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Amadeu Amaral

VERSOS NEVOENTOS

 

Luta penosa e vã, esta em que vivo, imerso

Na ambição de alcançar a frase que me exprima,

onde o meu pensamento esplenda claro e terso,

como o bago reluz pronto para a vindima.

 

Como cristalizar tanta emoção no verso?

Como o sonho encerrar nos limites da rima?

Bruma ondulante e azul, fumo que erra disperso,

não se pode plasmar, não há mão que o comprima.

 

Não, eu não te darei a Expressão que rebrilha

na rija nitidez de áurea moeda sem uso,

acabado lavor de cunho e de serrilha:

 

só te posso ofertar estes versos nevoentos,

conchas em que ouvirás, indistinto e confuso,

um remoto fragor de vagas e de ventos.

                                                                 (Espumas, 1917)

 

 

                             VENCEDOR

 

Um dia, enfim, na senda em que vais, dura e flórea,

ao termo chegarás da exaustiva escalada,

e, depondo o bastão, a lira, a cruz, ou a espada,

cingirás o laurel da mais alta vitória.

 

Um bardo, uma ovação, tropéis... Depois, mais nada.

Inda todo a fremir da áspera trajetória,

entrarás bocejando a áurea porta da Glória,

e olharás com surpresa a multidão calada.

 

Olhá-la-ás com rancor, vendo-a seguir a esmo,

vaga a eternos vaivéns e remoinhos sujeita.

E não terás razão, porque a glória é assim mesmo...

 

A onda humana avançou, cresceu, ergueu-te, numa

investida triunfal; depois, recuou desfeita...

Como há de a onda parar, para que brilhe a espuma?

 

                                                       (Poesias, 1931)

 

                                          A VIDA

           (Impressão do Moisés, de Menotti del Picchia)

 

Eis a Vida: seguir umas quimeras vagas,

lançando a mão em sangue aos cardos e aos espinhos

rolar no pó; gemer; deixar pelos caminhos

mil farrapos de carne e o sangue de mil chagas;

 

sorver o horrendo fel que anda em todos os vinhos,

o veneno que jaz em todas as teriagas;

persistir, todavia, entre as chufas e as pragas

dos que vão, a ulular, por trilhos convizinhos;

 

chegar, enfim, exausto, ao fastígio da idade,

ver desfeito o jardim de encanto que sonhamos,

cair desfalecido e - supremo revés –

 

olhando para trás, ver que a felicidade

ficou além, no vale, onde, espectros, passamos,

ficou além, na flor que calcamos aos pés...

 

                                          (Poesias, 1931)

 

 

                                SONETO

 

A terra é dura, o sol é bravo; a geada

destruidora; aves más e más formigas

assolam tudo, e a planta acarinhada

mal resiste a essas forças inimigas.

 

Que importa! Lavra sempre. Não maldigas

a terra ingrata. Não maldigas nada.

Talvez um dia o preço das fadigas

brote do sulco da robusta enxada.

 

Mas, quanto mais a terra é ingrata, e bravo

o sol e as aves são cruéis, e o resto,

mais valor mostrarás em continuar.

 

Que é gentileza não viver escravo

da ganância, e plantar só pelo gesto

religioso e sereno de plantar!

                                      (Poesias, 1931)

 

                                        A LIÇÃO DE DANTE

Quem quiser fazer grandes coisas na vida, ou apenas alguma coisa digna e respeitável, embora modesta, precisa, antes de tudo, ser um severo, pacientíssimo trabalhador. Mas o trabalho não basta. O trabalho pode ser aplicado, com todo o seu esforço contínuo, enérgico, reconcentrado, tenaz, numa obra inútil - uma complicada bagatela, ou numa obra nociva - um engenho de dor ou de destruição. Há indivíduos, e tantos, ai de nós! que trabalham como uns mouros a fazer máquinas de guerra, a escrever livros degradantes, a compor artigos de difamação pessoal, de uma brutalidade sorna e rasteira, ou a falsificar moedas e documentos. É necessário que o trabalho seja empregado em objetos dignos dele. O trabalho, segundo o Gênesis, foi imposto por Deus aos homens, para que estes o empregassem na conquista do pão. “Comerás o teu pão com o suor do teu rosto.” Maldito, pois, todo o trabalho que não é empregado para obter pão - pão para a boca e pão para o espírito, alimento e hóstia, sustento da carne e substância da alma! E maldito, igualmente, todo pão que não seja obtido à custa do próprio trabalho, com o suor do próprio rosto, que não seja o pão santificado pelo sofrimento e pelo ideal!

