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Discurso de posse

DISCURSO DE POSSE

Arno Wehling

Ingresso na Academia Brasileira de Letras com uma convicção, a de seu significado intelectual, simbólico e ético como grande instituição brasileira.     Para quem – historiador -  elegeu seu objeto de investigação as instituições, participar delas é não só vivenciar seu campo de estudo, mas conciliá-lo com algumas escolhas feitas ao longo da vida.

Acredito nas instituições como Montesquieu as definiu, aperfeiçoando as sociedades e as pessoas, agregando cumulativamente saberes e experiências. A instituição como valor civilizacional que permanece no tempo, perpassando gerações e conjunturas, como a Academia tem sido para o Brasil.

Vejo a Academia como uma grande irmandade espiritual no tempo e sei   que dela participar implica estabelecer vínculos múltiplos, antes de tudo com ela própria e o que encarna em matéria de liberdade, diversidade, humanismo e compromisso com o Brasil. E também vínculos com os acadêmicos de hoje, com a comunidade de acadêmicos no tempo e, não menos importante, com a cadeira à qual se pertence.   

E que cadeira desafiadora, senhoras acadêmicas e senhores acadêmicos, a cadeira  37!

Um patrono que poderia não ter sido (Tomás Antonio Gonzaga), três poetas (João Cabral de Melo Neto, Ivan Junqueira e Ferreira Gullar), o filólogo que secundariamente poetou (Silva Ramos)  e três homens de ação (Alcântara Machado, Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand),  um dos quais deu rico contributo à interpretação do Brasil.         

Assis Chateaubriand, o quarto ocupante, considerou-a “paiol de pólvora”, formada por rebeldes outlaws, ao que ele, “coluna da ordem e esteio da legalidade”, vinha dar a “tranquilidade de lago suíço”.    Ironia à parte, o grande jornalista e acadêmico fazia seu contraponto motivador com Afrânio Peixoto, que na recepção ao segundo ocupante -  Alcântara Machado - dissera ser esta a “cadeira da tradição”.

João Cabral, que sucedeu a Chateaubriand, silenciou sobre o assunto, no que foi acompanhado por Ferreira Gullar, que poderia bem representar alguma combustão.  

Coube a Ivan Junqueira - o sexto ocupante -  repor o tema, para concluir que Chateaubriand andava errado e havia “pouquíssima pólvora” na cadeira.  

Afinal, rebelião ou tradição,  ruptura ou continuidade?

A perspectiva do historiador não permite concluir de modo diferente: ruptura E continuidade, como quase tudo nas sociedades.  E o par se explica na cadeira pela diversidade e pluralidade de formação e visões de mundo de seus membros, às vezes expressas na polimorfia de cada um.

Polimorfia, pluralidade e - acrescento desde logo - heterodoxia se encontram em Ferreira Gullar.

 “Poliédrico”, diz dele Cícero Sandroni;  “coragem de sempre mudar”, acrescenta  Carlos Nejar; “tantos Gullares num só José”, conclui Secchin.

Poeta, crítico de arte e literatura,  ensaísta, cronista, dramaturgo, esteta sempre, e de viés filosófico, a esta polimorfia subjazem três traços fortes que percorrem vida e obra, a capacidade de trabalhar as palavras, como lembra Alberto da Costa e Silva, ’cortando-as em pedacinhos, misturando-as e fazendo delas uma nova realidade”,   a honestidade da visão política, já destacada por Ana Maria Machado  e  a frequência do espanto, recordada por Celso Lafer.  

 A definição para espanto Gullar a dá na sua Autobiografia poética, de 2015:  

"a súbita constatação de que o mundo não está explicado e, por isso, a cada momento nos põe diante de seu invencível mistério. Tentar expressá-lo é a pretensão do poeta.”

