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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Ataulfo de Paiva

RESPOSTA DO SR. ATAULFO DE PAIVA

MONSENHOR,

Em seu labor fecundo e intérmino, a Academia, instituída e formada para recolher e exaltar os mágicos triunfos do talento, jamais foi buscar em plaga tão ocidental e, raro, em sítio tão distante, para compor integral e harmonicamente o seu quadro orgânico, um gentil homem das letras, figura assim de genuíno literato.

Pertinaz nos seus anseios de perfectibilidade, inflexível no seu empenho de premiar, incentivando, as demonstrações soberanas do cultivo da língua e da literatura nacional, compraz-se a Academia em vencer as mais largas distâncias e atrair ao seu seio, quente de entusiasmo e satisfeito de glória, como neste momento, o patrício ilustre que, numa hora de tamanha elevação espiritual, a enche de verdadeiro encanto.

A ditosa terra do recipiendário não é hoje um “fim de mundo” que o bravo viajor só atingir possa depois de vencidos mil obstáculos, quiçá outros tantos perigos. Para aquelas regiões já vimos, com os nossos olhos, alçar o vôo, mansa e majestosamente, pondo à prova a audácia e a resistência humana, a águia moderna, que, rumorosa, atravessa nuvens e suporta tempestades, a devorar quilômetros por minuto, num deslizar vertiginoso, em que aproxima povos e ativa os sentimentos do amor.

A viatura alífera pode vencer em horas o percurso que medeia entre o coração pátrio que nos agasalha e a metrópole provinciana assente no maravilhoso e sobranceiro palmar dessa linda terra, “terra noiva do Sol”. Mato Grosso, cuja configuração se assemelha à do próprio país de que é porção inseparável e guarda de extensa fronteira, oferecendo das suas fartas e úberes entranhas o ouro, colhido outrora à flux, o diamante e mais gemas, as essências da mata e outras preciosas espécies da flora, é reservatório colossal de precioso e incalculável valor.

Riquezas tão copiosas pela Natureza entesouradas em uma região onde pródiga também ela foi na distribuição dos cursos de água, agigantados aqui e ali, e nas formidáveis estagnações, que pompeiam a espaços a portentosa Victoria régia, eram como um índice seguro de que o solo abençoado, sob que jaziam, possuía condições para ser o imponente cenário em que viria à luz um espírito fadado a altos destinos.

Milhares e milhares de léguas do nosso vastíssimo interior são, por certo, motivo de justo orgulho para quantos se deliciam com a idéia de grandeza territorial da pátria amada. Ai, porém, de quem precise comunicar-se com os nossos dilatados sertões! Sulcados por inúmeros caudais, que o barco, raro, corta, e cheios ainda de florestas quase inextricáveis, têm eles, à parte a doce e suave poesia que estas trescalam na sua robustez virginal, um viver de modorra e de quase esquecimento do mundo.

Até onde chega a locomotiva, parece haver um frêmito de animação e uma aura assecuratória dos proveitos da civilização. Mas – para que iludir-nos? – o correio é tardonho; as estradas, uma via sacra; o telégrafo, soberbo na sua discrição, míngua as notícias. Sem embargo, somente o caminheiro resta impávido; e ninguém é capaz de dissuadir o sertanejo, testo mas pervicaz, espelho da raça, de um propósito de viagem pelo mato adentro. Embrenhando-se pela floresta, atravessando, intrépido, grandes águas, galgando encostas, pousando, indiferente, em abrigo ou ao relento, ele só se detém no termo da jornada. E, se este demora num gasalhoso, ameno e culto Senhor Bom Jesus de Cuiabá, bastas reflexões hão de acudir-lhe à mente, ao considerar, não sem largo e pesaroso suspiro, quão longe está, na realidade, mesmo com os prodígios do aeroplano, o término feliz dessas rudes derrotas ao longo das selvas bravias e remotas.

A boa e civilizada gente do grande Estado ocidental, só há pouco, em data recentíssima, teve a sacudi-la um espetáculo novo e deslumbrante. Madrugara, na placidez dos seus lares. Senão quando, erguendo os olhos e procurando no céu o que na terra, embaixo, pressentia não encontrar, viu, atônita, pairar entre as nuvens, a zumbir qual inseto ciclópico, uma ave misteriosa, de proporções nunca vistas.

Pássaro branco? Pássaro verde? Pássaro azul? Nada disso. Uma passarola tricolor, – verde, branco e vermelho, – as cores do lábaro da Itália. Era o vôo da raça latina distendido brandamente sobre as lendárias florestas virgens: – demonstração viva do poder da fé, na execução perfectiva do belo sonho de Bartolomeu de Gusmão, que se concretizava naquele “Santa Maria”, dirigido pelo nobre De Pinedo, em audaz remígio desde as brisas balsâmicas do Mediterrâneo, adejando, na sua rota atrevida e gloriosa, curioso e maravilhado, até avistar ao longe os “itambés dourados da Chapada”.

Pairando, entanto, àquela altura, mal sabia o famoso e intrépido aeronauta que por ali perto estava, quiçá, em sua igreja do Bom Despacho, a formular preces pelo sucesso do aventureiro do espaço, um príncipe da Igreja cujo trono máximo se ergue realengamente na Cidade Eterna, onde o salutar bafejo da Universidade Gregoriana lhe não pudera sopitar, antes acalentar viera, em boa hora, os arroubos do sonho aos primeiros arpejos da inspirada lira.

Se a aeronave despertou, na alma do feliz rebanho, a funda emoção de um mistério que se dilui numa armação rija, entre regras de mecânica e de aeronáutica, bem possível é, também, que ao querido e virtuoso pastor, sabendo-a a cortar a imensidade celeste, houvesse acordado, com a benigna impressão do azul fascinador – desse azul que tantas vezes nomeia nos seus carmes, – indômitas saudades da legendária terra onde o seu coração amantíssimo vibrara primeiro à doce inspiração da musa angelical.
E a província ocultava ao grande mundo o bardo místico que, no silêncio augusto da cela, dava aos estos da flórida imaginação um curso, em mimo e auso, tão elevado como o que, em altura, seguia o aparelho aerostático.

A província, isolada por acidentes naturais, a centenares de léguas do coração de um país de oito e meio milhões de quilômetros quadrados, abranja embora um sexto dessa área, se a não aviventa o sopro de progresso intenso que de dia em dia e cada vez melhor a aproxime dos vastos centros da atividade humana, é atroz degredo em que só não sucumbe quem jamais haja sentido o voluptuoso contacto dos grandes focos de civilização, sorvendo-lhes, na plenitude, os doces amavios.
Sem a contemplação dos ilimitados horizontes, que se descortinam das amplas metrópoles, o espírito sequioso de luz ou, ainda, apercebido de dons, longe das magnas oficinas do pensamento ou das massas de escol em que rebrilham sábios julgadores, se não tem a iluminá-lo algum estranho facho que o gênio ateie, pouco e pouco desanima e se abate, definha e se retrai, obscurece-se, esteriliza-se, até engolfá-lo o marasmo, passo vizinho da morte.