O trabalho de Dante foi assim. Eu disse-lhes há pouco que ele aprendeu todo o saber do seu tempo, ciência e filosofia, arte e teologia. Mas ele ainda fez mais. Ainda fez, espantosamente, mais. Ele aprendeu também toda a virtude do seu tempo: valor militar, energia cívica, retidão, alto idealismo patriótico, religioso e moral, tudo ele teve em alto grau.

Há outros poetas mais ou menos da sua estatura: Homero, Virgílio, Mílton, Shakespeare, Goethe. Nenhum, porém, de mais larga e mais alta universalidade. Homero é sobretudo a Grécia heroica. Virgílio é, mais que tudo, a latinidade culta e elegante. Shakespeare é o maravilhoso psicólogo. Dante jogou com as ideias, com as ideias mais largas e mais altas - as que abrangem maiores extensões dos domínios do pensamento humano e as que pairam mais acima das diversidades e contingências da vida. Cultuou a Sabedoria, o Amor e a Virtude. Melhor dito, a Sabedoria, sem mais.

A Sabedoria, na sua concepção, ligava-se à boa e generosa tradição antiga: incluía saber, amor e virtude. Conhecer, para ele, não era uma aplicação mecânica e fria das faculdades apreensoras do espírito; era exercício de amor e zelo de virtude. “Intelletto d’amore” é expressão sua, e é expressão que diz tanto!

 

(Fragmento, conferência por ocasião do VI Centenário da morte de Dante, no Teatro Municipal de São Paulo, 1921)

 

                            O ELOGIO DA MEDIOCRIDADE

                                   CARTA A UM CRÍTICO

 

Meu amigo:

Está V. a ensaiar os seus pendores para a crítica, no que faz muito bem, porque é tempo de se ir criando por aqui essa coisa proveitosa; mas a ensaiá-los a custa de pobres poetas enfermiços e de prosadores claudicantes, no que faz muito mal. Permita que lhe represente, em breves linhas, os equívocos fundamentais e as incongruências desta sua atitude heroica.

O crítico, meu caro, que ferozmente agride as obras medíocres, procede como o sujeito que pretendesse deitar abaixo o pavimento inferior de uma casa de vários andares, para só conservar o resto. A mediocridade é necessária, absolutamente necessária, quer no sentido de coisa inevitável, quer no sentido de coisa útil. É, porque tem de ser; além disso, é benéfica.

A turba imensa dos medíocres constitui uma como nebulosa informe, sementeira protoplasmática de estrelas. A maioria dos grandes de lá saiu, e felizes daqueles que saíram de vez, para não mais tornar ao rebanho depois de um esforço máximo e prodigioso. Em regra, a obra total de um escritor de fama é uma série de livros que vai da mediocridade ao esplendor de um pináculo de ouro, e esse pináculo, como o de uma pirâmide, é justamente a porção que ocupa o menor lugar no espaço. A glória de Cervantes está inteira na cúpula de um enorme edifício literário, o Dom Quixote; o resto ficou para sempre mergulhado na sombra, como o corpo colossal de um casarão que só conserva iluminado, no seio da noite, a torre mais alta e mais esguia.

Certo, escritores há que, em rigor, nunca foram medíocres, cujas primeiras tentativas podem comparar-se aos primeiros voos, mas aos primeiros voos das águias jovens. São poucos. Esses mesmos, porém, não existiriam se não houvesse a vasta mediocridade que os cerca, que lhes serve de ponto de apoio, que lhes alimenta o espírito nos primeiros tempos, e que os impele para cima com todos os estímulos contraditórios da rivalidade e do aplauso.

Toda literatura pressupõe uma multidão de medíocres, e não só de medíocres, senão também de inferiores, de rudimentares, de falhados e de decadentes. Tanto mais pujante e luminosa ela é, tanto mais grossa a multidão rasteira. Esse mato baixo sustenta a indispensável camada de húmus, resguarda e entretém a vida incipiente das árvores destinadas à máxima expansão. Foi esse mato que permitiu, na Inglaterra, o crescimento fabuloso de Shakespeare, a cuja volta trabalhava e produzia uma plêiade de dramaturgos fortes e uma turbamulta obscura de escribas irrequietos.