A obra de Gullar, particularmente a poética, tem rica fortuna crítica, em artigos, resenhas, livros e teses, a começar pela palavra inaugural de Mario da Silva Brito, saudando A Luta Corporal, e várias consolidações, a última das quais em 2008. Não cabe agora uma análise de suas múltiplas facetas e fases, mas apenas menções transversais que nos aproximem da vida que trepida e se expressa em arte e reflexão no Mar Azul da tensão concretismo/neoconcretismo, na opção pelo marxismo e nos poemas políticos, no “Meu povo, meu poema” de Dentro da noite veloz, no final antológico do Poema Sujo, que dialoga com o “Traduzir-se” de Na vertigem do dia do momento seguinte.

Ou ainda, na “sintaxe do real” metaforizada pela água em Barulhos; na “luta com a sintaxe” que vai de A luta corporal  ao  Formigueiro;  no enfrentamento das lembranças e da memória de Muitas vozes,  também presente no coetâneo Rabo de foguete e na necessidade de explicar o mundo de Em alguma parte alguma.  

Arte e reflexão que reaparecem no teatro do homem nordestino e do “homem como invenção de si mesmo”,   na ficção das Cidades inventadas,  nos ensaios combativos mas nem por isso menos sofisticados de Teoria do não-objeto, ao Uma voz entre natureza e cultura, passando por trabalhos marcantes sobre Augusto dos Anjos, as relações entre cultura, vanguarda, arte e subdesenvolvimento, as reconfigurações de Indagações de hoje e o uso da fala iconográfica – na sua expressão, “dizer o ver” - de Relâmpagos.

A mais evidente do que denomino menções transversais que brotam da obra de Gullar é a sede da complexidade do real. A arte, para ele transcende a vida e permite duas formas de acercar-se das forças profundas da criação estética, a “procura da essência” e a busca da historicidade. Opta por esta porque “não há nenhuma essência mística detrás das formas”.

Essa recusa a qualquer forma de metafísica, se o aproxima num primeiro momento do marxismo, insere-se no plano mais geral das várias filosofias da existência que refutam o idealismo filosófico e de variadas formas pregam o engajamento – engajamento político, mas também engajamento vital de sentido mais profundo, gerando valorações que recusam o determinismo sociológico mais rasteiro e se alçam às valorações mais elevadas. O que foi o caso de Gullar e - a meu ver -  explica a ductilidade de sua percepção, sempre pronta a refazer-se e, ao mesmo tempo, sua inflexibilidade ética.

Que outro sentido podem ter as proclamações simultaneamente nacionalistas e humanistas de 1973?

O artista deve “buscar a originalidade de sua própria cultura, da sua própria experiência vital ... a arte é, sempre, a expressão do particular”. 

E de 1989?

“Criar uma cultura brasileira não pode ser o objetivo. O objetivo deve ser a cultura universal, o encontro do homem como irmão do homem, a superação das nacionalidades. Mas é impossível chegar a isso, senão pelo aprofundamento do que é próprio, peculiar”

É assim perfeitamente razoável associar o Gullar dos “Poemas portugueses” de A Luta Corporal, com o ensaísta posterior, ou novamente o poeta de “Não Coisa”, quando conclui que a despeito de nomes e conceitos, o gosto da fruta “só o sabes se a comes”, porque o camoniano saber de experiências feito que admira insere-o numa vertigem da história que renuncia a todo essencialismo. 

Para ele, o paradoxo do poeta está no esforço de dizer o indizível, pois, a densidade da coisa é fechada à humana consciência”, o que o aproximará da juventude à maturidade, da fenomenologia de Merleau Ponty.

Ou, dito por ele mesmo em Uma luz do chão:

 “tornou-se ...um desafio para mim elaborar uma linguagem poética que expressasse a complexidade do real sem, no entanto, mergulhá-lo na atemporalidade, na ahistoricidade, na velha visão metafísica”.