Os pássaros azuis, verdes, brancos ou vermelhos que se alimentam de essência podem, como que miraculosamente, transpor, com velocidade fenomenal, águas e terras, abrir caminho à civilização encurtar distância aos transportes, as relações sociais. E em tal empresa nada os supera, nem sequer iguala. Passar, porém, caudalosos rios que cimba alguma corta, penetrar florestas e cerrados que cipós e lianas tornam inextricáveis, vencer chapadões, e, demais, retificar mapas e levantar novos, demarcar estradas, trazer ao grêmio civilizado os nossos irmãos selvícolas, inteligentemente, afavelmente, como lídimo democrata, amante da ciência ao coração aliada, disso é capaz um Rondon, por seus feitos, benemérito da Pátria e da Humanidade.

Não viesse, entanto, o preclaro General, guiado pela sua extraordinária visão, à capital do país, não falasse, não escrevesse para o grande público, não subisse à tribuna das conferências, para ser ouvido por toda uma multidão de curiosos entremeada de cientistas e políticos, não recorresse às projeções luminosas, para mostrar ao vivo, com os resultados dos seus árduos e ingentes esforços, as maravilhas e o estado real dos nossos abandonados rincões, e ninguém, cá fora, chegaria a ter exato conhecimento de tão notáveis façanhas e a proclamar urbi et orbe o excepcional merecimento do seu autor.

É que a Capital constitui, por excelência, o núcleo em que se alteia a tuba da glorificação, como centro máximo de expansão, de vida, de difusão. Se “a Literatura e a Arte são, no bom e no mau sentido, cortesãs”, como algures se avançou, bem mais segura, iniludível, é a “ação cultural das populações citadinas do centro”, na frase de um erudito escritor e crítico acatado, o Sr. Tristão de Athayde. À Capital, sede dos mais formosos e variados monumentos, – como estes, fonte de perenes sugestões, –  aí não está imprimindo pasmosa atividade o mais hodierno e popular instrumento de correspondência universal – a radiotelefonia, – quotidianamente falando, cantando para o país inteiro?

Sem o feliz agasalho ou a soberana consagração da Capital, quanto tempo teriam aguardado os lauréis da Fama os provincianos ilustres – para citarmos apenas os desaparecidos da vida objetiva e só alguns – Gonçalves Dias, aqui imprimindo os Primeiros e os Segundos Cantos; Alencar, escrevendo na Tijuca o Tronco do Ipê e Sonho de Ouro; Rui, Joaquim Nabuco; Castro Alves, celebrizando-se em São Paulo e aqui encontrando eficaz acolhida em Machado de Assis e Alencar? E Capistrano de Abreu – o superno historiógrafo e festejado lingüista, retraído e solitário, cuja tumba ainda rorejam as lágrimas quentes das saudades que deixou? Mestre de mestres, se – para preparar, embora sempre recolhido, a sua vastíssima erudição, – não viesse para aqui, deixando a luminosa terra dos jangadeiros, onde é realidade a vida espiritual dos seus filhos, – não sei se nos seria dado prantear, como agora, fortemente apertado o coração, um dos mais privilegiados cérebros que se têm consagrado à literatura e à ciência.
Lícito nos seja, entanto, obtemperar que a regra – da difícil expansão intelectual provinciana, assim em termos de se estabelecer, dada a persuasão das premissas, – não foge, por boa, também à regra: registra exceções. E mal não deve haver que confessemos, na melhor intenção, aliás, que do nosso conhecimento são, entre outros, que a lista formam, dois casos típicos, admiráveis, raríssimos nos anais literários, pelo brilho extraordinário de que se revestem: recente um; ambos, porém, quase contemporâneos.

Duas celebridades se formaram na taciturnidade do seu recesso, – praieiro o de uma, campesino o da outra, – e a província mesma, onde desabrocharam, sem que nunca houvessem vivido cá fora, lhes sagrou os nomes em aclamações que ainda hoje reboam triunfalmente até no coração do país. A primeira... Já lhe adivinhastes o nome, Srs. Acadêmicos: vislumbro-o na fulguração dos vossos olhos, que se incendem à simples evocação, velada embora, de um vulto que vive em nossa imaginação e viverá para todo o sempre, na de quantos tiverem haurido no manancial das letras e da ciência a seiva vigorosa que elaborou: – o mestre eminente que foi Tobias Barreto, – salvante da sua obra, claro está, as ímpias e extravagantes tiradas, que aos espíritos sinceramente amantes da crença não é dado aplaudir.

O glorioso chefe da Escola do Recife jamais quis pontificar na terra de Mem de Sá, cujos tradicionais encantos, patenteando as esplendorosas dádivas da pródiga Natureza, a incitar o Homem ao culto incessante do Belo, não possuíram, contudo, o condão de tentá-lo. É que o mestre genial não se dignava de descer até nós. Ansiosos de abeberar-nos nas suas sábias lições, nós é que tínhamos de ir até a ele. A mocidade acadêmica do sul, tornando usança ir à capital pernambucana estudar certos anos do curso jurídico, voltava embevecida das suas preleções, dominada pelo seu verbo altíloquo e vasta ilustração, e convertia-se, justiceira e reconhecida, no mais intenso propagandista do seu talento.

Regressando da peregrinação escolar, bem-aventurados por terem comungado com o exímio sergipano nos seus profundos estudos, os jovens excursionistas volvem, jubilosos, ao sítio donde partiram, formando valorosa falange que em toda a região meridional havia de proclamar a grandeza do astro que os deslumbrara às margens do Capiberibe.

Tobias Barreto, mestre, orador, poeta e filósofo, não precisava, pois, sair da sua província para resplandecer.
Pouco mais tarde, reinante ainda a ordem monárquica, e, depois, já em dias da República, vozes autorizadas, aurifulgentes, fazem-se ouvir, cheias de ardente fé, qual se abrasadas fossem pela sublimidade de uma nova idéia: e é então que quase toda a Escola do Recife, obedecendo à mesma senha, se encaminha, radiosa e potente, para o Rio de Janeiro, a falar sobre o provecto e acatado professor, o orador terso e facundo, o polemista, o crítico vibrante, o poeta dos Dias e Noites.

À testa da forte plêiade colocou-se Sílvio Romero, de viseira erguida, impávido e sereno, desvelando em serviço da causa a sua vasta erudição; e, fiéis à doutrina e orientação do Mestre, cujas pregações sugestivas e harmoniosas souberam destramente assimilar e com êxito completo difundir, vieram para a propaganda vigorosa, ativa e permanente, Clóvis Beviláqua, Artur Orlando, Inglês de Sousa, Graça Aranha, Urbano Santos, Martins Júnior, Fausto Cardoso e outros.

