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Discurso de recepção

Discurso de recepção por Afrânio Peixoto

RESPOSTA DO SR. AFRÂNIO PEIXOTO

SENHOR: – Ao vosso orgulho, – que o deveis ter digno, como é da sorte de todo grande merecimento, mais que à vossa modéstia, – que é tamanha como se esperava da vossa primorosa criação, por certo que acudiram intimamente as razões de nossa preferência, escolhendo-vos em pleito singular, e sem dubiedade, para o lugar que aqui tinha Osvaldo Cruz e antes dele ocupara Raimundo Correia.

Buscais explicá-lo, entre recatado e saudoso, recordando as altas lembranças paternas e os encontros raros do nosso patrono comum, Machado de Assis, cuja agudeza previra sem dúvida o dia de hoje. Não desconvenho na explicação, mas somente para dizer-vos que aqui vos deveis sentir bem, que este é um dos vossos lugares.

VOCAÇÃO LITERÁRIA

Poeta non fit, sed nascitur. É de nascença, não se faz o poeta. Antes de serdes, vós mesmo, éreis acadêmico. Francisco de Castro, sábio e letrado, nos herdou o filho que o prolonga e acrescenta, na grandeza do engenho, na capacidade da ação, na formosura da glória, precoce mas definitiva.
Trazia força o que tinha de ser. Vosso primeiro guia, mestre constante, maior amigo vos fez deste logo aluno predileto, e confidente obrigado dos seus gostos excelentes, de sua cultura aprimorada.

Crescestes na morada das letras, na biblioteca, sobre os tapetes felpudos que abafam os passos, nos móveis fofos acolhedores que prolongam os ócios da leitura, entre as severas estantes negras e polidas, donde nos seus andares vos sorriam, meigos ou condescendentes, no oiro fosco das lombadas, os in-fólios magníficos dos sábios e dos pregadores e os mimosos in-dezoito dos críticos e dos poetas.
Aprendestes com cedo a atender e a decorar a graça fácil e a análise inquieta de uns, esperando se cumprisse a idade para sem-cerimônia com a serena compostura dos outros.
Daí vos veio esse amor que tendes aos livros, no qual pondes até um grão de sensualismo pagão.
Tratais aos vossos como os califas nos seus haréns não amimariam às suas diletas. Porque eles teriam lá as suas preferências, o que obriga a exclusões, como é próprio de paixões humanas. Tendes vós igual amor aos vossos queridos, temperado, porém, como deve ser, pelas distinções que cabem a cada qual, as vossas distinções que são sutis e refinadas. Dais aos sermonários, velho pergaminho na capa, gótico de inscrição no dorso, fecho de esparto nas margens, honrando à sua ancianidade magnífica e à divina ciência que contêm; venerável carneira, estampada a fogo, ferros antigos que abraçam as páginas barbudas de velino, amarelado de muito tempo, dignificam a rudez dos nobres e castiços mestres vernáculos; aos poetas graciosos e aos levianos escritores de agora dotais de mimos frívolos, como festas galantes, no marroquim novo, cuja grã range ao toque, como sensibilizada pelo contacto carinhoso, na incrustação a cores dos debuxos, alegóricos a cada um, no dourado das aparas ao alto das páginas das edições preciosas, impressas em Holanda, China ou Japão. Os vossos íntimos que alguma vez conduzistes a esse santuário dos vossos livros saem de lá namorados e invejosos, sem mais poder ler a Frei Pantaleão do Aveiro senão na edição de 1593, e Anatole France somente naquelas que iluminou Lebègue ou Rochegrosse e imprimiu Ferroud ou Pelletan.

Vós, que os lestes e relestes todos, fizestes-vos uma alma clássica, no sentido ancião e permanente, de humanista, tão macerado no nardo e na mirra dessa unção espiritual, que, para a vida ficastes impregnado de essência acadêmica. Filósofos gregos, poetas latinos, sábios do Renascimento, oradores sacros, novelistas profanos, todas as espécies literárias do entendimento foram-vos humanidades adquiridas, com que vos entregastes à vida exterior dos laboratórios, anfiteatros e clínicas, para a posse da ciência e da técnica profissional.

Fostes menino-prodígio em casa, na escola e na universidade. Não me arreceio de afrontar a Voltaire, que chama às nossas arengas acadêmicas apenas cumprimentos, nem a vós que o citais, como para me armar suspeição ao elogio. Não me deixarão mentir os vossos mestres, alguns dos quais aqui vejo, e que vos deram notas em lições, temas e exames, como mais tarde, agora, para confirmá-las, os votos com que fostes aprovado na Academia. Lembrais com saudade carinhosa e alegre reconhecimento a Mário de Alencar, Rodrigo Octavio, Silva Ramos, Luís Murat; não vos esqueçam Francisco de Castro, o primeiro, e Miguel Couto, o derradeiro dos vossos mestres todos acadêmicos.

“NEMO CONTENTE”...

Éreis, e devíeis ser de fato um dos nossos. Não vos importe, pois, que não há como fugir à contradição humana, que alguém, alguma discrepância no juízo finja olvidar as vossas letras e só recorde que sois um sábio. É antiga a restrição e será eterna. Ela é natural, senão justa. É a da privação do merecimento contra aqueles a quem ele sobeja.

Deixemos falar quem fala: havemos de perdoar a lástima, se não despeito dos tolhiços, contra os excessos da abundância. A quem não coube sequer uma vantagem na vida, como estranhar que aos outros não permita tenham tantas? Não sendo possível acusar de fraudulenta a partilha da natureza, será o recurso negar a realidade ou o quilate das prendas alheias. Não tenho por inveja, – tão feio sentimento! – mas com certeza é aquele outro e triste pesar cujo nome se colhe nas Tusculanas, onde vem conhecido por “invidência”, disposição para reparar demasiado na felicidade alheia, meio ciúme, meio despeito, sorte de agasto ou gastura, que rala e mói, sem violência, mas aturadamente, porque caiba a outrem o que desejávamos ou só queríamos fosse nosso.

