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Assis Chateaubriand

DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

Proferido em 27 de agosto de 1955

Confere-me a Academia a maior de todas as honras e a mais cara de todas as glórias. Quando se recebe na Companhia um paraninfo como o professor Aníbal Freire ganha-se uma graça. Fostes comigo infalíveis, infalíveis e divinos. Pois a graça não é um dom celeste? Há quarenta e quatro anos, o professor Aníbal Freire tinha duas cátedras em Recife: a cátedra de professor, na Faculdade de Direito, e o posto de diretor do Diário de Pernambuco. Uma e outra ele as exercia com um talento incomparável e uma atração e uma têmpera de caráter raros. Fora difícil dizer qual era a maior, se o jornalista ou o mestre de Direito Administrativo e da Economia Política, pois de tal forma consumada era a sua vocação para ambas as cátedras.

Acredito que a Academia me elegeu como quem busca uma natureza de equilíbrio para tirar o demônio, que há mais de cinquenta anos ronda esta cadeira. De quantos pecados, cometidos em minha longa carreira de jornalista, não me penitencio agora! Espero que a ordem, uma ordem objetiva, venha imperar, daqui para diante, no posto que ocupo, em vossa Companhia. A barulhenta memória dos que aqui se sentaram será compensada por uma tranquilidade de lago suíço, à qual me vejo recolhido, na fraternidade das aspirações, que comungo com a Academia e seus leais servidores. Tende a certeza de que trouxestes para o vosso grêmio uma índole da Regra e do Método, disposta a proscrever dos seus trabalhos, aqui dentro, como lá fora, o quanto não contribuir para acrescer o vosso cabedal de fidelidade e de observância às leis da ciência, das instituições, da vida, da sociedade e do céu. Está morto o último companheiro revolucionário, Getúlio Vargas. O pecado original do conspirador Gonzaga foi resgatado. Pela primeira vez, na história do mundo planetário, se elimina esse gênero de pecado. O mal cria o bem, digamos, em termos goethianos. Desse bem, recuperado, sou o primeiro beneficiário. Aquele que cai morto pelas próprias mãos, em virtude de um ideal, propicia, com seu sofrimento, uma integração nossa, num plano superior de espiritualização.

Aqui vim apenas por bosquejar o perfil de Vargas, esperando que outros tomem o tosco retrato de hoje, como ponto de partida, para escrever os livros definitivos que, à luz de melhores observações e de outros ensinamentos, lhe deverão ser consagrados.

Se eu tivesse tempo, se houvesse lazeres na minha faina de gerente de jornais, rádios, revistas, televisão, fazendas agrícolas com as suas técnicas tão diversas e as suas formas de atividades intelectuais e sociais tão variadas, tentaria dois livros: um sobre a Escola do Recife, com o seu germanismo presunçoso e as suas gaforinhas desabridas, e outro sobre os dois consulados de Vargas - o que vem de 30 a 45, e aquele que parte de 51 e submerge em 54.

Estas páginas, senhor presidente, foram escritas quase todas na Riviera francesa, em Cap Ferrat. O resto compus em Dakar e no Rio de Janeiro. Andei por três continentes para interpretar o último dono desta cadeira. Fui a Nice respirar o claro ozona da ambiência mediterrânea. Não seria possível tratar de um bárbaro, filho também daquele mar de tão fina espiritualidade, sem ver Ulisses. E eu foi ver Ulisses, o companheiro inseparável daqueles que exercem o seu métier de roi , com a virtuosidade do equilibrista helênico.

Não era somente a América Latina e a Rússia, Minas e o Rio Grande. Seu tato, a sua finura, as suas manhas, a sua solércia de gato, a sua sedução de demiurgo o identificam muito com o Rei de Ítaca.

Seu charme, o charme que emanava da sua pessoa, era irresistível. Quando queria, era-lhe fácil envolver-nos dos eflúvios da sedução, que o imantava, e subjugar-nos. Em outros, o poder de fascinar exigiria um jogo mais artificial. Nele não havia um esforço de amabilidade, senão aquela elegante volubilidade, que punha nas conversas, ora ferindo um ponto, ora outro, conforme as tendências dos que faziam sua roda.

[...]

                                                                       (Aquarela do Brasil, 1956)

 

A VOZ DAS CLASSES PRODUTORAS

Discurso pronunciado no dia 17 de Novembro de 1954

Na semana transata, este país entrou a conhecer um documento deveras atraente e - vamos falar à Euclides da Cunha - dos mais golpeantes e conclusivos, em que os estudiosos dos problemas de consciência poderiam deter a vista.

Uma das minhas tristezas de caboclo brasileiro, uma das minhas melancolias de homem que procura estudar as soluções positivas para o fortalecimento da economia nacional, era, Sr. Presidente, a apatia dos nossos grandes órgãos das classes produtoras ante uma questão ardente, de todos os pontos de vista, como a da exploração do petróleo do nosso subsolo.