Razão, pois, me assistia quando, acorde com a primeira restrição, declarei que Tobias Barreto, para irradiar a luz do seu gênio pelo país inteiro, não precisava sair da sua cara província.
Eis-nos agora em face da outra exceção à regra das celebridades literárias circunscritas à província.
Voltai-vos para o ocidente do Brasil, para a região dos Guaicurus, éden dos naturalistas, meta dos bandeirantes, estação terminal sonhada pelos caçadores de esmeraldas, onde a majestade do cenário patenteia prodígios da Criação, e prenuncia o advento de novas grandezas de toda ordem na frutificação da inteligência humana.

Aí, “sob os flabelos reais de mil palmeiras, tão verdes, sobranceiras e lindas como alhures não as há, sobre alcatifas da mais verde relva em meio à verde selva”, qual inspiradamente canta a Cidade verde – Cuiabá – o filho seu dileto que a vida e o coração à Igreja consagrara; aí, na pureza de um sacro eremitério, espírito sempre voltado para o azul dos céus, na beatitude fervorosa de um crente feliz, ides encontrar, mente às Musas dada, esse cantor do filial reconhecimento, o poeta de Terra Natal.

Vede-lhe a formosa cabeça, de linhas harmoniosas, onde os cabelos alvinitentes, emoldurando rosto em que se espelha exuberante mocidade, são antes índice de invejável nobreza, e os olhos, grandes e luminosos, que parecem, a quem fitam, ungir de paternal piedade e afeto; reparai-lhe no talhe esbelto, que mais alto sombra sob a violácea capa viatória sobreposta à loba, envolta pela faixa episcopal, e nas mãos patrícias e aveludadas que afagam na saudação como na bênção, no aspergir como no declamar; aproximai-vos dele, – e sua pessoa vos comunicará, a par de um saudável equilíbrio intelectual, de uma polida distinção, – invejável segredo das naturezas superiores, – a mais funda, a mais viva, a mais luminosa, a mais insinuante simpatia. É um antístite da Igreja, filho de Dom Bosco: – é Dom Francisco de Aquino Correia.

Para ufania vossa, Monsenhor, sois essa outra exceção na república das letras pátrias: vitória do espírito, celestialmente e longe iluminado, que, recolhido em silenciosas paragens, súbito, transpõe barreiras, galga o espaço e se acolhe em regaço de prestigiosos confrades.

Deixai, porém, que, por momentos, vos contemplemos no manso redil da igreja. Ali, cercado e querido das suas amadas ovelhas, que em tempo algum conheceram mais solícito e angelical pastor, Monsenhor, extático, vela, acalentando as Musas bonançosas e tentadoras como, para as almas de eleição, é a própria Virtude.

O ilustre Salesiano, fiel aos preceitos da sua venerável Congregação, agita-se incessantemente, educando, curando e salvando almas, socorrendo necessitados, despertando iniciativas, no afã incansável do lídimo obreiro do Bem.

Senão quando, ao celebrar-se o centenário da nossa independência política, aqui desponta um clarão de luz perenal, suave, acompanhado de harmonias líricas inebriando a Cidade. São os versos prelatícios que chegam: é o livro verde. Surge o Poeta.

Cinco anos se escoam apenas. Quem quer que haja lido Terra Natal conter-se não pôde indiferente ante a revelação do bardo que brandiu o plectro em plaga tão remota, fremindo de são patriotismo, sem outras armas além do seu vívido amor ao solo que o viu nascer, a sua impertérrita virtude e aquela esperança por ele erigida em décima musa do Parnaso.

O julgamento da obra – pavor e tormento dos escritores novos – deve ter despertado no Autor as emoções mais gratas. Pleno foi o sucesso que lhe assinala o reduto crítico do jornalismo, de onde, sob o título Registro Literário, empunhando, indefesso, a férula de Aristarco, lançava virilmente suas palmas o terror dos noviços que era Osório Duque-Estrada, de saudosa memória.

Ei-lo percorrendo, “embora sem prevenção”, mas com “acentuada desconfiança” (di-lo, sem rebuço), as primeiras páginas da brochura, na qual se davam à luz da publicidade versos de um poeta para ele “até então desconhecido” e – incrédulo, acrescenta, com malícia, – “além de tudo, arcebispo”; ei-lo para logo proclamando que figuravam no volume algumas produções suficientes “para revelar um escritor de real talento e cujo espírito se alteia, por vezes, a regiões muitíssimo elevadas”.

O severo julgador, que o espírito revolucionário da época reputava um crítico vermelho, “pasmou, certamente, de se lhe deparar, como afirma, ‘um bispo a dedilhar as cordas da lira em plena manhã do século XX’; mas, – timidamente embora, importa ponderar, – assim pasmou porque não vira as Odes do mesmo augusto menestrel, em cujo belo ‘Prelúdio’, composição admirativa, se acha finamente justificada a conciliação perfeita entre o báculo e a lira, quando tem a patrociná-la a figura hierática de um poeta qual Leão XIII”.

Era de ver, porém, como lhe sorriram logo o hino “bem torneado e sonoro” entoado ao glorioso berço e os formosos sonetos que à satisfação de transcrever não se furtou, – este “que qualquer dos nossos bons poetas assinaria”; aquele, que se lhe afigurava “melhor, talvez, do que esse”, – os quais por si só “bastariam para elevar acima das produções vulgares a obra de D. Aquino”.

O fino perfume que sente evolar-se de versos tão fluentes convida-o a prosseguir o folheio, no qual outras produções se lhe denudam “que serão lidas com prazer pelos mais exigentes em assuntos de arte e de poesia”, e, nesta altura, dá o soneto Três Lagoas, “inquestionavelmente obra de verdadeiro poeta” e “capaz de impressionar qualquer leitor e grangear para o Autor um lugar de honra no Parnaso”, tais as suas expressões.

Mais e mais dominado pela rara beleza da obra singular, traslada Pantanal, A Lufada, e Rio Madeira, para realçar e melhor comprovar, no seu dizer, “os predicados evidentemente pouco vulgares que patenteia o Autor como paisagista vigoroso e capaz de interpretar, ao mesmo tempo, a alma das coisas e a poesia da natureza”.

Afinal, no auge da aclamação, indiferente à própria disciplina acadêmica, e como arras do seu contento, ele, que não ressumava blandícias nem complacência, não trepida em descobrir de público o seu voto, – e aponta ao Poeta uma Cadeira nesta Academia. Mais não se poderia dizer.

Coisa curiosa! À sagacidade profissional de Osório, afeito à respiga e joeiro diário, homem de imprensa, fiel amante de livrarias, havia escapado o juízo que acerca de uma outra obra – Odes – e do mesmo autor, cinco anos atrás, emitira, em um dos seus folhetins de mestre da crítica, o sábio Sr. João Ribeiro.