Invidentes é que não faltam; não faltará também quem diga que são todos os humanos; há pelo menos quem pense que o são as mulheres e os poetas, gente tão parecida, seres sensíveis por excelência, para quem é curto qualquer encarecimento e a quem faz mal todo elogio tecido a outrem: incenso lhes seria privativo. Há também o oposto, e chega a ser tocante: Napoleão recebia como ofensa qualquer censura feita a Luís XIV... Haveria assim invidentes, tanto por privação, como por parceria, largo domínio entre a inveja, o ciúme e a ambição...

Terá a fama seus pecadores, injustos por egoísmo. A Lucano, por ter escrito um poema épico onde se encontravam dando as mãos as artes da Estratégia e da Retórica, considerava Petrônio apenas como historiador, enquanto por orador somente o havia Quintiliano, muito embora opinião diversa de leitores e até do livreiro que lhe vendia os versos, segundo o epigrama de Marcial. Também Robespierre dizia de Condorcet, cujo múltiplo talento seria por isso mesmo insolente, que os geômetras o tinham por grande letrado e os letrados como grande geômetra. Por força que há de dar a desconto a fortuna de ter escrito famosos livros, quem é capaz de outros feitos famosos.

Aliás, felizmente para nós as Letras foram sempre aqui menos que uma carreira, uma diversão ou adereço, o que lhes vai bem, pois só espontâneas lhes é possível a sinceridade, condição de excelência de toda arte. Se relanceardes os olhos em torno, não vereis convosco um só de nós outros que tenha a literatura por profissão: somos advogados, juízes, professores ou militares, políticos, diplomatas e funcionários. Também assim foi e ainda é nos outros países. Depois, as contradições não tiram vantagens à regra. Renan disse-o, com sisudez: do momento que a carreira literária possa ser abraçada como lucrativa, perde toda a sua nobreza. Toda a gente de qualquer ofício pode fazer belas-artes, se tem gosto e saber, tendência e incentivo. Aos três grandes dramaturgos que agora acolhe a Academia Francesa, a Maurice Donnay a Alfred Capus, a François de Curel, não o impediram os diplomas de engenheiros. Por que só aos médicos se hão de fazer maus modos e achar que não devem pretender o que é lícito a todo o mundo ainda menos culto e menos exercido?

A Schiller o ser médico não evitou ser grande poeta; agora mesmo o príncipe da literatura portuguesa é o vosso colega Júlio Dantas. Tampouco por isso se viram embaraçados William James, para exercer o pontificado do pragmatismo filosófico, ou Clemenceau, para conduzir a França à vitória, obras de pensamento ou obras de ação, que tudo permite a Medicina, nada ciumenta de outras inclinações. Não faz muito, ela consentiu a Charles Richet, talvez o maior gênio médico contemporâneo e vosso colega na Faculdade de Paris, que recebesse o prêmio solene de poesia, conferido pela Academia Francesa.

HUMANISTA, ORADOR E POETA

Do que não se deve prescindir para ser acadêmico é ser letrado, embora douto, ter esse nobre amor da idéia, esse alto conceito de forma e honrá-las, substância e gosto, com a constância no trato assíduo e diligente para a perfeição. Podeis com justo orgulho medir-vos pelos vossos confrades. Nenhum deles terá tão cuidadas as suas letras antigas e modernas; raros haverão sempre cultivado o espírito nos primores da boa convivência literária que foi o vosso hábito desde os alvores da meninice.

Por isso na vossa obra, logo que conseguistes afoiteza para começá-la, não se deparam ensaios ou tentativas, próprios de quantos madrugam cedo. No livro em que reunistes as vossas primeiras orações, a frase já tem medida e compasso, o pensamento compostura e alcance, tudo o que denuncia gravidade precoce, nada que lembre aquela redundantia juvenilis, marca infalível da idade. Inflorescência perfeita e pomos sazonados, antes das flores contadas e dos frutos temporões.

Entretanto, a graça e a candura desses discursos marcam bem a ocasião que os produziu; neles o lirismo transborda suave e terno e cerca de afagos e damices a figura que atravessa todas aquelas páginas, sempre presente na letra ou no sentido, evocada ou requerida com tão quente carinho efusivo, que raia pelas declarações de amor. O que dizeis dele, desse querido Ausente a quem tanto amais, se dirá de vós, lendo as vossas Alocuções Acadêmicas: “Coração piedoso e benigno, tão cheio de mimo e tão sensível que se diria o de uma mulher.” E muitas, muitas vezes falais, sempre comovido e grato, no amigo, no mestre, no conselho, no Pai que perdestes e vos recordam com saudade inconsolável os passos de vossa vida. Quanto mais vos encarecem e vos festejam, é que mais estais com ele, na presença da memória, como se não pudéreis lograr o vosso quinhão de felicidade sem o repartir com quem teria na vida, por toda a perfeição, consegui-la e infinita para vós, desde que vos entendestes metade querida de sua alma! Estou que agora mesmo ele aí está juntinho, bem aconchegado ao vosso coração...

