[Texto verbatim do discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, no dia 18 de outubro de 2010]
É a Academia Brasileira de Letras um continuum, no qual nós, os acadêmicos, constituímos o estofo de que se compõe a sua perenidade. Daí a tradição esperar que o acadêmico que toma posse faça, no seu discurso, a genealogia de sua Cadeira. Ainda são pouco numerosos os que fizeram a história da Cadeira 29, embora muitos, se de cada um quisesse fazer o perfil. Mas, ao deles herdar o privilégio de ocupar o assento que agora me cabe, sinto-me compelido a evocá-los, pois com eles componho a linhagem na trama que constitui a história da Academia. Falarei deles, portanto, mas serei breve, e, destarte, necessariamente omisso no que alguns pudessem esperar que de um ou de outro recordasse.
A Cadeira 29, da qual me honra hoje assumir a sucessão, teve como fundador Artur de Azevedo que para ela escolheu Martins Pena como patrono. A Martins Pena, pois, minhas primeiras palavras.
Nosso patrono surge em cena, meteoricamente, aos 23 anos, com a peça O juiz de paz na roça, levada ao palco pela companhia teatral de João Caetano, o maior ator e encenador da época no Brasil. Toda sua obra, de cerca de trinta títulos, Martins Pena a produziu nos oito anos que se seguem. Em grande parte foram comédias que expunham os costumes urbanos e rurais da sociedade de sua época. Com elas criava situações e tipos, nos quais os espectadores se reconheciam, e que davam aos atores a possibilidade de explorar a empatia com o público. Não foi o Molière brasileiro, como o chamou João Caetano, mas, um digno sucessor das duas vertentes pelas quais fluiu a comédia desde seu aparecimento na Grécia antiga, fundindo em suas peças, de autêntico sabor nacional e popular, a tradição da comédia de situações, que vinha de Aristófanes, com a de criação de tipos, na linhagem do mestre francês. É a “espantosa atualidade” de suas peças que leva Antônio Cândido, de quem tomo a expressão, a poder dele dizer ter sido, “talvez, o maior escritor do teatro brasileiro”. Usando a linguagem de suas criaturas, estabelecia uma comunicação fácil com a plateia que, mesmo quando desnudada, em cena, nas suas fraquezas e pequenas vilanias, se via reconfortada pelos finais felizes de seus singelos, mas arrevesados e frequentemente inverossímeis enredos. O gênero por ele introduzido, com as adaptações exigidas pela evolução dos costumes e as exigências de plateias mais apuradas, perdura vivo até hoje, responsável pelas melhores bilheterias.
Martins Pena morreu em 1848.
Dez anos depois um talentoso jovem escritor de 17 anos ensaiava suas armas de crítico, no jornal A Marmota Fluminense, com um artigo que se intitulava, nada mais, nada menos, “O passado, o presente e o futuro da literatura”. Chamava-se Joaquim Maria Machado de Assis, e o que ele diz do teatro da época é ser “palpável que a esse respeito somos o povo mais parvo e pobretão entre as nações cultas. Dizer que temos teatro é negar um fato, dizer que não o temos é publicar uma vergonha.” Segue o crítico neófito, com o vigor dos verdes anos, referindo-se à qualidade do que se apresentava nas salas de teatro do Rio de Janeiro: “A tradução é o elemento dominante, nesse caos que devia ser a arca santa onde a arte pelos lábios de seus oráculos falasse às turbas entusiasmadas e delirantes. Transplantar uma composição dramática francesa para a nossa língua é tarefa de que se incumbe qualquer bípede que entenda letra redonda”. E indica a solução: “A sociedade – escreve – é uma mina a explorar, é um mundo caprichoso, onde o talento pode descobrir, copiar, analisar um aluvião de tipos e caracteres de todas as categorias. Estudem-nas, eis o que aconselhamos às vocações da época”. Ora, o que estava o jovem crítico a ensinar, se não, precisamente, o que fizera Martins Pena, cuja obra, naquele intervalo, pelo visto, não houvera deixado marca sensível nos palcos e na crítica fluminenses. Ou a teria Machado apresentado, se não como modelo, pelo menos como a exceção. Como veio a fazer seu desafeto, Silvio Romero, vinte anos depois, ao escrever: “se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros 50 anos desse século XIX, que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de Martins Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral de toda uma época”.
Fundador da Cadeira 29, Artur de Azevedo foi uma das personalidades mais ativas na história literária brasileira. Poeta, contista, crítico, cronista e teatrólogo, deixou uma obra vasta e respeitável em todos os campos em que atuou.