Nem uma restrição opôs este consagrado filólogo ao primor dos versos. O seu louvor, completo e sem tibieza, o absorve todo naquele dia, fato esse menos comum em crítico da estirpe de João Ribeiro.
Observai com tento as suas expressões. Amando e sentindo a grandeza da antiga poesia sagrada, e reconhecendo que “todos os sentimentos e coisas nobres inflamam o nosso poeta, – a religião, a pátria, a mocidade, o heroísmo, a bandeira, o sacrifício”, – colhe o grande crítico na obra em apreço os motivos do seu juízo, proclamando, afinal, que “a lira sagrada, emudecida há mais de um século, desde Sousa Caldas, em todos os recantos onde soa a língua portuguesa, vibra agora novos acentos, com o vigor, com a meiguice e doçura de um renascimento da Fé”, pois, em verdade, conclui, as poesias de D. Aquino “dão à Igreja brasileira o seu primeiro poeta”.

Tarefa, portanto, mais grata não se nos pode antolhar do que a de folhear, com o carinho devido a delicados lavores, as inspiradas páginas do cantor antístite, cuja Terra Natal é um tesouro de arte, tornado mais precioso pela cívica inspiração que o anima inteiro. Cada composição que encerra é uma jóia burilada por mão magistral. “Bandeirantes”, “A monção”, “Véu de noiva”, “Ninho em flor”, “Tapera”, “O boi cuiabano” são vôos de alma de verdadeiro bardo.

Nas Odes, em dois volumes, enfeixou ele as raras sobreviventes das suas produções primevas e ulteriores cantos, todos de graça sutil e sublimada inspiração, “transportes deliciosos de uma alma de noviço, de sacerdote e de Bispo, para quem Deus é o ideal dos ideais, a Poesia infinita, pela qual tudo é belo, e sem a qual tudo é nada...”

Os encantos, portanto, do trovador que hoje temos a fortuna de receber revelam-se nas Odes de maneira triunfal como no primeiro livro citado. “Ao Divino Mestre”, “Musa celeste”, “Morrer! dormir! sonhar!”, “O lázaro”, “Caveira idolatrada”, são jóias que a outras se unem para formarem o escrínio de Salmodias; “Alvorada”, “O Colégio do Carmo”, “A perdiz e a jaó”, “As mimosas sensitivas”, “Filomela” e ainda outras constituem o de Melodias; e “Deus”, “Natal”, a “Inveja”, e outras mais, acompanhadas de excelentes versões do latim, italiano, espanhol e inglês, com o remate de composições de métrica latina, que Monsenhor burilou nos seus tempos universitários de Roma, são as Rapsódias, última parte do admirável trabalho.

Nas resplendentes belezas que pompeiam as suas mágicas produções, cada qual mais apurada e tersa, mais diserta e iluminada, o poeta e o prosador se ombreiam.

O seu fundamental título de glória reside precisamente na elegância e esmero da linguagem, fiel espelho de entranhado amor ao Belo, de que lhe irrompeu, em memorável sessão para instalar o “Centro Mato-grossense de Letras”, o apelo ao estudo do vernáculo e ao cultivo da forma e do fundo literário.
A Cadeira que nesta Academia tem por patrono o Padre e Doutor Antônio Pereira de Sousa Caldas, primeiro e mais abalizado intérprete da poesia sagrada na literatura portuguesa, segundo o conceito de Fernandes Pinheiro, e notável pregador, cuja voz tão funda e santa comoção causou às seletas assistências que, um século atrás, se apinhavam na igreja de Santa Rita, ereta nesta cidade, reveste-se hoje das galas mais faustosas para alojar o seu novo ocupante, também padre e doutor, poeta e pregador, elevado, porém, pelos seus méritos excepcionais, à nobre dignidade de Arcebispo de Cuiabá.
Estranho não pareça que, antes de receber com as honras de que é merecedor o eminente prelado, praza à Academia acolher o lúcido trovador, exímio cultor da linguagem e fino artífice do pensamento.

Em uma das maiores solenidades com que nos deslumbra a Igreja Católica, qual a da pomposa sagração de um Bispo, avassalado pela majestade da liturgia, perdido embora em meio à nave de suntuosa catedral, apenas ressoantes as primeiras harmonias do grandioso Ecce sacerdos magnus, – e antes mesmo que os olhos se embevecessem no contemplar a régia ascensão do glorioso antístite ao sólio, – sem dúvida, sentiríamos nós, católicos, dobrarem-se-nos os joelhos, na submissão beatífica do crente, e pulsar-nos mais forte o coração, numa reafirmação pura de fé.

O humilde confrade que ora tem a palavra e espera, dentro em pouco, gozar a suprema honra de estar ao lado do recipiendário, fremiria, satisfeito, se naquele augusto momento, por um movimento mais de disciplina religiosa, e em penhor de filial piedade, pudesse opor um terno ósculo no anel simbólico e sagrado.
Neste cenáculo, porém, – onde as pompas do rito literário encantar também soem duradoura e soberanamente, – a entrada do Poeta, sobre acordar dulcíssima comoção, representa, por sua vez, a marcha triunfal do lídimo dignitário do alto clero, em sua rútila trajetória para o Ideal. Nunca serão menores as homenagens e reverências a tributar-lhe, numa expressão de fé nos destinos da cara pátria, nem menor será talvez o seu contentamento e justo orgulho.

Protraindo, pois, para breve espaço, as honras a conferir ao Príncipe aureolado da Igreja, a Academia, – por que não o dizer? – timbra em asseverar, antes de tudo, que tem hoje ingresso no seu seio a figura indiscutível de um literato do maior tomo, imbuído da supina aspiração do culto do Belo por amor da Virtude.

Muito há que, em nosso país, jaz adormecido o estro sacerdotal, sem que se possa facilmente atinar se os eternos temas de índole religiosa, moral ou cívica não mais apaixonam as naturezas sonhadoras, sequiosas de perfeição, nem se os problemas sociais, cada vez mais complexos, em permanente desafio às almas de eleição são vistos já eivados de prosaísmo, nem mesmo se os espíritos mais cultos se deixam ainda absorver em profundas cogitações.

José Veríssimo, de saudosa memória, mostrava-se quase sempre injusto em extremo ao referir-se às coisas e aos homens da nossa Igreja; mas, um dia, o respeitado devoto da história da literatura nacional (com que dor no coração o lembro!) não deixou de ter certa razão ao argüir que nenhum feito notável dos que a História Pátria regista, engalanada, mereceu do nosso clero as honras de uma epopéia, de uma ode, de um hino... E ele então lembrava a Independência, as lutas pela liberdade, os episódios de guerra, a abolição dos escravos, e outros.