Nunca, porém, ainda nesses transes, se vos desmandou a inspiração em arroubo ilícito e desmedido, que não o comportasse o gosto e o momento. Foi para vós sem dúvida, para os raros de vossa igualha, que Cícero definiu o parentesco da poesia e da eloqüência. Poetis est proxima cognatio cum oratoribus.
O comum da expressão sem arte se explica em veemência de gestos e de atitudes, se resolve em excessos de idéias e de palavras. Tem a poesia, entretanto, o seu compasso e seu metro, e a própria comoção se conforma no molde dos estilos do verso. Vossos discursos são poemas, odes, elegias, tanto a imagem e a locução, o concerto e as proporções fazem modelos de bem dizer vernáculo e polido, as Alocuções, Novas Alocuções, Últimas Alocuções, que todos vos trouxeram aqui, como um cultor exímio da língua, diserto orador, das comoções e pensamentos mais nobres.

CONFRONTOS

Esta excelência do vosso mérito é tão evidente que, onde vos achais, reunião de confrades, congregação de doutos, congresso de sábios, sois a voz dos vossos pares para a tradução do sentimento ou das idéias comuns. Se as ocasiões são de responsabilidade, se falais a forasteiros ou a poderosos, colegas por convencer ou alunos a doutrinar, nunca vos esquecem entretanto as flores do espírito erudito e as graças da toada literária, citação própria e anedota adequada que esmaltam como gemas raras os vossos conceitos, no encanto de boa e bela concordância. Estou que se fora vivo Francisco de Castro lhe poderíeis dar troco na réplica oratória, como sombra ou eco que lhe sois, da figura e dos talentos.

Entretanto, permiti, se não vos molesto, que apenas quero ser franco e não lisonjeiro, nos dois Castros haveria antes sucessão que parelha. Eles se continuam. O primeiro é mais poderoso, mais tenso, talvez mais escorreito; o segundo mais fino, mais polido, certo mais gracioso. Austero, terso, incisivo aquele; este suave, maneiroso, persuasivo. Um segue o outro, como as artes severas do século XVII precedem as artes amenas do século XVIII. A um se admira, ama-se ao outro. Dir-se-ia, dos dois, como naquele cotejo célebre de Castilho, entre Vieira e Bernardes. Também eles se continuaram e não havia por que se arrecear da sorte do bom estilo na língua portuguesa, dizia ao morrer o mais forte e mais rico, se ficava a tratá-lo o mais delicado e mais generoso. Tenho para mim que os dois Castros, pai e filho, se completam e um aperfeiçoou o outro. Se fora para decidir-me por um deles, na preferência, não vos direi pelo qual me inclinaria. Creio que ficaria com o último, cujo estro é menos arrebatado e cujas letras são mais afáveis.

Outro paralelo que vem, e este de médicos; lembra-me até que vos podia ocorrer aquele caso a que aludis num dos vossos formosos elogios acadêmicos, e coube a colega vosso na Faculdade de Paris. Certo dia, no seu serviço do Hotel-Dieu, dava lição de clínica um dos mestres mais ouvidos da ciência contemporânea. Era o doente uma histérica e, portanto, duas vezes tendia a se mostrar naquele vício que não será delas somente, que vós os técnicos chamais exibicionismo. Quis acentuar Trousseau a malícia, lembrando a concordância das tendências da paciente com as disposições naturais de seu sexo, socorrendo-se daquela passagem da Arte de Amar em que, a respeito das mulheres que afluem ao teatro, o poeta insinua que vêem ao espetáculo tanto para ver, como, – se nada mais, – para serem vistas. Mas a memória recusou-se-lhe o serviço e depois de alguns segundos de pesquisa, perguntou aos discípulos se acaso algum não lhe daria a citação. Dentre a multidão de jovens uma voz recitou o verso de Ovídio:

“Spectatum veniunt, veniunt, spectentur ut ipsœ.”

Foi a credencial de bom gosto, a apresentação decisiva de sua vida, que Dieulafoy, desconhecido então, trazia ao soberano da clínica e da Faculdade, a quem, mais tarde, no mesmo sólio e na mesma benemerência havia de substituir. Também a vós, a acolhida que vos fariam em Atenas ou em Roma, na Sorbonne ou na Academia de Ciências, seria por todos os primores da vossa cultura, pois que sois da linhagem dos Trousseaus, Castros e Dieulafoys, que não somente sabem, como sabem dizê-lo, com a louçainhas da forma feiticeira que seduz e aconchega, antes de explicar e convencer.

Por isso, até os vossos sábios tratados científicos, escritos para doutos, são admirados, se não entendidos pelos apedeutas, porque ainda quando não penetrem na substância, forram-se na essência literária que lhes dais por companhia. Se não fosse do vosso natural o recato, poderíeis como aquele latino vos gabar, tínheis na aspereza dos assuntos técnicos, onde tudo são maranhas da dificuldade, posto aquele jeito de estilo que simplifica e esclarece, porque da clareza é ornato a brevidade, o “scribendi ordinem” que era tanto da ufania de Marco Túlio.

A VIDA, OBRA DE ARTE

Aliás, essa disposição de arte não podia ser senão o vestígio aparente e publicado do artista que sois, em todas as manifestações da vossa atividade. Convive a arte convosco. Desde a vossa porta que ela vos põe sentinela, naquele loureiro sempre vivo e bem tratado, que plantastes no átrio, melhor que a coroa de louros que D’Annunzio suspendeu à cabeceira, com a inscrição “non per dormire”... Nesse símbolo ele vos esperta também para que se cumpra tudo o que por vós deve ser cumprido. Telas e bronzes, saxes e sèvres, rendas, tapeçarias, móveis antigos, livros dos outros que vestis soberbamente, livros vossos que imprimis com magnificência fazendo deles escrínios preciosos das jóias raras que contêm, mudam vossa casa em museu de bom gosto. Num canto de salão, órgão e piano, que se não esquivam, depõem que os visitais a miúdo, e Bach e Chopin são vossos familiares. No vosso lar chovem bênçãos e nele mora a harmonia. Vossa vida é uma obra de arte.