Por que, pois, essa fúria sinistra de demolição, de que o meu jovem amigo se mostra dominado, a exemplo de outros cavalheiros que conscienciosamente manejam o cacete correcional da crítica impiedosa?

                                                        [...]

 

No seu entender, quem publica um livro está por força na atitude de quem constrói um pagode monumental, e nele se remira, e lá dentro se instala, como um Buda, à espera da romaria dos pósteros. Ora, o livro, depois que se inventou a imprensa, deixou rapidamente de ser um luxo, uma alfaia, um segredo, um adorno, qualquer coisa que avaramente se guardava a um canto da casa, entre a arca pregueada e o oratório esculpido, como uma relíquia ou um manipanço, para ser algo que já não corresponde a qualquer imagem antiga, algo de imprevisto e de original, uma característica flagrante de tempos renovados: um instrumento de comércio transitório entre as almas, prolongamento da conversação adstrito à troca universal das ideias.

O livro tem de ser considerado, não mais como um repositório de coisas concebidas e filtradas “para a eternidade”, mas sim como uma rede de pesca a sair do seio imenso das águas, trazendo de envolta com o peixe a alga, o marisco e a salsugem. Instrumento, utensílio, aparelho, o livro tem a sua função naturalmente limitada: o seu fim primacial não é durar, é prestar serviço. Cumprida a sua missão, embotado, enferrujado, substituiu-se pelo mais novo e mais interessante e põe-se fora. Nem por isso deixou de haver um momento em que foi bem-vindo. Era um elo, passou; mas teve a virtude de arrastar um outro, que também passa, e a circulação continua...

Deixe em paz, meu bom amigo, os literatelhos em que V. gosta de saciar o seu rancor ao pedantismo e à pretensão. Ou bem que faz moral, ou bem que faz crítica.

Como crítico, o seu dever é respeitá-los: estão desempenhando a alta função de preparar o terreno para o surto das grandezas futuras.

Lembre-se de que o nosso amigo Shakespeare não fez, nas sua grandes peças, senão apoderar-se tranquilamente de produtos medíocres para os transformar a seu jeito, insuflando-lhes aquilo que os predecessores não haviam podido dar-lhes, apesar de toda a boa vontade: gênio. Lembre-se de que a lenda dos gigantes que fazem línguas e literaturas por si sós está definitivamente morta. Dante não teria feito a Divina Comédia, nem Camões os Os Lusíadas, nem você estaria aí escrevendo críticas, se não fosse a enorme legião dos pigmeus sem nome nem lustre, cujo esforço apagado e tenaz, inumerável e ininterrupto, lavrando subterraneamente, aumenta pouco a pouco o tesouro coletivo da língua, lhe dá variedade, elasticidade e energia, e a conduz ao ponto de poder ser manejada com fragor por um punho poderoso.

Não se impressione com as pretensões da mediocridade, com a troca de doçuras ditirâmbicas em que ela se compraz. O louvor excessivo só perverte e inutiliza, em regra, os que nasceram talhados para coisa nenhuma. Há, em compensação, muito cavalheiro de grande valor que a canalha deixa na sombra? A isso, meu amigo, nem V. nem ninguém dará remédio. Molière, numa época de florescência literária, que V. não quererá comparar com a nossa, passava por um hábil comediógrafo, em quem a crítica justiceira do tempo nem por isso lobrigava grandes méritos. Em compensação, Delille foi aclamado gênio pelos contemporâneos. E, sempre há de ser assim.

O caminho que V. deve tomar é outro. Deixe os medíocres em paz, e vá direito aos grandes. Com eles é que o meu amigo deve medir forças. Trate de ser alto e forte com eles, e renuncie a esse trabalho infrutífero e triste de remexer miçangas e alfinetes, acocorado numa esteira.

 

Lá é que eu desejo ver aplicadas as excelentes disposições que V. revela para a crítica, e que nos hão de dar daqui a pouco o nosso respeitável Brandes, ou o nosso compendioso Faguet.

Ex-corde...

                                                          (O elogio da mediocridade, 1924)