A lição humanista traduz-se em tolerância, como diz numa de suas crônicas:

“quem aceita a complexidade do real ... não pode ser sectário, não pode ser radical em suas convicções ... só é sectário – dono da verdade – quem simplifica as coisas... “

Humanismo puro, de que agora mesmo tem a Academia belos exemplos em Marco Lucchesi e Tarcísio Padilha, humanismo puro o de Gullar, como humanista é também sua valorização tão próxima a Drummond, do homem comum e do cotidiano, traduzindo a percepção de que o mundo do século XX mudara, e com ele a poesia:  “a poesia mudou porque a vida mudou”.

 O interesse pelo “concreto cotidiano” porém não lhe tolheu nem a criatividade nem a imaginação.

O belo, diversificado, cáustico e bem humorado Cidades Inventadas, no qual faz tipologia e glosa de mundos urbanos nem tão inventados assim, é exercício lúdico, na plena acepção de Huizinga, em que interagem - guiados por mão de mestre - seres, espaços, símbolos e tempos numa crítica irônica e por vezes contundente.

 A complexidade do real sempre teve entre seus grandes desafios o problema do tempo. A impossibilidade cognitiva de defini-lo, desde a clássica sentença agostiniana, junta-se em Gullar à percepção do que poderíamos chamar de coetaneidade dos tempos que aparece no Poema Sujo.Seja-me permitido uma colagem, que talvez não destoe de suas construções:

“Quantas tardes numa tarde!(...)

 Muitos /muitos dias há num dia só (...)

fácil de entender/ mas difícil de penetrar”

  O tema reaparece em outros momentos da obra, como na “Lição de um gato siamês”, de Muitas vozes, quando o poeta diz:

“Só agora sei

que existe a eternidade:

é a duração

finita

da minha precariedade;

 O tempo fora

de mim

é relativo

 mas não o tempo vivo:

esse é eterno

 porque afetivo 

   - dura eternamente

     enquanto vivo;”

Numa época de existencialismos e sobretudo de redimensionamento do tempo a partir da ruptura einsteiniana, a antinomia eternidade/finitude guarda todo o seu vigor, como sensibilidade ou como interpretação. E pode lembrar a precoce leitura de Ortega sobre a relatividade de Einstein em “O tema de nosso tempo”:  a viabilidade de se ter, em lugar da perspectiva relativa de uma realidade absoluta, como na velha epistemologia newtoniana que embasou os determinismos de todos os tipos, inclusive na arte, a perspectiva absoluta de uma realidade relativa.

 Não é este o fecho do poeta?:

“E como não vivo

além do que vivo

não é

tempo relativo:

dura em si mesmo

 eterno (e transitivo)”

 

A “intimidade febril” que Alfredo Bosi vê entre o sol (ou o fogo) e a morte como forma de Gullar dizer do tempo é metáfora recorrente em sua obra, já apontada aliás, como a consciência da “passagem desagregadora do tempo”. É outra chave interpretativa da rica construção de Gullar: além das tensões eternidade/finitude e essência/existência, coloca-se a entropia “que consome a vida selvagemente” e que aparece no poema “Frutas” de O vil metal,  no “Verão” de Dentro da noite veloz,  ou no Poema sujo.

Toda a obra de Gullar é profundamente tensional. Suas antinomias não se limitam às grandes questões filosóficas de sempre: fenômeno/essência, fugacidade/eternidade, existência/perenidade, indivíduo/ser mas se operacionalizam e exemplificam em metáforas ou simples constatações:

Sol-fogo/morte,

rotina/caos,

mutabilidade de vegetais e animais/eternidade dos minerais e das constelações.

 

“Traduzir-se” expressa mais que qualquer outro texto a força dessa tensão quando opõe: 

 

ninguém/todo mundo;    

multidão/solidão;

pondera/delira;

almoça e janta/se espanta;

permanente/de repente;

 vertigem/linguagem.

 

E certamente a maior das tensões, entre vida e poesia, já que “a arte existe porque a vida não basta”.