Tivestes as graças de formação exemplar, do berço à maioridade; dos bancos da escola passastes sem delonga, depois das justas difíceis e necessárias da honra e do saber, que vos investiram na docência catedrática. Éreis o mais jovem dos vossos pares e o ciúme de mais velhos não obstou o dever de justos, com que vos escolheram, para a direção deles, que vos confiaram. Onde vos achais, sois sempre dos primeiros e como tal acatado e entendido. Os vossos discípulos vos ouvem e vos seguem.
Dissimulais tão bem vossa superioridade, colocando-vos ombro a ombro com toda a gente, exalçada até vós pela vossa exemplar polidez que fazeis afeiçoados dos desconhecidos e dos vindiços amigos. Aos do peito tocais no ponto sensível das suas predileções; na ocasião suscetível do seu sentimento achais persuasiva inteligência para se mover e comover, tanto que se diria tendes talento até no coração: cor ingeniosum é bem o vosso.

A Academia Brasileira, que vos trouxe agora a seu seio, não se demasiou, ainda que aqui chegais sem pressa, e entretanto tão cedo pois que tendes méritos primos e sobejos; a eles me havia eu de reportar por comprido, se não fora para cumprir com o meu ofício de vos receber, ao menos para vos confundir e a Voltaire.

OSVALDO CRUZ, O SANEADOR DO RIO DE JANEIRO

Demais, se alguma vez houve premeditação na escolha das sucessões em companhias como a nossa, foi bem nesse o vosso caso: acertamos com quem ficasse bem na cadeira do nosso inesquecível Raimundo Correia; não padecerá dúvida que ainda ireis melhor, embora poeta, na vaga deixada por um sábio.

Com aquela alta e cabal autoridade que vos dão a competência de douto e de mestre, além das insígnias do vosso reitorado, fizestes o elogio que vos cumpria do Dr. Osvaldo Cruz. O merecimento dele é tão avultado que aqui fostes sentido e compreendido como se vos ouvissem vossos confrades da Academia de Medicina. A salvação da vida é benefício que todos entendem: Osvaldo Cruz poupou a nossa, a de milhares de patrícios e de forasteiros que chegavam a colaborar no progresso nacional, com o extinguir um flagelo assassino no Rio de Janeiro e noutras cidades do Brasil. Só aqui, nos lembrastes, a mortandade foi, durante mais de meio século, de um milheiro de vidas anualmente, avaliemos quantos seriam os apestados que se salvaram, mal feridos pela morte, e quantos e infinitos teriam sido sofrimentos e lágrimas, desamparo e penúria, insegurança e pavor dos que viam tombar em torno, achegados, no próprio lar tocados pela inexorável fatalidade os arrimos mais indispensáveis, as mais preciosas afeições!

Serviços como estes valiam outrora a apoteose: por ter nas planícies vizinhas de Argos vencido a hidra de Lerna, personificação da malária, Hércules entrou na lenda e sobrevive na admiração humana. Os nossos tempos prosaicos pagam em espécie metálica, no bronze das estátuas, concedidas por igual a todas as equívocas benemerências.

Esse caso de Osvaldo Cruz tem, porém, para a nossa educação política, um ensinamento iniludível. Mais uma vez o merecimento foi chamado a seu posto na administração nacional, não se lhe indagando do parentesco influente nem da necessidade de proteção.

Médico de um poderoso, foi o vosso colega Dr. Sales Guerra convidado para a geral direção da Saúde Pública, aonde não levariam suas predileções especiais, mas, principalmente, a gratidão do cliente: teve a digna virtude de esquivar-se e mais nobre de indicar o competente, ainda não revelado. Pois que lhe devemos a vocação de Osvaldo Cruz a seu oficio de benemérito, não faltemos ao inventor dele com o devido galardão.

Graças a Deus que era um desconhecido: não havia a evidência do seu mérito suscitado a emulação daqueles infinitos que nas democracias têm por função cortar as asas alheias, para a mediania comum. Pôde o benemérito Governo de então, que não fazia boa boca só com promessas, mas trazia vontade determinada, – o saneamento da capital da República, – achar nele o mandatário idôneo para tamanha empresa. E decisão do Governo, e capacidade do seu agente – que coisas raras! – fizeram essa maravilha, a tranqüila confiança de hoje em dia, que não seremos mais vítimas da febre amarela!

Alguns governos destes, que saibam querer antes do poder, e, mais difícil, querer quando no poder, onde as distrações para ocorrer ao trivial esquecem quase sempre os propósitos mais tomados, alguns homens como este que à ciência juntem a ação, e dizei-me o que seria de nós que ora não temos toda a saúde, educação, defesa, justiça, prosperidade... que nos cabem, mas que não conseguimos, que não quisemos ainda e não sabemos deliberadamente e eficazmente procurar, que nos assombrará entretanto lograr, no dia em que simplesmente o quisermos, como foi neste caso singular que nos recordais.

MESTRE DE MEDICINA

O Dr. Osvaldo Cruz, esse tinha uma vontade e ela foi, de parceria com o seu saber, o segredo do triunfo na vida. Na memória dos homens, que amam o ruído e a evidência, ficará ele sendo o redentor da terra contra uma peste homicida, a seu modo um libertador do território, o Teseu que nos emancipou do Minotauro.

Estou, porém, que cometemos restrição injusta, e vos me perdoareis se me aventuro pela vossa disciplina e incorro naquele “ne sutor”... que cai sobre os incompetentes. Fez mais Osvaldo Cruz do que nos proteger contra um flagelo, fosse ele a febre amarela, – nos ensinou a combater os outros, ensinando-nos a conhecer todos os mais. Aí fizera o que vós doutos chamais medicina, e da melhor, a que ensina a conhecer as doenças, o que é meio caminho de as curar, quando não puderem com tempo ser prevenidas.