Donde vinha tanta indiferença da parte dos órgãos que são os depositários do que o espírito conservador da nossa sociedade tem de mais avesso a soluções temerárias, a cartadas funestas, como as que se pretendem oferecer ao caso do combustível líquido brasileiro? Ao Governo federal, a braços com problemas que não pode nem abordar, premido pelas dificuldades de toda natureza, se procura cometer mais uma responsabilidade, e dessas que envolvem os maiores riscos que possam esmagar uma administração. Era singular a conduta dos centros industriais e das associações do comércio, mantendo-se excêntricos em face de um assunto que interessa de modo fundamental à vida e à estabilidade mesma da Nação. Criou-se uma psicose do medo dentro de um âmbito tão largo da vida da coletividade nacional que até as suas partes nobres pareciam acovardadas diante da intolerância chauvinista e da agressividade comunista.

Graças a Deus o Brasil não sucumbiu ao pânico, de que a infiltração soviética dir-se-ia destinada a nos envenenar. As reações estão aparecendo, e com um vigor que nos comove, porque elas dimanam do que tem de melhor o patriotismo, como força militante esclarecida.

                                                                 (Nuvens que vêm, 1963.)

 

O PETRÓLEO E AS DEMOCRACIAS

Discurso proferido no dia 9 de Setembro de 1953

Foi a vitória ontem conquistada pela jovem democracia alemã um triunfo de Portland. Não exagero afirmando que o Sr. Adenauer, do qual Churchill já disse que era o maior, dentro do Reich, depois de Bismarck, alcançou um trunfo tendo por base o aumento da maior fraternidade com o mundo livre.

Trará essa vitória o fim da guerra civil em que o Antigo Continente vive engolfado, desde 1914? Se a Alemanha não mergulhou no ódio intratável, no desentendimento fatal, com as democracias ocidentais, isto se deve tanto ao liberal, de nobre e rija estirpe, que apareceu para conduzir o IV Reich, como à diplomacia de homens como o Sr. Truman, Attlee, Churchill e Schuman.

A decisão que nas urnas livres deu o povo alemão é uma sentença favorável à paz. Encontrou a Alemanha, na aliança com os Estados Unidos e a Inglaterra, como no apoio que essas duas democracias lhe trouxeram, após derrota do hitlerismo, uma garantia para o seu desenvolvimento pacífico, no quadro das instituições republicanas.

Se as democracias ocidentais renunciarem agora ao que não houve coragem nem inteligência para fazer em 1919, isto é, ao pensamento de que a Alemanha, conduzida pelos liberais, é sempre a Alemanha prussiana, dos junkers, podemos ter a esperança da constituição de um rijo bloco de paz na bacia atlântica. A atitude de uma larga maioria do povo germânico assim o leva a crer. Nem pode haver mensagem mais auspiciosa que a maioria esmagadora de votos que ganhou a política de aproximação com o Ocidente do Chanceler Adenauer.

A Alemanha se incorpora, hoje muito mais do que ontem, ao que se convencionou chamar civilização ocidental. Ela faz de novo essa escolha, pela segunda vez após a derrota, constituindo, para larga maioria, um governo de estrita legalidade. Renunciou ao nacionalismo e ao societismo, para ir gravitar no sistema europeu, de soberania limitada e de transferência de vários direitos dessa soberania a uma superestrutura interna.

Pelos resultados das eleições de domingo, a Alemanha é engajada em uma atitude que ela desconhece em sua história contemporânea: uma colaboração ativa, militante, para defesa das principais democracias do mundo. Em 1919, 20, 21 e 22, desgraçadamente, a Europa que batera o militarismo germânico no Marne e na Linha Siegfrield, insistia em desconhecer o acontecimento de Weimar. Era aquela república uma sentinela da liberdade ocidental, no Reno, contra os junkers e o militarismo, e no Oder, contra os soviéticos. Suas oportunidades de sobreviver dependiam menos dela que da condescendência dos aliados em face dos primeiros passos de uma criança que entrava a engatinhar. O ato do nascimento da democracia alemã foi uma derrota, no campo de batalha. Viu-se o orgulho nacional de um grande povo severamente abalado pela débâcle militar em 1918. Urgia dispensar-lhe esse misto de cuidado e de paciência que se dá a uma criança e a um enfermo. As instituições livres constituíam ali uma nova experiência. E uma experiência feita em seguida a uma derrocada, produzida por uma guerra de nações. Termos cordiais e amistosos ainda seriam poucos para tratar o segundo Reich democrático, filho da derrota e do sofrimento.