Como toda obra fecunda a de Gullar não é apenas polimórfica, tangente aos grandes temas do homem e tensional, mas limítrofe entre diferentes universos. O mais evidente é o das fronteiras entre a arte, a ação política, a ideologia e a crítica. Outros são mais sutis.

 Na abordagem o limite – e o conflito – se instala porque “o poeta não vive num universo conceitual”, já que o considera “precário e provisório”. Daí, a abertura “aos espantos que venham subvertê-lo”; ou como diz, às “vertigens” de Rimbaud.

Na relação entre a natureza e a cultura

“o poeta não se submete à natureza, porque a natureza, se é a vida, é também a morte; nem se submete à cultura, porque a cultura, para elidir a morte, arrisca perder a vida”.

 Resta ao poeta (como a todo artista) “trabalhar numa terra de ninguém, entre a experiência bruta, informulada e a formulação conceitual, abstrata”.

Universos limítrofes e coetâneos de tempos diversos nos trazem de volta às vicissitudes da cadeira  37.

O patrono seria inicialmente Gonçalves Crespo, conforme a escolha do primeiro ocupante, Silva Ramos. Mas o poeta foi impugnado porque - embora nascido no Brasil - optara pela nacionalidade portuguesa. O gramático lusófilo, “com ironia”, segundo Afrânio Peixoto, escolheu então Tomás Antonio Gonzaga, português que teve várias vezes sua estética, temática e até ação política, contestadas por suposta falta de cor local.  Contestação aliás estranha, não só porque há cor local nas Liras, como pela extensa recepção brasileira de Gonzaga até meados do século XIX, o que nos leva a pensar ademais que antecipava traços românticos.

A excelente edição da “Poesia dos Inconfidentes” organizada por Domício Proença Filho fixa em definitivo esta e outras questões.

De qualquer modo seu arcadismo supera o rococó literário, na expressão de Antonio Cândido, pelo “decoro neoclássico” e são Marília e Claudio Manuel da Costa, tão brasileiros ou pelo menos tão mineiros que o resgatam da “pieguice pastoral” e o tornam um grande poeta, comparável para ele a Bocage e André Chénier.

 Mas o universo limítrofe não se reduz à estética. Sua formação profissional levou Gonzaga a escrever um tratado de Direito Natural, que em plena era do Direito Racional de Norberto Bobbio – aquele que deveria existir ainda que Deus não existisse, na frase de Grotius – seguia os cânones da segunda escolástica portuguesa, que se queria liberta pela atuação pombalina das amarras jesuíticas. E mesmo como conjurado ou nas Cartas Chilenas podemos pensar se foi um ilustrado além-Pirineus – Locke e Montesquieu, certamente não Rousseau – ou se na verdade se via como um inimigo tradicional do despotismo ministerial nos moldes do Antigo Regime, dos que se rebelavam sob a fórmula “viva o Rei e abaixo o mau governo”.

Quanto aos ocupantes da cadeira, comecemos pelos poetas, apoiados no argumento das Liras de Gonzaga, quando diz que “só podem conservar um nome eterno/os versos ou a história”.  

 A obra de Ivan Junqueira, basicamente poética e ensaística, embora fosse também um grande tradutor, é comedida e sofisticada. De seu comedimento, disse Eduardo Portella, que

“comedido é aquele que gere a palavra com a sabedoria e a obstinação dos descobridores”, praticando “a difícil simplicidade que tantos ignoram”.  

Esse comedimento no entanto não o impediu de produzir muito: antologias poéticas, uma delas riquíssima sobre o tempo; poesia, de Os Mortos à Sagração dos Ossos; ensaios vários, como À sombra de Orfeu e O signo e a sibila.