Mal descoberto descobre a saúde, diz o nosso vernáculo Jorge de Vasconcelos, trazendo à linguagem aquele “Cognito morbo, facilis curatio”, de um nosso clássico e que passou a axioma.
Foi de fato o Dr. Osvaldo Cruz grande mestre na Medicina. Antes dele, raros, sem caráter de firmeza ou extensão, alguns engenhos tentaram a ciência positiva, incertos e inconstantes. Foi ele o primeiro a criar aqui, na rotina da profissão, a necessidade da técnica experimental.

Era a clínica até aí exercida por altos vultos do patriciado médico, erguidos de entre a inumerável mediocridade dos anônimos. Todos, uns e outros, curavam males curáveis; raros dos que se curam com a ciência exata do mal e dos recursos idôneos logravam bom êxito, se por sorte a perícia dos grandes práticos ou acaso de noviços afoitos não atinavam com a causa. Através de uma vida contada pela benemerência dos serviços, os mestres exercidos e prestigiosos acabavam por desaparecer, sem entretanto poderem legar aos discípulos a arte divina que lhes dera a fama: não se transmite experiência, nem tino, assídua observação e dom de adivinhar, que não alcançam os sentidos e o juízo sem muito tempo. Haviam-se de fazer com vocação e constância, muita tentativa e bastante insistência, as novas capacidades médicas que, de geração em geração, se revezariam na confiança pública.

Ora, a ciência tem, mesmo por ofício, um endereço que nós poderíamos, usando de termo político, chamar democrático. Enganam-se os que a supõe, pela raridade dos engenhos que reclama, pela dificuldade daqueles que instrui, que seja instituição de uma aristocracia nova, entretanto delas a mais justa, a do conhecimento. Não: isto é apenas aparência; todo o esforço dos sábios consiste em conseguir meios tão simples de saber, que todos os possam lograr e os sábios já não sejam necessários, por que todos venham a saber como eles. É, pois, a ciência – a civilização ou o progresso, se o quiserdes: são outros nomes seus – essencialmente democrática, popular, acessível, niveladora das eminências, levantadora da mediocridade. Já se não constroem mais Partenons; não é necessário ter as riquezas de Ático para pagar escribas e copistas, ou adquirir manuscritos raros, e lograr assim a convivência de sortida biblioteca; cada um de nós ainda os mais humildes e desprovidos pode ter no seu lar alguma parcela de beleza divina, em objeto de arte, móvel, tela, vaso, figura, onde viverá sorrindo Palas Atena; com alguns vinténs há para a satisfação das turbas a quintessência do espírito ou do coração e todos os grandes santos, sábios e poetas, que a ciência vulgarizou nos livrinhos de nonada.

Falta-nos até um sociólogo que em lei formule esse trâmite fatal das aquisições da cultura humana: primeiro o homem de gênio raro e solitário, cujo conhecimento descobre e inventa; depois a divulgação desses achados preciosos, pela revelação; a indústria deles nas aplicações práticas em seguida; seu exercício e aproveitamento nos usos humanos mais modestos e indispensáveis daí por diante. Pão partido em pequeninos, como diria o nosso Padre Manuel Bernardes, que muitos ajudam a fazer, um fez, e, multiplicado como o do milagre, todos comem, já incapazes de se privarem desse sustento quotidiano. Custa muito chegar a ser Le Verrier ou Colombo para descobrir o novo mundo ou um outro mundo; com uma luneta ou uma bússola, qualquer curioso ou afoito, se não já oficiais do ofício, alcançam Netuno ou a América, sem dificuldade.

Para a arte infusa e transcendente do diagnóstico outrora, só muita perícia ou adivinhação do tino médico: conseguiu a ciência com algumas lâminas de vidro, microscópios, reagentes, simples aparelhos que dão ensaios prontos e às vezes decisivos, atenuar as diferenças entre doutos e aprendizes. O vosso Voltaire, que ria de tudo, riu-se também dos médicos, que pretendiam pelo exame de humilde líquido orgânico investigar tais e quais doenças ao organismo; hoje nos riremos de Voltaire e já serão os serviçais de laboratório que façam tais pesquisas, sem dificuldade, mas de tanto interesse.

As distâncias entre doutos e aprendizes, entre veteranos e noviços, se encurtam e se apagam: uns já não fundam os seus juízos senão na técnica que imediatamente lhes diz a verdade, os outros aprendem-na primeiro, para saberem depois, com esses elementos de juízo, só então de bom juízo. Com uma reação feliz, gota de ácido em tubo de ensaio, gota de corante sobre lâmina de preparado, supre-se experiência clínica de muitos anos. Armados desses meios de pronto e seguro conhecimento, o que não será a eficiência médica, dessa tão provada experiência clínica? É a medicina exata de hoje em dia. Sem laboratório de análises nenhum médico de agora se presume capaz do seu bendito sacerdócio.

Ora, essa novidade transcendente introduziu-a aqui o Dr. Osvaldo Cruz, que expôs e ofereceu primeiro a seus colegas as excepcionais capacidades de técnico de que se dotara: passou a ser o colaborador obrigado a todos os diagnósticos difíceis, fez proselitismo, teve imitadores, êmulos discípulos, competidores, com o que abriu à Medicina o caminho da exatidão, certeza, diligência, proficuidade, que hoje lhe dão por toda a parte os foros invejáveis que possui de ciência positiva.

