prova de devotado amor à sua terra natal e escreveu uma memória, de cerca de quatrocentas páginas, sobre O porto e a cidade do Recife, estudo profundo e consciencioso de um sério problema regional, acompanhado, ao mesmo tempo, das mais curiosas revelações sobre aquela bela e adiantada cidade do Nordeste.
Em seguida, querendo aproximar e ligar, por uma conexão do espírito, Pernambucano a São Paulo, compôs umas páginas inspiradas e admiráveis sobre a vida dos Bandeirantes, que ele considera como tipos representativos de um estádio de civilização, simbolizando ainda uma forma de organização social, devida principalmente às condições especiais de território e população, em cujo meio desenvolveram as suas aventuras e proezas.
O bandeirante reproduz o tipo do aventureiro grego a correr atrás do escravo e do velocino de ouro. A mata faz o espírito humano sombrio. O homem da floresta não pode ter a mesma imaginação risonha que o da campina coberta de relva ou do litoral movimentado pelo mar. E, sob a influência destas últimas evocações, a mente lhe inspira e ele exclama: “Vênus só podia ter surgido do seio das ondas, aos beijos do sol.”
Afinal o sociólogo, já agora entrando em pleno período de madura e serena reflexão, volve a atenção para o Brasil em geral e concebe o projeto de o descrever sob o ponto de vista físico, moral e intelectual, ligando estas diversas faces do assunto, para mostrar as suas recíprocas influências. De semelhante obra só foi publicada a primeira parte – A terra e o homem, – onde há um estudo, ao mesmo tempo sério e carinhoso, do solo e da fauna nas diversas regiões do nosso país e o desenho dos vários tipos étnicos que se criaram e desenvolveram nessas divisões geográficas de fisionomia distinta: os tapuias da Amazônia, os sertanejos do Ceará, os senhores de engenho de Pernambuco, os bandeirantes e os plantadores de São Paulo, os teuto-brasileiros de Santa Catarina, os gaúchos do Rio Grande o Sul, os garimpeiros e faiscadores, em guaicurus de Mato Grosso e os paroaras do Acre.
Descrevendo a degradação da família tapuia, que tanto impressionou à senhora Agassiz, ele acha que tal fato parece uma resultante do parasitismo do homem explorando a mulher; que isto é que é preciso evitar para que ela não tenha um valor puramente econômico e valha, antes de tudo, pela beleza física, intelectual e moral, o que é possível conseguir sem lhe tosquiar os cabelos compridos e suprimir as linhas curvas das ancas e dos seios. Tais as expressões de Artur Orlando, tal o colorido com que ocultava a inclinação a que o arrastara o intransigente e nobilíssimo culto da Mulher.
O ensaio fundamental não parava naquele volume, porque no seu desdobramento, que versava sobre O meio social, o autor pretendia tratar das fronteiras do nosso país, da imigração e colonização, da instrução e saúde pública, do Exército e Marinha, das vias de comunicação e transporte, das ciências, letras e artes, do Direito, da Moral e da Religião, do pan-americanismo e do pan-humanismo no Brasil.
Outros trabalhos em que se afirmam em vigor e lustre as forças irrequietas de convicções íntimas, de desejos ardentes, de aspirações cultivadas ao sabor de uma inteligência brilhante e de uma imaginação exaltada, às vezes, mas sempre fértil e inspirada, produziu Artur Orlando. A sua bagagem literária e científica é mesmo seleta e profusa.
Mas quanto, neste pálido escorço, assinalar pudemos é de natureza a transparentar, em toda a sua pujança, a extensão e a forma do talento do egrégio pensador nortista, permitindo claramente ver como ele cresceu em poder de compreensão e de expressão e como, depois de se especializar, tendo-se inclinado, nos últimos tempos, para os preceitos da Sociologia construtiva e coordenadora, nos deu obras verdadeiramente notáveis pela riqueza das idéias e pela segurança das induções.
Pois esta robusta mentalidade, empolgada por vários problemas, nutrida de idéias gerais, cotidianamente arejada pelas correntes do raciocínio e da meditação, não sacrificou, à maneira do que tanta vez se vê nos cerebrais, – não sacrificou o sentimento. No pensador subsistia o amoroso. Já vimos que em várias de suas obras a mulher é um leitmotiv ao redor do qual o escritor se compraz em rendilhar variações ternas. Eva é para ele uma obsessão.
Como se compreende o casamento do letrado sentimental com uma antiga discípula sua? Ao mesmo tempo que lhe formava o espírito, abria-se o coração do mestre ao encanto da aluna cheia de talento. E foram felizes. E tanto se identificaram esses dois seres que acabaram até por ter caligrafia idêntica. Tornou-se impossível dizer qual deles traçara um manuscrito posto a exame – o marido ou a mulher. Se a grafologia não mente, ao menos desta vez se terá realizado a ficção, cara aos poetas e aos apaixonados, do “par de almas irmãs”.
Sempre e ainda uma vez a aliança da inteligência com o sentimento, combinação propícia sob cujo delicioso influxo Orlando atravessou a vida. Sob ele atravessou a vida e ainda envolto nele chegou à morte.
Foi arrastada, foi penosa a agonia do vosso confrade, a quem a doença golpeara exatamente na região que mais devera ter respeitado: esse intelectual de escol havia de ser absurdamente preferido pela apoplexia! A usual sinonímia de “insulto cerebral” nunca terá sido mais expressiva do que neste caso, em que o extravasamento de uma onda de sangue veio injuriosamente dilacerar um luminoso engenho.
O espírito lesado perdeu algumas das ligações com o mundo externo. Tornou-se mesmo incapaz de receber ou transmitir certas impressões, a palavra nem sempre se adaptava à idéia, fugira-lhe a memórias das cores, já não reconhecia objetos.
Mas o afeto que dantes inspirara a inteligência, passa agora a ampará-la, como a muleta ao inválido. Artur Orlando já não pode acertar com o nome de certo criadinho mestiço que o acompanha desde o Recife. Certa vez, porém, percebe a insuficiência de sua expressão verbal e, dirigindo-se aos parentes e amigos que o rodeiam diz-lhes, encaprichado e orgulhoso: “Bem sei que estou trocando nomes. Mas os de vocês eu não esquecerei. Principalmente o dela”... E, voltando-se para a esposa querida, como que dominando num esforço de ternura as lacunas do terrível mal orgânico, articulou, sílaba a sílaba, a graça de D. Maria Fragoso, à maneira do bom tempo já remoto, em que as contava compondo loas de amor...
Como o nome da companheira, a doença também lhe poupou a recordação desta Academia. A sua lamentável decadência de semiparalítico do cérebro deixara-lhe réstias de lucidez para que continuasse a interessar-se pelo ilustre cenáculo. Assim, já na agonia, ainda aquela alma recebia, do sentimento e da ideação, fugitivos e consoladores raios de luz. Somente o que outrora fora deslumbrante clarão não passava agora de amortecido crepúsculo...