A marca de Eliot está em toda a obra de Ivan Junqueira. Na constatação da “reinvenção do poema” com o uso de fragmentos de outros poetas, como na opção metafísica. Sua tradução de Chesterton não possui apenas apuro técnico, mas profunda empatia. Só esta perspectiva metafísica explica em Ivan Junqueira porque a cultura supera a natureza, quando as grinaldas secam e as catedrais duram e esplendem. As ações dos homens podem aspirar à eternidade quando se aproximam da essência. Neste ponto, antípoda de Gullar. Por outro lado, ainda lembrando o juízo sempre preciso de Eduardo Portella, o cultor da “estética da parcimônia” aproxima-se de João Cabral de Mello Neto.

 Concisão, a palavra mais frequentemente utilizada para qualificar João Cabral. Por isso, mas não apenas, pode Ivan Junqueira dele dizer que ia contra a tradição não somente da língua mas do próprio pensamento da língua, fundado na musicalidade e na logopéia, para em seu lugar exprimir a realidade visual a partir de uma ”sintaxe áspera e mineral”.  Pedra do Sono, já foi dito, traz em si o “germe do construtivismo racionalista”, mas O Engenheiro expressa melhor o intelectualismo do poeta, quando compara as “desordens da alma” com “a ordem que vês na pedra... fora do tempo/ que não a mede”, ou ao encontrar a tangibilidade do tempo no poema “A moça e o trem”. Isso sem que perca a sensibilidade, pois como já muito se repetiu, sua poesia visa à inteligência “através dos sentidos”.

  Limítrofe, ele também, da inteligência e da sensibilidade, como foi limítrofe dos “dois Brasis” em  Cão sem plumas, O Rio,   e Morte e Vida Severina, mas longe de qualquer reducionismo sociológico, antes sensível a outra interseção, a dos quadros mentais do passado e do presente e de distintas geografias. Essa interseção explica a presença da tradição pastoril em Morte e Vida Severina e também a descrição de situações como no diálogo do retirante com a “mulher da janela”, quando se diz que “esses roçados (...) o banco já não quer financiar”.

Isso porque, como  se lê em O Rio, “Foram terras de engenho,

agora são terras de usina”,

[por isso]

“estas gentes mesmo na boca da usina são os dentes

que mastigam a cana

que a mastigam enquanto gente”.

 

Esta mesma gente reaparece logo depois em  Dois Parlamentos, como o “cassaco de engenho”, para quem todo o trabalho parece pesado, porque sua compleição é doentia e o sangue, ralo – imagem que lembra o Jeca Tatu roído de verminose de Lobato.

As distintas geografias surgem nos paralelos entre Pernambuco e a Espanha, desde    Paisagens com figuras   a  Agrestes, em que se aproximam a Andaluzia e o Nordeste, Recife e Sevilha ou ainda no Auto do frade, no qual a última fala de Frei Caneca diz de Córdoba e Sevilha, “todas de branco caiadas”.

O drama nordestino é a temática de João Cabral e nela o núcleo é Pernambuco, como este aparece no Museu de Tudo, em que afirma a verticalidade de seu estado:

“só vai na horizontal  nos mapas em que o mutilaram (...)  

 pois é enganosa e não diz de sua história

 e muito menos de sua casta”.

Do Nordeste e de Pernambuco  era também José Julio da Silva Ramos, o fundador da cadeira, de quem João Cabral de Mello Neto disse ser “poeta e tradutor de poetas”,  mas que sempre é mencionado como filólogo porque Adejos foi considerada obra poética menor.

Da mesma geração de Nabuco, Franklin Távora e Araripe Júnior, se tivesse permanecido no Recife teria com eles estudado na Faculdade de Direito, como lembrou Alcântara Machado.  Foi porém para Coimbra, onde se formou e conviveu com Guerra Junqueiro e Gonçalves Crespo e ainda alcançou Castilho.

Era da geração marcada pelo bando de ideias novas de Silvio Romero, portanto igualmente limítrofe entre romantismo e realismo, ecletismo e positivismo. E viveu também entre dois mundos culturais, o português e o brasileiro, quando este deixava cada vez mais de ser luso-brasileiro.

Passemos aos “homens de ação”, também eles submetidos aos desafios de universos limítrofes e coetâneos de tempos distintos.