Dir-se-ia que o clero nacional guardou a sua sabedoria, além das suas acrisoladas e reconhecidas virtudes, para o labor silencioso do claustro ou do templo, para o ministério do púlpito, para a catequese, como, em tempos idos, para os martírios políticos, nas revoluções em prol da Independência e de outras causas nacionais. Com isso, esqueceu as Musas.

Quem quer, todavia, que cioso das nossas coisas e da nossa gente, perlustre, de ânimo desprevenido, os fastos, já consideráveis e magnificentes, da nossa história de povo independente, há de encontrar em abundantes páginas, a derramar sobre elas, no serviço da religião, da ciência, das letras e da política, o candor do seu zelo e da sua caridade, os estos da sua inteligência e da sua sabedoria, as cintilações do seu engenho e da sua eloqüência, os ardores do seu patriotismo e até do seu martírio, um sem número de representantes do clero católico, secular e regular, desde os mais graduados aos mais humildes, vencidos uns, vencedores outros, todos, porém, recobertos sempre de honra e lustre.

Onde, porém, entre os inúmeros servidores notabilizados da religião, os Poetas? Claro que não aludimos aos simples versejadores nem a alguns raros, raríssimos, levitas que, de quando em quando, conseguiram vagas produções em caprichosos momentos de piérios devaneios.

Onde os versos que celebrem tantas ações e feitos patrióticos, como os que têm marcado a nossa história de povo em formação, ou cantem glórias outras, virtudes humanas, fados ou o imenso manancial do Belo que é a Natureza? Pois a figura de Tiradentes, quase religiosa, na frase de Dom Duarte Leopoldo; a do Padre Miguelinho, a do Padre Roma, a do Padre Mororó; a Confederação do Equador, com esse extraordinário Frei Joaquim do Amor Divino Rabelo – o Frei Caneca, – que, no seu apostolado, soube aliar a fé com o patriotismo e cuja morte foi a de um mártir, – não são monumentos de inteireza e abnegação, merecedores, na própria grei, de uma nênia, uma ode, um hino?

É que os orvalhos d’alma raramente caem “na profunda, na estupefaciente aridez do nosso meio literário católico”. A expressão não é nossa; mas com que recolhimento e pena a repetimos! Lançou-a um erudito escritor patrício, jornalista e crítico, católico sincero e militante: o Sr. Jackson de Figueiredo.
O autor de Coluna de Fogo e de Afirmações, realçando, em recente livro, o nome de um poeta genuinamente religioso – Durval de Morais, – exalta os poetas de Nossa Senhora. Tem-se nesse trabalho um florilégio dos bardos, principalmente nossos, que entoaram louvores à cândida Virgem dos Mártires.

Não é curta a lista dos nossos vates que cantaram e vão cantando as eternas e não só inconfundíveis, mas ainda inatingíveis, belezas da Virgem Santa.
O aureolado nome de Monsenhor se lhes inscreve no rol. E igualmente lá está o de Afonso Celso, o qual, com o doce carinho do seu lirismo amoroso, no belo e místico Mês do Rosário, conta que a Virgem Imaculada “o seu favor derrama sobre todos; que acolhe compassiva todo o cansaço, que mitiga as dores, e o amargor adoça de todos nós”.

Entre os inspirados marianos deve enfileirar-se, e lá deve estar, ao lado de Bilac e Raimundo Correia, o excelso Príncipe consagrado – Alberto de Oliveira – que, num álbum, ainda ontem, primorosamente cantava: – “Glória, Maria da Glória, que vai aonde os mais não vão; as mães dos homens, na história ficam; esta, à excelsa glória, sobe, onde os anjos estão.”

E no número ainda se inclui o mavioso e também místico poeta do Rimário, Sr. Aloísio de Castro; mas este cantor ameno, no seu formoso e muito sincero soneto “Devoção”, contempla uma Madona, mas uma Madona de sorriso Gioconda, “com seu cabelo repartido ao meio, olhos magoados..., expressão das Virgens de Leonardo”, e, por fim, cicia, comovido, esta súplica: – “Ó Tu, Nossa Senhora dos Amores!”
No minucioso e paciente estudo a que se entregou, descobrindo a torrente dos poetas de Nossa Senhora, conseguiu o Autor apenas coligir alguns belos nomes de sacerdotes que lhe dedicaram versos; e, ainda assim, foi mister contar, entre estes últimos, um belíssimo soneto atribuído ao Padre Feijó, uma jóia de inspiração, mas a respeito do qual o abalizado colecionador declara que dificilmente se pode crer que seja da lavra do Regente.

Forçoso é, pois, convir em que tudo isso é pouco, muito pouco, em matéria poética de feitura sacerdotal, para um século de vida independente, neste vasto país, onde o Catolicismo encontrou ninho propício no coração da grande massa, e onde o clero – nunca é demais repetir – mostras eloqüentes deu sempre da sua cultura e da sua entranhada fé.

Na expressão não nos enganamos. Uma prova está na festa desta grande noite, festa dúplex, pois que – ninguém se iluda – esta deve ser, e também é, a festa do Clero Brasileiro, da sua intelectualidade e das suas virtudes. Nunca se esqueça este da justa e excepcional homenagem que a Academia lhe presta, na pessoa de um seu eminente representante, sem que a isso a obrigassem as disposições das suas leis internas. Já agora, dentro dela, e como lhe agrada, haverá, como já houve, uma voz adequada para dizer da grandeza e dos feitos da Igreja, e principalmente, da poesia religiosa da nossa terra.

Bem-vindos sejam, assim, os versos resplendorosos de Monsenhor. A dulçorosa música dos seus cantos, pontilhada de anseios de perfeição que tem por modelo a Cruz sagrada, a mais nítida imagem de honra, de patriotismo e de glória, na expressão de Almeida Garrett, há de, por si só, – não como um toque de clarim a despertar as turbas, mas como o chilrear de mil pássaros num matinal crepúsculo, trinando sobre a beleza do Evangelho, em prenúncio de maior claridade, – acordar, incender e propelir para melhores destinos essa nobre mocidade que, preparando-se para um viver de desprendimento das coisas temporais, de defesa contra a hidra da corrupção, de exercício e patrocínio de todo bem verdadeiro, num constante transporte para a Suma Perfeição, povoa os nossos seminários, absorta nas meditações místicas e, como o Anjo Custódio, “ajoelhada no Cruzeiro, banhando de lágrimas benfazejas as vestes luminosas”.

A sua lira, mais celígena que terrena, ressumando pureza, serenidade e vigor, deve amiúde soar entre essas almas consagradas a elevados misteres, à cuja cabeceira nunca será demais que habitualmente pousem, ao lado do “Breviário” anoso, Terra Natal e o duplo volume de Odes.

Cérebro privilegiado, espírito fadado às alturas, Dom Francisco de Aquino Correia – vimos anunciar à Academia, como grande e agradabilíssima surpresa, – foi no momento o Bispo mais moço, já não diremos do Brasil, ou de toda a América, mas do mundo inteiro, porquanto, fato raro nos anais da Igreja Católica, aos 29 anos de idade o nosso preclaro confrade cingia a mitra.