Foi o Dr. Osvaldo Cruz o nosso primeiro e grande mestre de Medicina experimental. O seu exemplo valeu por um ensino, o ensino de uma Faculdade. Vale um sábio com efeito por uma consagração, porque é o preceptor de muitas gerações. A vossa admiração a ele, legítima porque autorizada, nos confirma no preito que lhe rendemos, não só de nosso benfeitor, mas de mestre que fez escola e nos ensinou como ciência dadivosa e benfazeja se propaga e dissemina em bênçãos sem conta. O Brasil inteiro, – no campo, das fazendas do Piauí às estâncias do Rio Grande; no mato, dos igapós do Madeira às ipueiras do São Francisco; nas cidades, de Belém do Pará ao Rio de Janeiro, – é tributário à sabedoria dele, na salvação pública da vida da gente, na poupança do cabedal das criações, na conquista para a Pátria e para a Civilização humana desses latifúndios nacionais que ele nos ensinou a sanear e a aproveitar, deixando-nos usufrutuários de sua benemerência.

A semente que plantou, do seu exemplo e do seu ensino, germinou e cresceu floração magnífica de sábios, os seus discípulos e colaboradores, que pelos Estados do país já se espalham, propagadores da boa nova e da boa ação, nesse viveiro que nos deixou e aqui temos ao lado, o seu Instituto, verdadeira escola de Patologia experimental, que investiga e ensaia, e com a vossa – a grande e gloriosa Faculdade de Medicina, que doutrina e prepara – faz parelha para a honra e a esperança da Ciência Médica Nacional.

A SUCESSÃO POR SÁBIO E MESTRE

Vós, docente insigne, primeiro dos vossos, bem mereceis que hoje prestemos homenagem à memória de Osvaldo Cruz, dando o lugar dele aqui ao outro representante da sua classe que simboliza todo o ensino médico brasileiro. Como o nosso extinto companheiro não só possuís o conhecimento perfeito que faz o grande sábio e o mestre, senão como ele também conseguistes a perfeição de grandes obras.
Não é de fato uma, a que acabais de realizar, levantando, com a ajuda de outro Governo benemérito, um imperecível monumento à dignidade médica do Brasil? Tinha mais de um século a gloriosa Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, fora sempre prestigiosa pelo saber de seus mestres, seguidos e aclamados, pela capacidade de seus discípulos que lhe conduziam a boa fama às extremas do nosso território; médicos estrangeiros, nossos vizinhos do Prata, vinham aqui aprender; a suprema realeza, Sua Majestade o Senhor D. Pedro II, era assíduo nos nossos bancos, assistindo a lições, exames e concursos... entretanto, por esse tempo todo, sem meios e recursos, residiu tristemente ali na Praia de Santa Luzia, num pardieiro de empréstimo e aluguel, sem decoro e com privações, à espera de um restaurador que lhe conferisse os foros de sua hierarquia.

Como Osvaldo Cruz resolvestes criar a vossa escola, e de novo, transportaste-la de onde os navegadores descobriram a baía, para onde os colonizadores primeiro fundaram a cidade, e levantastes à vossa ciência, ao vosso sacerdócio, à vossa investidura docente, ao Brasil civilizado, o monumento que falará de vós perenemente na grandeza do seu vulto, na excelência da sua construção arquitetônica, nos primores de suas instalações técnicas, na capacidade de sua eficiência científica, como um grande benfeitor, destes que conseguem a esperança de uma geração. Vós realizastes, senhor Aloysio de Castro, a aspiração de um século, de todos os médicos, de todos os sábios, de todos os governos deste país.

Honrando a alta memória de Osvaldo Gonçalves Cruz, houvemos por bem dar o lugar dele, aqui vago, e agora cabalmente preenchido, a quem o representa na semelhança do talento e na capacidade do bem-fazer. Sede, pois, muito bem-vindo!

P.S.*
(Post-scriptum ao discurso de recepção do Sr. Aloysio de Castro, na Academia Brasileira, em 1919)

Não sei se vos recorda, senhor Aloysio de Castro, ai de nós! há três lustros que fui eu quem vos recebeu no pórtico da Academia, por onde passáveis, e onde vos fizemos entrar... Hoje envelhecem estas festas... um quartel de século!... – bem é que daqui vos envie o post-scriptum àquele discurso, que o prolonga, sem mudar de tom. Assim teremos a ilusão, num instante, de volver ao passado, de reviver aquelas emoções que se foram...

Não se foram completamente, pois que sois o mesmo, continuais fiel a vós mesmo... Não é que para a data da celebração que vos fazem, escolhestes o dia consagrado àquele que vos não esquece, esse “querido Ausente a quem tanto amais”? “Coração piedoso e benigno, eu vos citava, tão cheio de mimo e tão sensível, que se diria o de uma mulher.” “E muitas vezes (sempre, insisto) falais sempre comovido e grato, no amigo, no mestre, no conselho, no Pai que perdestes, e vos recordam com saudade inconsolável os passos de vossa vida. Quanto mais vos encarecem e vos festejam, é que mais estais com ele, na presença da memória, como se não pudéreis lograr o vosso quinhão de felicidade sem o repartir com quem teria na vida, por toda a perfeição, consegui-la e infinita para vós, desde que vos entendestes metade querida de sua alma! Estou que agora mesmo ele aí está juntinho, bem aconchegado ao vosso coração”...

Não mudastes, pois, hoje vosso dia é também o dia de Francisco de Castro. Celebra-se o jubileu do filho: é no dia do Pai que se celebra. É ao mestre, que cumpre vinte e cinco anos de ensino; é ao Pai, mestre também, que vão todas as flores e louros colhidos por vós. É ao poeta, ao orador, que a Academia vai acolher, não indiferente à sua glória aplaudida por outras Musas... é a Francisco de Castro, o poeta das Harmonias Errantes, é ao orador de tantos discursos em que, se dissera, falava Vieira língua privada de sábios doutores, não da Igreja, senão da Medicina, que se louvará com as bênçãos e as palmas.