De Assis Chateaubriand disse Anibal Freire, recebendo-o na Academia, que era um homem sob o signo da curiosidade. Retrato fiel de um espírito sempre agitado, colocado em movimento por João Cabral ao sucedê-lo: muitas ideias, sem “corpo sólido e sistemático”, e mais que elas,  era a maneira como as adotava o que importava na sua obra jornalística.

Um nietzscheano, acrescento, como o foram tantos de sua época, capaz de insights brilhantes sem nenhuma sistematização e que estavam de antemão absolvidos pelo anátema do próprio Nietzsche contra os que chamava justamente de “sistemáticos”. Perspectiva adequada a um jornalista, obrigado a acompanhar o cotidiano do país e do mundo.    Talvez um pesquisador paciente encontre algum dia, por trás da multidão de escritos e temas, alguns fios condutores, ou pelo menos algumas ideias-força.

Como homem de ação no jornalismo, inspirador da integração nacional a partir dos aeroclubes,  introdutor da televisão no país,   criador do MASP,   repórter dominado pelo espírito polemista,  heterodoxo sempre, Chateaubriand vivenciou intensamente - como era de seu feitio -  o momento de transição entre os estertores do Brasil rural, patriarcal e patrimonialista e a emergência do  bando de fatores novos, parafraseando Silvio Romero, cujo choque até hoje experimentamos.

O mesmo bando de fatores novos balizou a atuação de Getulio Vargas, antecessor de Chateaubriand na cadeira. Este associara em seu discurso Getúlio a Ulisses  pelo tato, finura, solércia de gato, sedução de demiurgo, misturando o espírito malicioso de Voltaire com o sadismo aristocrático de Cesar Borgia. Em resumo, via nele como todos nós, vários Getúlios, que gostavam de ser interpretados.

Ou diria eu, como Secchin de Gullar: muitos Getúlios num só Vargas

A solércia de gato aparece no próprio discurso de Getúlio Vargas ao ingressar na Academia. Consciente do caráter polêmico de sua incorporação - todos lembramos o que dela disse antologicamente Monteiro Lobato – foi nas palavras iniciais lembrando que na fundação da Casa de Machado de Assis havia um fosso entre os homens de ação e os cultores do espírito, “com incompreensão mútua”, superado apenas na terceira década do século, pela simbiose entre ambos. Ou seja, entrava em terreno já pacificado, ou pelo menos definia esta versão.

A identificação dos fatores novos e a alquimia entre os “dois Brasis” Getúlio apontou no fecho de seu discurso, ao dizer que O país fizera a emancipação política no passado, fazia a econômica no presente e projetava sua emancipação cultural, para o que apontava a responsabilidade dos intelectuais que o ouviam e o papel da Academia.

Mais sedutor, em pleno Estado Novo, impossível.

Antes de Getúlio, Alcântara Machado, o segundo ocupante da cadeira.

Acostumados como estamos em associá-lo ao clássico precursor da sociologia e da história social Vida e Morte do Bandeirante, não nos recordamos que foi um homem de ação. Jurista das Arcadas, tema estudado em obra tornada clássica por Alberto Venâncio Filho, teve papel importante no Partido Republicano Paulista, como vereador da capital, constituinte em 34 e senador por São Paulo, além de autor do anteprojeto de Código Penal, promulgado em 1940 e até hoje em vigor.

Sua obra principal, publicada antes de Casa Grande e Senzala, baseou-se na análise dos Inventários e Testamentos mandados editar por Washington Luís. Nela corrigiu a interpretação de Oliveira Viana, que via na São Paulo colonial uma aristocracia opulenta, quase plutocrática, substituindo-a pela visão do bandeirante pobre, que legava botas e outros utensílios em seu testamento. Sem aderir à mitologia bandeirante que se construía no estado para legitimar a preeminência política no país, orgulhava-se entretanto da origem vicentina e no seu discurso na Academia cunhou a expressão que ficou a ele associada:

“paulista sou, há quatrocentos anos...”