Aconteceu, porém, que as instituições republicanas alemãs se encontraram entre dois fogos: no plano interno, a atitude nos nacionalistas da extrema direita, que tudo envidaram para demoli-las. No plano externo, a desconfiança dos antigos adversários, que volta e meia apareciam com métodos agressivos, comprometedores da estabilidade e segurança da República. Estive eu em Berlim quase todo o ano de 1920: a probabilidade de os dois grandes povos se compreenderem, se apreciarem, marchando juntos, com essa república instalada no coração da Alemanha, cruelmente atacada pelos militares e rearmamentistas dos seus círculos internos, inspirava confiança aos adversários da véspera. Franqueza, coragem, espírito de sacrifício, não eram suficientes que os trouxessem os republicanos todos os dias à luz da ribalta. O assassinato de mais trezentos e cinquenta republicanos em dois anos, em tocaias e emboscadas preparadas pelos nacionalistas ainda era pouco. O novo estado de alma de largar seções do povo alemão, sua firmeza, posta na luta civil contra o nacionalismo ainda não eram capital para tratar com os aliados. O peso de reparações insuportáveis não foi aliviado, no momento em que o seu espectro, desaparecido, do cenário político e econômico do Reich, seria a concessão à República de um voto de confiança nos seus bons propósitos.

Locarno já veio tarde. Muita substância inflamável fora derramada pelo caminho. Da ocupação do Reno ficara não uma cicatriz, mas uma chaga aberta.

O vizinho que pretender criar a paz com o que lhe é contíguo terá de praticar atos de boa vizinhança, que são os atos de cordialidade e de entendimento recíprocos. Fora preciso que, desde a primeira hora, a Europa se integrasse com fé na sorte das instituições de Weimar. Para prestigiá-las, para fortificá-las, para reconhecê-las como o fruto de uma revisão interna, vinda da alma mesma da grande parte respeitável da nação germânica, então em luta aberta contra os instintos e interesses da casta militar e política do Estado prusso-germânico, em vital apoio externo à política reformuladora dos sociais-democratas, do centro e dos partidos liberais. A integridade republicana da Alemanha deveria ser um sagrado tabu para a França e a Inglaterra, porque somente uma república forte, poderosa, poderia ser o árbitro dos destinos da Alemanha subjugada pelo ódio pietista da oligarquia, derrotada na guerra.

Não se pode contestar que a Europa acabou concedendo à Alemanha republicana, quase tudo aquilo a que ela aspirava. Tornou-se Aristides Briand o campeão de uma política de apaziguamento do Reich. Os termos dessa política foram os mais altos. Somente quando ela chegou, antes de lograr abrir caminho entre os alemães, as vagas da depressão de 1929 haviam de tal forma excitado os líderes nacionalistas que a causa da paz franco-germânica encontrava-se já comprometida.

Hitler ganhou, em 1930, o terreno que havia perdido, nos braços da miséria e do infortúnio que desabara sobre o Ocidente.

O ensinamento da outra guerra não se perdeu nesta. Não há nenhuma dúvida de que em 47 a Alemanha republicana encontrou aberto para transitar no mundo o “sinal verde”. Este há de ser para ela o duplo caminho: o da liberdade e o da prosperidade. De nada valeu a Guerra Fria. Pouco adiantaram as intrigas bolchevistas e ultranacionalistas para que ela não adotasse o caminho da reconciliação e do entendimento, da eliminação das desconfianças recíprocas e dos antagonismos históricos.

A Alemanha não tem um terreno fértil para o nascimento das figuras potentes da flexibilidade e do universalismo do Sr. Adenauer. A presença no poder de um führer como o Chanceler Adenauer envolve um desafio àquela tese de que a raça germânica, fecunda em condutores militares, de primeira grandeza, vê frustrados os seus esforços toda vez que tenta valorizar um líder político.

Afirma a Alemanha, hoje, quando não tem uma Wehrmacht, Luftwaffe nem marinha de guerra, uma personalidade muito mais indomável e original do que quando a sua vocação militar e os seus recursos econômicos a tornaram o Estado mais poderoso da Europa Continental. Ela retoma a liderança do continente, para se revelar um dos dois países industriais mais fortes do Ocidente europeu (sendo o outro a Grã-Bretanha). Ressurge o Reich do bombardeio das suas cidades, da invasão e da ocupação de seu território, economicamente mais poderosa que antes. Suas manufaturas estão adiantadas como nunca. Sua agricultura, florescente como jamais esteve.

O conflito que terminou no mundo de 45 é um duelo de tipos de governos como em nenhum período da sua existência a humanidade viu nada parecido. Concedem os vencedores larga assistência aos vencidos. As concessões feitas pelos Estados Unidos e Império Britânico aos países derrotados são desconhecidas na política mais humana de vencedores para com vencidos.

Quem imagina - sobretudo aqueles que conhecem os Estados Unidos na última guerra, dominados pelo ódio furibundo, pelo rancor insopitável contra o Japão e os japoneses, guerra que vinha sendo consolidada, no fundamento desses dois povos, através de quarenta ou cinquenta anos de rivalidade no Pacífico - que os americanos oferecessem ao povo nipônico o edificante instrumento de amizade, fraternidade e cooperação que foi o pacto que pôs fim à luta armada entre os dois países?

A História desconhece guerras que tenham tido pactos de paz feitos com a elevação e a serenidade dos que as democracias do Ocidente assinaram com os seus adversários entre 1945 e 46.

                                                                       (Aquarela do Brasil, 1956)