Falei do poeta, que em 1919 se não havia revelado, bem que já o divulgasse ensaiando o vôo, nas vossas orações. Não é que a prosa, o sermo pedestris dos antigos, pode ter asas, não explicada para o vôo?

Même quand l’oiseau marche on sent qu’il a des ailes.
“Vossos discursos, vos dizia então, são poemas, odes, elegias, tanto a imagem e a locução, o concerto e as proporções fazem modelos de bem dizer vernáculo e polido, as Alocuções, Novas Alocuções, Últimas Alocuções”...

Mas o tempo permitiu que cumprísseis convosco, as asas se explicaram e o vôo vos librou às regiões etéreas da poesia... São de 1926, o Rimário, de 28, Carmes; ainda de 28, a Oração do Natal. De 30, o Cântico da Páscoa, de 32, Tendresses... Não contente ainda o poeta quis ser intérprete de poetas, e a Leopardi e a Pascoli tecestes as grinaldas do verso português, enriquecendo o patrimônio comum com adoção do gênio peregrino.

Nesses poemas sublimou-se aquele dom que vos exaltei, “esse amor que tendes aos livros, no qual pondes até um grão de sensualismo pagão. Tratais aos vossos como os califas, nos seus haréns, não amimariam às suas diletas. Porque eles teriam lá as suas preferências, que obriga a exclusões, como é próprio de paixões humanas. Tendes vós igual amor aos vossos queridos, temperado, porém, como deve ser, pelas distinções que cabem a cada qual, as vossas distinções que são sutis e refinadas”... Isso dizia dos vossos belos livros dos outros, os vossos de bibliófilo... Que não diria dos próprios de autor, que fazeis obras-primas, continente, digno do conteúdo? Conseguis isso, um prodígio, no Brasil, livro objeto de arte. Não o são esse Rimário com ilustrações de Alfredo Guido, papel custoso, caracteres novos, impresso nas oficinas nacionais, como só D’Annunzio consegue na Itália, de Treves, ou Anatole France, em Paris, de Pelletan? E os Carmes e as Tendresses, que se duvidaria terem mesmo saído da Imprensa Nacional, e no Brasil, onde se imprime tão mal, que o conseguido por vós será milagre...
A vossa profissão de fé será:

             ARS SUPREMA

Este, nos duros mármores polidos,
Dos deuses animou a efígie augusta,
E aos monumentos deu a linha justa,
No bronze que memora os tempos idos.

Este no escrínio pôs a arte que ajusta
Paciente as gemas, este áureos tecidos
Broslou, este da taça os esculpidos
Relevos rebruniu, este venusta,
Imagem nos painéis, em obras-primas,
As cores debuxou no molde terso;
Mas este, o sumo artista, este as opimas
Formas lavrou, na inspiração diverso,
E perfeito, elegendo as pulcras rimas,
De pérolas e estrelas fez o verso.

É a “arte robusta”, aquela que amais como ideal, em vosso Teófilo Gautier, mestre do nosso Alberto de Oliveira:
 
Tout passe. L’art robuste
 seul à l’eternité.

Felizmente arte é feminina, em português, e outra concepção é possível, só por isso. Pude escrever, conferindo essa força ao artista, ao formular um preceito de estética literária: “A arte é mulher, com ela não se pode ser fraco – só a dominação traz a posse”... Seria assim, na vida, como quer a comparação? Um amador, não de arte, mas do amor, Casanova, inquerido sobre a razão que invocavam as amadas para amá-lo, respondeu, reconhecendo-se “carinhoso”...
Deveis ser irresistível às Musas, senhor Aloysio de Castro, tanta carícia pondes em vossa arte. Não é que não vos bastou serem as vossas “ternuras” em verso, e vós mesmo, Guy d’Auberval, as pusestes, às Tendresses, em música, o amavio de um continuado pela completação submissa da outra? Ouçamos essa confissão dos Carmes:

                        NOITE

Noite! Que em teu silêncio a minha fronte
Se erga! Do sol brilhante já esquecido,
Com tua sombra, que é perdão e olvido,
A sós no teu mistério me defronte!

Abre-me os olhos, flui-me a flébil fonte
Do suave pranto, múrmuro e escondido,
Quero em teu êxtase abafar o ruído,
Até que uma outra aurora em mim reponte.
Mirando-te, das coisas na quietude,
Teu sereno esplendor meu peito mude
E eu possa no teu seio, recontrito,
Às estrelas contando o meu segredo,
Feliz achar de novo, ou tarde ou cedo,
Meu sonho desgarrado no infinito!

É o amor ao amor. Mas aqui a nebulosa já se concreta em astro, e é amor a amar:

Vê-la na vida como em sonho, encanto
E glória dos meus dias! Ver-lhe o leve
Passo de deusa e extático em meu canto,
Supor que enfim lhe beijo as mãos de neve,

E as tranças de ouro e seda e o rosto santo,
E o colo de alabastro e o lábio breve,
Rubra flor de veludo, outro amaranto,
E o seio, que ampla curva a arfar descreve...

Vê-la e senti-la, e no fervor calado,
Inviso bendize-la, e longe e ledo
Amá-la como a luz das primaveras...

Caia aos seus pés de rosas um punhado,
Rosas de amor, abertas em segredo,
Que assim ama quem quer amar deveras...

É a sublimação do amor... E não nos pejemos de falar dele sempre, sonhar com ele, viver nele, sempre, sempre, dele a cuidar, amor, amor... Não somos nós o mais amoroso dos povos? Que são brasileiros senão os lusitanos deste lado do mar, com as qualidades e os defeitos dos outros brasileiros de além mar? Pois bem. Lope de Vega, que de perto conhecia os outros, disse de nós:

A un português que lloraba
Preguntaron la “ocasión”;
Respondió que “el corazón”
Y que enamorado estaba.
Por mitigar su dolor
Le preguntaron “de quien”,
Respondió que de “ninguém”
Lloro de puro amor.