Não admira, pois, que reverenciando uma juventude coroada de tão alta dignidade, os partidos políticos da sua terra, então em franco dissídio, apelassem, certa vez, por efeito de nobilitante e salvador convênio, para a sua sabedoria e para o seu patriotismo, cônscios do prestígio do seu ramo de oliveira, elegendo-o presidente do seu estado natal. Hóspede da Política, a ela serviu apenas numa transitória conjuntura, ainda assim tão só para harmonizar interesses, restabelecer a concórdia, promover, enfim, a felicidade do povo, fazendo do seu governo um ministério de ordem e de paz; e, ao deixá-lo, sob bênçãos e aplausos, Monsenhor assumia a Arquidiocese da sua terra, que, por promoção a mais justa e merecida, um ano antes lhe tocara.

Modelo bem acabado de devoção e inteligente prática dos sentimentos religiosos e cívicos é o que ora se oferece à mocidade dos seminários, à qual, como a ninguém, não deve ter passado despercebido que, no rodar de quase um século, coube ao novo acadêmico quebrar o pesado silêncio em que, no cultivo da arte poética, mergulharam celas e adormeceram presbitérios.

Por isso, Monsenhor, – e porque a expressão espiritual da vida se resume na Poesia, – qualquer que seja a propensão da vossa mente inspirada, sinta ela o sacro fogo arder, ou se incline para as suaves e ternas baladas do amor da Natureza, – cantai, cantai muito, cantai sempre; cantai, sobretudo, a alegria e a ventura cristã de viver, pois só assim pode realmente o ente humano envelhecer sorrindo, como queria Bilac.

À escassez de elementos nacionais é talvez devido o fato de se ver, de quando em quando, recrutado para o número dos nossos trovadores o extraordinário vulto de José de Anchieta, o memorável espanhol que viu a luz em Tenerife, o poeta excelso da Virgem, que a adorou e serviu no seio das nossas florestas bravias e a cantou ao longo das nossas praias, inspirando, quase três séculos depois, ao quérulo Fagundes Varela, o imperecível Evangelho nas Selvas.

Não temos até aqui tratado, e intento nosso não é falar, de autores profanos que hajam escrito poesias religiosas, mas tão-somente ocupar-nos dos sacerdotes e monges que, tendo nascido sob o céu do Cruzeiro do Sul, se tornam alunos das Musas.

Quais os que compõem o quadro deficiente? Gregório de Matos Guerra? O afamado “Boca do Inferno”, como ficou conhecido, satirizador infrene, – por irrisão dos Fados – magistrado e, posteriormente, vigário geral e procurador da Mitra, escreveu, na verdade, belas e inspiradas poesias líricas e religiosas, conforme acabam de averiguar pacientemente esses três penetrantes cultores da Arte, admiráveis beneditinos das letras brasileiras, – Srs. Afrânio Peixoto, Constâncio Alves e Ronald de Carvalho. Mas o Sr. Araripe Junior, crítico entusiasta do grande ingrato, é o próprio a confessar que a “sua literatura era a da chalaça” e o qualifica mesmo de “alma maligna, caráter rancoroso, relaxado por temperamento e por costume”. Ademais, o boêmio incorrigível apenas por acaso foi padre, em conseqüência  de um ato do 1.° Arcebispo da Bahia, visto não ter mais que ordens menores; e, antes que um lustro volvesse, exonerou-se dos encargos, não sem crivar das mais torpes sátiras o próprio Prelado, seu benfeitor.
Luís José Junqueira Freire, o glorioso patrono da Cadeira que tenho a honra de ocupar, foi um frade “sem fé, sem piedade e sem unção”, e não era sequer “religioso, no grande e elevado sentido da palavra”. Envergando durante apenas uns quatro anos o hábito de Frei Luís de Santa Escolástica, por efeito, sobretudo, de infeliz paixão amorosa; despediu-se da vida terrena, sem que no claustro outra coisa o inspirasse que não fosse “o horror e o desespero da vida monástica”.

Júlio César de Morais Carneiro, o grande Júlio Maria, foi padre efetivamente, no espaço de cinco lustros. Que padre! que pregador! e que filósofo! Os versos, porém, que produziu foram, no dizer do Sr. Jônatas Serrano, seu erudito e fiel biógrafo, “poucos e incolores, de rimas paupérrimas e inspiração anêmica; à trivialidade dos conceitos, à pobreza das imagens, à impropriedade da adjetivação, se juntam freqüentemente deslizes e até erros de métrica, sendo o poetar, para ele, simples passa-tempo sem pretensões maiores” e constituindo o seu versificar mal, “senão pecado grave do literato, pelo menos fraqueza e imperfeição”.

Decididamente, cumpre confessar, – não importe a mágoa! – exceção feita dos nomes de alguns mais, bem raros, tonsurados menestréis, cujas composições, – como as desse harmonioso Antônio Bastos, que ora tange, entre as luzes do Norte, a sua harpa religiosa, – havendo transposto as lindes paroquiais, não lograram ainda criar aos seus autores a celebridade que cerca os três já citados, – só retumbam gloriosamente na mansão das letras pátrias os de três outros, grandes professos-poetas, astros de primeira grandeza, a deslumbrar perenemente os evos.

Frei José de Santa Rita Durão, o vate agostiniano, erigindo no Caramuru o seu imperecedouro título de glória, legou-nos um poema nacional por excelência, em que defeitos e falhas cedem o passo às rútilas belezas das cenas que representa, no que foi alguma vez o Autor peado pelo recato da sua alma virtuosa, como ao tratar o drama amoroso que serve de núcleo ao poema, onde “o seu estado de frade, e frade de bons costumes, o privou de dar-lhe a emoção que nos poderia ainda comover”.
Frei Francisco de São Carlos, franciscano, tomou da lira por devoção e amor ao culto de Maria, compondo o poema da Assunção da Virgem, que, na opinião de Pereira da Silva, “é um troféu de glória, levantado à literatura e à pátria”.

O Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, – o maior de todos, aquele a quem a Academia conferiu o patronado de uma das suas cadeiras, hoje em festa para receber o novo ocupante, – deixamos, de indústria, para o fim. Àquele a quem coube ser o melhor poeta da sua época, o mais vigoroso lírico dos predecessores imediatos do Romantismo, qual o considera o próprio Veríssimo em momento de ação da veia iconoclasta, homenagem excepcional é devida nos solenes instantes que atravessamos. Como seu Anjo da Guarda, veio a Poesia ampará-lo na soledade do seu coração, tocando-o uma inspiração celeste; e, ao termo da peregrinação que o encaminhava para o centro da unidade católica, entregou-se ao altar, desde então dirigindo o seu estro para a religião e o seu amor para Deus. Bastam para imortalizá-lo as Poesias Sacras e Profanas, as quais, com a tradução dos Salmos de David, formam verdadeiros monumentos de glória para o seu Autor.