Também ele se confrontou com os fatores novos, em seu caso, a imigração italiana em São Paulo e a reação foi negativa, temendo que os “adventícios” quebrassem a tradição e o ethos bandeirante – atitude oposta à de seu filho homônimo, modernista entusiasta, cofundador da Revista de Antropofagia e autor de Brás, Bexiga e Barra Funda, no qual se narra o processo de aculturação do imigrante.

Vemos na cadeira 37 ruptura e continuidade, mas também  um vínculo muito importante a ligar todos os seus membros: a preocupação com a língua portuguesa.  Todos os seus ocupantes foram dela bons e fiéis cultores, no espírito e na letra do art. 1 do Estatuto.

Ferreira Gullar em O certo e o errado defende o bom uso da língua,  afirmando que partia do princípio

“de que a obediência às normas básicas do idioma preserva-lhe uma capacidade maior de expressar, com precisão, o pensamento, sem eliminar as sutilezas e as nuances que o tornam mais rico”.

Esse indissolúvel liame entre linguagem e raciocínio, que  encontramos reiteradamente em linguistas como Antonio Houaiss, Domício Proença Filho e Evanildo Bechara, para lembrar apenas aqueles mais próximos, precisa ser preservado como cláusula fundamental – uma das poucas situações em que a ortodoxia vale a pena.

Mas o bom uso da língua, lembremos ainda Gullar, não implica em dogmatismos gramaticais, pois “quem tem frase de vidro não joga crase na frase do vizinho”, porque afinal, a crase “não foi feita para humilhar ninguém”, frase de que ciosa e justamente reivindicava a autoria.

Estava sempre em boa companhia na cadeira. O patrono era fiel ao espírito arcádico, que vinha de Boileau na forma e de Du Bellay no culto à língua. O fundador viveu no clima de sarampo gramatical do início do século XX, em que Cândido de Figueiredo publicava “O problema da colocação de pronomes”, Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro discutiam a parte adjetiva do Código Civil e Silvio Romero irritava-se com todos os que disputavam entre “despercebido” e “desapercebido”.

 Silva Ramos, apesar de toda sua formação castiça em Portugal, era sensível à fala popular, à “quebra de regras linguísticas de um país para o outro”, defendia uma ortografia simplificada e quanto aos pronomes, dava-lhes a liberdade de se colocarem onde melhor lhes parecessem.

João Cabral, com precisão de lâmina bem adestrada, buscou inverter a tradição da poesia em português, valorizando, em suas palavras,  a estrutura e não a tessitura e atribuindo à sintaxe o papel organizador.

Sua obra nesse aspecto reage contra toda a tradição de eloquência/retórica/facúndia da expressão em língua portuguesa. O outro poeta, Ivan Junqueira, constatava nesta Academia que a língua portuguesa “vai perdendo entre nós em elegância e concisão, em clareza e vernaculidade, sob o absurdo e estúpido pretexto de que um dia chegaremos... à estapafúrdia existência de uma língua brasileira”.

Os homens de ação de nossa tipologia, Alcântara Machado, Getúlio Vargas e Assis Chateaubriand preocuparam-se igualmente com a língua e identificaram na Academia papel primordial para sua defesa e cultivo. Destes, vale em especial o registro definitivo que de Chateaubriand fez João Cabral: mestre da língua falada em seus textos jornalísticos, sem o uso do “jornalês padrão das redações” e com a preocupação modernista de aproximar literatura e língua utilizada no país, sem esquecer a crescente presença da linguagem nordestina.

Intelectuais e  homens de ação da cadeira 37 tiveram, apesar de suas diferenças, outro grande traço comum, a esperança.

 Esperança dirigida a objetos diversos, conforme os valores e as intenções de cada um, mas sempre esperança.