É a consciência de uma sensibilidade. A direção dela na arte e, talvez, na vida. Não há uma melancolia sem tristeza, ou sem razão de ser triste? Essa é a que mais dói, porque tem uma razão sem razão, que só o coração que não pensa, e não sabe dizer, sente. O artista revela-o na sua arte, malgrado de si próprio. Dareis um estudo freudiano nutrido dos termos sibilinos da psicanálise, quando os eruditos, um dia, vos fizerem a exegese da poesia. O amor será o Ersatz de vossa compleição. Amor ao amor, para a poesia. Representareis todos aqueles emotivos que não têm essa linguagem das emoções.
Com esses quinze anos que se passaram, alguma melancolia será da saudade. Viver será recordar. E como recordais bem, a vossa saudade! Ouvide, ouçamos:

                        ADEUS!

Adeus, castas visões da leve mocidade,
Nobre casa paterna onde vivi outrora,
Jardins onde folguei e onde contemplo agora
A sombra que baixou por sobre a claridade.

Velhas coisas que amei, no fugaz correr da hora
De ventura, esplendor, encantos da cidade,
Risos, festa e prazer, volvidos em saudade,
Tudo sorriu, cessou, tudo em lembrança chora.

E vós, formosas, vós, graças de um dia breve,
Vós todas, cujo nome esta mão inda escreve,
Levastes mundo em fora os áureos sonhos meus...

Hoje é noite e deserto e silêncio e abandono,
E vivo sem viver, entre a vigília e o sono:
Nasci, cresci, passei e ao que fui digo adeus!

Mas não passastes, apenas. Cumpristes convosco: vos completastes. E não só nas letras de arte sagrada, na poesia, também nas letras profanas, da oratória, nas letras sábias, da medicina. De 22 a 33 as Palavras de um Dia e de outro Dia têm três tomos elegantes, em que a facúndia do orador se reveste dos arminhos intemeratos da forma castiça, com que continuais mestre da língua vernácula. Há outros: Orações, em 1926, e em 30 os Excertos. Eles vos honram, esses volumes, continuando as séries de vossas Alocuções que vos trouxeram à Academia.

E as letras sábias? Não são de nossa conta, eu sei, mas sei que são irmãs as Musas e flertais, como se diz hoje em dia, em calão, com duas delas a um tempo. Érato, a da Poesia lírica, coroada de mirto e de rosas, e Urânia a da Ciência, cuja austera cabeça se nimba de um halo de estrelas... Não podereis repudiar essa volubilidade, pois que há documentos que ficarão. Notas e Observações Clínicas fazem dois tomos provectos e cheios de observações e achados provectos. E outros menores. Mas há um, o maior de todos. Não é que agora mesmo se imprime, e já anda por meio milheiro de páginas, e irá, ao dobro talvez, esse mirífico Tratado de Semiótica Nervosa, em segunda edição, correta não seria possível mas aumentada e enriquecida de uma iconografia magnífica e, sem conta, novas aquisições de estudo, “saber de experiências feito”?

Como Francisco de Castro, o poeta das Harmonias Errantes, teve o seu ápice no Tratado de Propedêutica, o filho que lhe herdou os talentos e o modelo oscila do Rimário às Notas e Observações Clínicas, das Alocuções aos Carmes, das Palavras de um Dia e de outro Dia ao Tratado de Semiótica Nervosa.

Destes uma casa à vossa Faculdade de Medicina, ora no palácio que lhe cumpria; andastes pela direção do ensino, dirigindo e ensinando. Presidistes a Academia. Que vos faltou nestes três lustros do post-scriptum?

No discurso em que vos anunciei, recebendo-vos aqui mesmo... tudo o que vos discerni, se realizou. “Desde a vossa porta, dizia então, que a arte vos põe sentinela, naquele loureiro, sempre vivo e bem tratado, que plantastes no átrio”...
Edificastes vossa casa, vossa mesmo, agora última realização daquele sonho de um filósofo: um filho, um livro, uma casa... Fizeste-la à vossa imagem. Podereis ter escrito no limiar aquilo de Ariosto, na própria: Parva, sed apta mihi, “pequena, mas me chega”... A vossa é um escrínio de jóia. Onde o loureiro? Há apenas uns ciprestes altos, esguios, como pontos de admiração, que trouxestes da paisagem de Florença... Há uns lótus, na sua atmosfera de sombra azul, lá dentro. Há na porta a inscrição do nosso querido Horácio (Ode XII, lib. II):

Vivitur parvo bene cui paternum
Splendet in mensa tenui salinum

“Vive contente, com pouco, aquele em cuja mesa modesta brilha o saleiro paterno”... Esse ama a tradição, esse conserva os hábitos familiares, fiel a si mesmo, continuando a quem passou, mas que sobrevive, na memória que o mantém... É o vosso Ausente, sempre presente ao vosso coração, que nos recebe no átrio de vosso lar...

Lá dentro é arte só. “Telas e bronzes, saxes e sèvres, rendas, tapeçarias, móveis antigos, livros dos outros que vestis soberbamente, livros vossos que imprimis com magnificência, fazendo deles escrínios preciosos das jóias raras que contêm, mudam vossa casa em museu de bom gosto. Num canto do salão órgão e piano, que se não dissimulam, depõem que os visitais a miúdo, e Bach e Chopin são vossos familiares. No vosso lar chovem bênçãos e nele mora a harmonia”...

Nada mudou do que era, nada passou do que foi. Continuais, apenas... triunfalmente. É porque hoje, e sempre, como ontem, posso dizer: fizestes vossa vida como uma obra de arte.