O vate imortal não carece de ditirambos para que a sempiterna beleza do seu engenho pompeie, maravilhosa, em toda a plenitude. Mas, pela mesma estrada que o Padre Sousa Caldas trilhou e soube juncar de virentes flores da sua alma piedosa, vem, mansamente, a colher triunfos, dirigindo seguros passos, o novo servidor da Igreja e da Academia, seu sucessor em vários títulos.
É que entre ele e o digníssimo recipiendário há pontos de admirável afinidade, tanto na pessoa como nos atos e na obra. Irmãos no estudo das ciências e das letras, na predestinação eclesiástica, no exercício da caridade, no império do púlpito e na inspiração poética, eles dão-se as mãos sobre o espaço de um século, e desse modo celebram, no seu inefável concerto, o mirífico e inextinguível poder da centelha divina.

Monsenhor! Como toca ao coração de um crente essa doce e meiga palavra pela qual se diz a um grande, a um Príncipe, a um excelente Pastor da Igreja a jucunda expressão – “Meu Senhor”, – que outra não é a do suave vocábulo – Monsenhor!

A ninguém importe a presunção, algo generalizada, de que só a camareiros seus, expressamente agraciados, a Autoridade Romana outorga essa bela denominação honorífica, de hierarquia eclesiástica, sem dúvida, mas, em realidade, também de particular, de nobre, de excepcional tratamento social, dos lados em que demora o espírito de nobreza, de graça e de galanteria aprimorada.
Nisto, como em tudo o que respeita aos termos, não há como respigar nas fontes preciosas da lexicologia clássica, para o que, além dos mestres que ensinam na língua camoneana, se inscreve um certo Emile Littré, que, narram as boas crônicas, levou vinte e cinco compridos anos a compor um dicionário, trabalhando dez a doze horas a fio; e todos eles, num coro harmônico, explicam o vocábulo e firmam a aplicação preconizada.

E a Academia Francesa, nossa Mestra, que nos orgulhamos de ter por molde, como esclarecia Nabuco, aí está nos ensinando que assim deve entender-se, que, por serem sempre os grandes da Igreja justamente ciosos dessa honra singular, ela confere a linda mercê aos chefes de diocese e aos cardeais que transpõem os seus dourados pórticos, da mesma maneira que a sociedade culta da França antiga a outorgava aos príncipes de sangue real, aos marechais e, em rigor, a pessoas de dignidade eminente.
Honremos, pois, desde que pisa pela vez primeira a nossa passagem vestibular, desde o tratamento a dispensar-lhe, o egrégio e novo acadêmico.

Monsenhor!
Antes de dar por findas, em nome da Academia, estas desgraciosas mas sinceras expressões de regozijo, diremos que, apartados do campo da Poesia, se contemplarmos a tribuna sagrada, melhor do que nunca, a grandeza e exuberância deste maravilhoso país se manifestam sem restrição, ao distinguirmos as vozes de sacerdotes afamados que, dominando turbas de fiéis e acendendo o espírito católico, reboam, cheias de ardor e zelo, nas naves dos templos, e cujos ecos repercutem até aos nossos dias. Não mais é caso de se incluir no número dos triunfadores do púlpito nome algum de estrangeiro, mesmo que houvesse aqui professado e vivido por longos anos, conquistando justas glórias; já se pode – não é ousadia dizê-lo, – não só dispensar, mas deixar mesmo de invejar o nome do grande Antônio Vieira, príncipe dos oradores sacros da sua terra gloriosa e – na expressão de Castilho – mestre guapíssimo da nossa língua.

Temos os nossos e de boa casta: um Padre Antônio de Sá, por exemplo, jesuíta, êmulo de Vieira, – diante do qual chegou a brilhar com toda a intenção, – e chamado O Príncipe da Oratória Eclesiástica; o beneditino Frei José da Natividade, cognominado O Sutil; o franciscano Frei Francisco Xavier de Santa Teresa; o bispo Dom José Joaquim Justiniano Mascarenhas de Castelo Branco; o Padre Antônio Pereira de Sousa Caldas, – ainda nesta seara, e com descomunal fulgor, – o sacerdote extraordinário cuja palavra mágica soube atrair verdadeiras moles humanas, que se premiam, extáticas, até nos templos de além-mar; Frei Francisco de São Carlos, O Sereia do Púlpito; Frei Francisco de Santa Teresa de Jesus Sampaio, filho de Assis, como o anterior, e considerado o Bossuet brasileiro pelo sábio Sr. Ramiz Galvão, o grande panegirista nacional; Cônego Januário da Cunha Barbosa, o lidador da imprensa, ao lado de Ledo, na pugna da Independência, e apontado pelo seu coetâneo Mont’Alverne como um gigante da oratória; Frei Francisco de Mont’Alverne, cujo nome sozinho enche uma época, coberto de “aplausos, coroas e ovações de que nenhum orador, nenhum filósofo ousara ainda gloriar-se”; e já nos nossos dias, entre outros, os falecidos, – tão-somente – Dom Antônio de Macedo Costa, o Padre João Manuel, Monsenhor Luís Raimundo da Silva Brito, Padre Francisco de Paula Rodrigues, e o grande – repetimos com ênfase e sincera convicção – o grande Júlio Maria.

E atualmente, nesta Cidade, – para que nada falte, – um pugilo de sacerdotes iluminados, soldados da Fé, sob a égide do eminente Cardeal Arcoverde e a sábia direção do ínclito Arcebispo da Eucaristia Dom Sebastião Leme, atrai aos templos e deslumbra, com a luz dos seus peregrinos talentos e o arrebatamento de espíritos abrasados no Evangelho, massas compactas de crentes e de meros intelectuais, assim cooperando, no mais alto grau, para que o púlpito brasileiro continue a realizar, com brilho sempre maior e máxima eficiência, a sua santa e civilizadora missão.

O professo-poeta, em Dom Aquino Correia, jamais obumbrou o imponente clérigo-orador, dominador da tribuna, arrebatador das multidões de crentes. Sempre empolgado pelo ideal do Belo, a que incessantemente animam a devoção do religioso e o ardor do patriota, ei-lo aqui e ali, em assembléias profanas, da mesma maneira que no púlpito, doutrinando, exortando, proclamando um bem, comemorando um evento magno.