Ferreira Gullar poderia ser um cético, como Montaigne, mas preferiu ser crítico e apaixonado, como Nietzsche e Rimbaud. Certamente tinha a esperança de superar as limitações do Brasil dos anos 60 e as limitações do viver, sempre através da arte.

Ivan Junqueira tinha a esperança dos valores eternos, suspeito que inspirado em algum tipo de socratismo cristão. João Cabral, todo “cosa mentale” em sua poesia, supera o ceticismo porque “celebra a solidariedade humana” e diz que

“não há melhor resposta

 que o espetáculo da vida (...)

vê-la brotar  ...   em nova vida explodida  ...

mesmo quando é a explosão  ...

de uma vida Severina”.

 

Silva Ramos espera por um novo Brasil e pelo futuro da língua. Gonzaga, pela lira inspirada e pela correção dos governantes. Alcântara Machado, que triunfe o espírito paulista em todo o Brasil, pela adoção dos valores que atribui aos bandeirantes. Assis Chateaubriand, que surja um novo país, moderno, industrial, educado e culto.

Getúlio Vargas... terá um suicida perdido a esperança, como no pórtico de Dante? Não creio. Comte ensinava que a eternidade era a presença na memória dos homens e o positivista Vargas expressou claramente que saía da vida para passar à história.   

Senhoras Acadêmicas e Senhores Acadêmicos, o recorrido pela cadeira 37 nos mostra a riqueza da diferença. Diversidade de visões de mundo, de vivências e de interpretações de que a cadeira e a própria Academia são tão ricas. A historicidade em que estamos todos imersos torna-se singularmente reveladora quando pensamos numa instituição como a Academia Brasileira de Letras.

O que realiza e o que recusa, o que é o que não é, suas expressões e seus silêncios, desvelam a tessitura do próprio processo histórico.

O universo de experiências que cada membro da instituição traz e o horizonte de expectativas que a todo momento descortina, para usar a imagem de Koselleck, estão impregnados de historicidade, o que os torna de modo especial simultaneamente sujeitos e objeto da história. Mas de uma história célere. Vidas e obras em universos limítrofes, que experimentaram rupturas e continuidades e talvez mais que tudo o estranhamento de viver coetaneamente tempos diversos.

Sim, porque a Academia e os membros da cadeira 37 vivem sob a égide da mudança e da aceleração da história: relações econômicas, estruturas sociais, modelos políticos, concepções estéticas, valores e comportamentos, tudo sofreu os efeitos da aceleração dos tempos. Uma historicidade desafiadora, como já se viu em outras épocas, mas agora em escala planetária, em que as escolhas de cada ator, no horizonte que percebe, obrigam a uma cotidiana ponderação de opções frequentemente conflitantes.

Uma historicidade que, se desafia a todos, desafia mais ainda o historiador. O conhecimento histórico revelou-se impotente para reduzir a historicidade às leis e macroexplicações da ilusão cientificista, que Goya prenunciou ao denunciar os monstros gerados pelos delírios da razão. E foi bom que isto acontecesse, não para uma desanimada renúncia à compreensão, mas para torná-la mais profunda e sofisticada,  interpretando antes que explicando,   comparando intenções dos agentes e seus resultados,  avaliando forças coletivas e ações individuais,  tudo para chegar a um conhecimento que possa acrescentar algo a nosso entendimento da vida social do homem. Algo que não seja radicalmente simplório, porque a realidade é complexa e a simplificação conduz à intolerância, à irracionalidade e, no limite apontado por Hannah Arendt, ao totalitarismo.

Instituições como a Academia, fóruns de convívio e de ideias, têm um papel a cumprir nesses desafios da historicidade contemporânea. E este papel, consubstanciado nas suas realizações intelectuais e simbólicas, possui significado transcendente se pensarmos que a Ética a Nicômaco   nos recomenda viver de acordo com a melhor parte de nós mesmos: se assim for, a experiência da historicidade deve ser uma experiência de humanidade.

É com esta convicção que chego ao umbral da Casa de Machado de Assis.