Não vou me deter nos quatro primeiros aspectos, bastando-me dizer que, como poeta, foi por Olavo Bilac considerado “um poeta lírico como poucos, e isso – acrescenta Bilac – em uma terra em que há tantos poetas líricos de primeira ordem. Há sonetos de Artur de Azevedo – continua Bilac – que sempre hão de figurar em todas as antologias da nossa língua”. O mesmo podemos dizer de alguns de seus contos, gênero em que se inicia aos 16 anos, e que, duas ou três gerações após a sua morte, ainda tinham presença obrigatória nas antologias escolares. Como crítico e cronista, deixou mais de quatro mil textos, dos quais um quinto de crítica ou crônica teatral. É ainda Bilac, no necrológio do amigo, que anota: “A Crônica está de luto: perdeu um de seus melhores servidores – talvez o melhor, porque foi de todos o que mais soube tratá-la, como ela quer ser tratada, com um espírito onímodo, dando a todos os assuntos uma leve graça fugitiva, e pondo a arte do dizer ao alcance de todas as inteligências, sem prejuízo da correção do estilo.”
Mas é do teatrólogo que quero dizer algumas palavras.
É Machado ainda, em 1873, um quarto de século após a morte de Martins Pena, quinze anos depois de suas objurgatórias juvenis, que diz do teatro brasileiro poder “reduzir-se a uma linha de reticência. Não há atualmente teatro brasileiro, nenhuma peça nacional se escreve, raríssima peça nacional se representa. (...) Hoje, que o gosto público tocou o último grau de decadência ou perversão, nenhuma esperança teria quem (se) sentisse com vocação para compor obras deveras de arte. Quem lhes receberia se o que domina é a cantiga burlesca ou obscena, a mágica aparatosa, tudo o que fala aos sentidos e aos instintos inferiores?” Nesse mesmo ano chega do Maranhão Artur de Azevedo para renovar, mesmo recriar, o teatro nacional. Tinha 18 anos e já trazia na bagagem uma peça de sua autoria, A baronesa de Caiapó, representada na capital maranhense centenas de vezes.
Ensaia Artur de Azevedo uma produção inovadora, que traga ao teatro realismo dramático. Mas logo se desespera. E diz ter de recorrer à comédia ligeira para sobreviver. Lamenta-se: “o teatro que mais convém nos países novos como o Brasil é o teatro de costumes, e esse, deixem lá, é o verdadeiro teatro.” Autor de mais de cem textos para a cena e de uma trintena de traduções de peças francesas, sua prolixidade assusta e favorece a crítica apressada que condena a ligeireza de suas peças e acusa-o de não haver produzido um teatro literário. Tal não era, de fato, a intenção do autor. “Tentei fazer teatro literário e (o) fiz”, diz ele. Mas constata a pouca receptividade do público às suas comédias mais refinadas, assim como às traduções que fez de Molière, enquanto suas adaptações de operetas francesas lotavam as plateias. “Ora aí tens!”, exclama. E assim retoma a tradição do teatro ligeiro e, nas suas peças, introduz números de música ou partes cantadas, como no modelo francês, apelidando-as de burletas, e inicia, no Brasil, o teatro de revista. Era o de que o nosso público gostava, disse, “e razão tem ele ... situações claras que não o obriguem a uma grande ginástica de raciocínio.”
Sua grande alegria de viver, seu espírito humorístico, sua vida boêmia não apagavam as qualidades de uma grande simpatia com os problemas humanos, uma ironia saudável e generosa. Sua boêmia nada tinha a ver com o escapismo em que muitos medíocres se refugiavam. Era vivida como uma condição quase que obrigatória da vida literária do Rio de Janeiro da época, como retrata Brito Broca, e que em nada afetava ou diminuía sua rotina de escritor. Usava-a na medida justa.
O teatro. Sempre o teatro e até os seus últimos momentos no delírio da morte. E não o queria só para a própria fama, mas para o benefício da sociedade, tanto estava convencido da sua necessidade como fator de educação popular. Grande incentivador da ideia da construção de uma sala de teatro oficial, defendeu, ardorosamente, a edificação do Theatro Municipal. Mas seu projeto era mais ambicioso. Queria que ele fosse o reduto para a ação do Estado na criação de escolas, para educar o gosto pelo bom teatro, e de laboratório, para a formação de profissionais de alto nível em toda a gama da profissão. Com a mesma determinação, lutou para que fosse conferida à Biblioteca Nacional uma sede compatível com o seu excepcional acervo e seu papel social. Ao tomar conhecimento do cinematógrafo nascente, nele viu o potencial educativo para as gerações futuras, levando-lhes ao alcance os grandes momentos da sua arte.