O seu famoso discurso inauguratório do Centro Literário da sua terra natal; a sua luminosa conferência no centenário do Dante; o elogio fúnebre em que destilou, pela voz do Arcebispo, toda a ternura de um filho amantíssimo; a sua oração gratulatória no jubileu sacerdotal de D. Helvécio, Arcebispo de Mariana; a vibrante saudação que proferiu na festa em homenagem à histórica Bandeira do 17.o Batalhão dos Voluntários Mineiros, a sua recentíssima e eloqüente oração pelo centenário do Jornal do Commercio, são tesouros da oratória, que, sobre serem verdadeiros modelos, adornam e enriquecem, para edificação das sucessivas gerações, os anais imorredouros da Eloqüência.

O seu púlpito não se circunscreve ao âmbito do templo; dilata-se até aonde o entusiasmo, servido por um senso lúcido, o possa conduzir. Vemo-lo na imprensa católica e alhures. De uma feita, deixa o extremoso prelado, serenamente, quase despercebido, a querida Arquidiocese, para vir, à distância, no foco máximo da atividade pátria, dizer dela todo o bem merecido, pintá-la com cores escolhidas no imo peito, festejando aí, se tanto for preciso, o centenário da sua fundação. Muito pode o amor! Já sentenciou Camilo: “Depois do Céu, quem mais pasmosos milagres faz é o Amor.”

Mais uma vez aí se patenteia que pertence ao centro da vida nacional o condão de celebrar os extraordinários triunfos e de ser o mais côngruo cenário para a realização de excepcionais cometimentos.
À tarde, junto à suspirosa praia de Copacabana, em salutar colóquio com esse outro insigne e sempre festejado dignitário da Igreja, Dom Sebastião Leme, – “a grande alma que de longe se admira e de perto se ama”, como à justa o aprecia, – hauriu Monsenhor o incitamento prestigioso que o decidiu a pôr ombros e alfim executar com êxito magnífico o pastoral empreendimento.

Enlevado pelas idéias que assentara sobre o seu plano, tinha-se o bom prelado recolhido à residência hospitaleira de Botafogo, a tranqüila e acolhedora “Casa dos Lazaristas”, – quando o despertou gentil convite para lançar a bênção divinal – a quê? – a um prado de corridas, bem que fosse o novo e deslumbrante hipódromo de antiga e conceituada sociedade prazenteira e aristocrática – o Jóquei Clube. Não vacilou. À hora aprazada, em pleno campo, no meio de todo o imponente esplendor da Natureza, túmida de galas, num quadro emoldurado pelo intérmino lençol esmeraldino, à cuja beira dorme a laguna secular da Gávea, e pelas montanhas vestidas de vegetação pujante, ali, ante o imponente painel, surde o requestado Arcebispo e solta, no espaço, em meio de uma multidão em festa, o verbo seu fluente, castiço, inflamado de religião e de patriotismo.

A sua oração em planície rasa, ecoando pela cidade inteira, foi então o acontecimento literário de mais agradável comento e singular relevo. Tarefa difícil, venceu-a – sob a égide da Fé, que naquele momento se erguia soberana num hissope argênteo, – a Eloqüência, eterna sedutora, ao serviço de um talento de escol e de um coração boníssimo.

Três lunações não eram transcorridas após acontecimento tal, abre o Instituto Histórico Brasileiro as suas portas para receber Dom Aquino Correia, seu novo consócio. Há uma multidão que se apinha, ávida de ouvir e ver o prelado cuja fama correra célere, com os ecos da oração da vasta campina verde. A sessão ordinária torna-se solene. Assoma Monsenhor à tribuna, e dos seus lábios dulcíloquos brota a conferência do Centenário do Bispado de Cuiabá, que remata sob as mais ruidosas aclamações. Fora uma obra-prima que acabara de encantar a seleta assistência.

Calou forte no espírito do auditório a conferência do Instituto. Que força, porém, a do Destino! Ainda ressoantes os ecos da memorável sessão, – eis que a Morte, fria e inexorável, num golpe cruel e traiçoeiro, uma vida mais ceifava neste grêmio, arrancando da Cadeira que tem por patrono Sousa Caldas e na qual durante nove anos se conservou, cercado de gerais carinhos, o saudoso Lauro Müller, seu terceiro ocupante.

Ocorrido o traspasse, e declarada a vaga, um nome logo se impunha ao exame dos leitores: – o de Dom Francisco de Aquino Correia, perfeito embaixador da república das letras. A sua eleição foi uma das mais correntes, lógicas e mansas que jamais efetuou a Academia: – um e único escrutínio proclamou a sua vitória. O cenáculo requeria mais uma voz harmoniosa e meiga que do pranteado morto e dileto confrade dissesse todo o bem de que merecedor se tornara, quer pela sua grande cultura, quer pelos seus apreciados feitos. E amplamente corroborado está o acerto da sua escolha pelo esplendoroso discurso que a assembléia acaba de ouvir e cujo encanto nem com o  tempo se lhe esvaecerá.
Ao acurado estudo, ao atencioso carinho com que tratou da individualidade de Lauro Müller nada podemos aditar sem que isso implique uma eiva, a que, sem fazer, se forra a aplaudida oração.
Sentimo-nos comovidos. É intenso o nosso abalo ante a imarcessível caroa de saudades ali enastrada à memória daquele que trouxe por credenciais à Academia, com as láureas de engenheiro, professor, doutor por universidades estrangeiras, além de uma brilhante folha de serviço; de ordem cívica e política, o trabalho de alto descortino e meditação em que enfeixou os Ideais Republicanos, e no qual vemos o pronunciado gosto literário do seu pranteado autor.

Monsenhor!
Novo e sensacional triunfo acabais de conquistar. A fascinante oração com que deslumbrastes este cenáculo concretiza na forma, resume na essência e exprime no idealismo o legítimo padrão de glória de quem, como vós e qual o dissestes, crê na literatura da razão e da fé, da esperança e do amor, da religião e do patriotismo.

Glória assim excelsa não a possuís, porém, só: comparte-a a estremecida terra natal, onde se dilui em ternos e castos beijos a visão dos entes amados; comparte-a a Igreja Católica Apostólica Romana e, nela, a Ordem de São Francisco de Sales, em cujo regaço haurido haveis as doçuras requintadas da sublime religião do Calvário e se vos apuraram a alma e o espírito até vos alcandorardes no governo e hierarquia eclesiásticos; comparte-a ainda esta Academia, onde se cristalizam as inspirações da Arte em ascensão para o eterno Ideal, e perenemente retumba o verbo mavioso, inda que incendido, dos leais servidores das belas-letras; comparte-a, enfim, a Pátria idolatrada, que mais se revê em cada filho seu preclaro e a quem devemos, em sinal de ilimitado amor, todo o bem, toda a flor da inteligência, até a vida.

Bendita seja, pois, esta hora de mágicos encantos, em que a Academia, rejubilante e segura dos seus destinos, sonhando dias sempre mais gloriosos para a lida que incessantemente fomenta, recolhe no seu amorável regaço um excelso dignitário da Igreja, a desferir, em pleno verdor da vida, cantos maviosos e potentes, da sua lira afinada e cândida.