Espírito generoso, empenhava-se na divulgação das obras de outros dramaturgos e comediógrafos nacionais. É Bilac ainda quem observa, no necrológio citado: “A quantos outros escritores novatos Artur não deu, como me deu a mim, o amparo de sua popularidade, o prestígio de seu nome, a proteção de sua bondade generosa!”.
Profundamente enraizada na realidade brasileira, ou, mais precisamente, na carioca, sua atilada percepção psicológica do comportamento individual e social da sua época dele fez um colecionador de tipos que, na verdade, com vestes diferentes, repetem-se e permitem a algumas de suas comédias resistirem ao tempo e despertarem ainda o interesse como se fossem atuais. Isso vimos confirmado, há apenas poucas semanas, quando sua peça O Mambembe foi reencenada, com grande sucesso de público, no teatro SESC Ginástico, no Rio de Janeiro.
“Quando eu morrer, – escreveu – não deixarei o meu pobre nome ligado a nenhum livro, ninguém citará um verso, nem frase, que saísse do cérebro; mas com certeza hão de dizer: "Ele amava o teatro", e este epitáfio moral é bastante, creiam, para a minha bem-aventurança eterna”.
A rigor, deveria, agora, voltar minhas atenções para Vicente de Carvalho que a Artur de Azevedo sucedeu como titular da Cadeira 29. Peço licença para fazer diferente e tratar imediatamente do sucessor do poeta paulista, Cláudio de Souza, também paulista, para não deixar em meio uma reflexão sobre os caminhos do teatro brasileiro. A Vicente de Carvalho regressaremos depois. E o faço, também, porque é o próprio Cláudio de Souza que assim o requer, ao dizer, no seu discurso de posse, que, com sua eleição, a Academia o permitia reconquistar para o teatro a poltrona que a ele havia concedido no ato de sua criação.
Notamos que há uma continuidade entre a obra de Martins Pena e a de Artur de Azevedo. E de que fala esse teatro que vem do século XIX? Do dia-a-dia de uma sociedade que busca sua identidade numa cultura que se estruturava, principalmente, no cotidiano da sociedade pequeno-burguesa citadina, e, quando no da rural, por suas reações no contato com a sociedade urbana.
Vimos tanto Martins Pena como Artur de Azevedo a lastimar a impossibilidade de uma dramaturgia séria no palco brasileiro pela incapacidade cultural do público para apreciá-la. Cláudio de Souza já no início do século XX, dá outras razões. Não tinha havido, na história do teatro brasileiro, e não havia ainda no seu tempo, lugar para o teatro dramático – diz –, pois a vida, e agora o cito, “corre-nos serena, tranquila, blandiciosa, abundante nos celeiros da província com frutos nativos e terra dadivosa. (...) Nosso teatro não pode, pois, ser mais do que é, expressão da alma popular, sincero, risonho e despreocupado.” E, enfaticamente, declara: “Não se compreende, pois, que o teatro, reflexo do meio e da civilização, venha pôr-nos em cena embates, conflitos, desequilíbrios morais e sociais que devemos pedir emprestado a outros povos, para fingir requintes e vícios iguais ou maiores do que os deles.”
É forçoso reconhecer que essa visão idílica não correspondia à realidade social da Primeira República. Wilson Martins refere-se à sociedade da época como “pesada de crises e inquietações”. Tragédias ainda recentes revelavam os efeitos de um patriarcado remanescente que dilacerava a paz doméstica, esta, em grande número de casos, não mais do que a máscara decente para dramas que desfiguravam a alma de seus integrantes. Nada disso aparece no teatro de Cláudio de Souza. O drama que se insinua nas suas comédias é o do descompasso entre a moral pequeno-burguesa que predomina na nascente classe média urbana e na pequena aristocracia rural que domina a roça, para utilizar a expressão da época, e os inovadores hábitos do mesmo extrato social na cidade.
Comparada à de seus antecessores, a obra de Cláudio de Souza difere apenas na tentativa de buscar um certo realismo psicológico mais elaborado nos seus personagens. Mas repete a inevitável concessão ao gosto das plateias pouco ilustradas de que já se queixavam Martins Pena e Artur de Azevedo há mais de cem anos. A tonalidade nova é dada pela mordacidade das alusões aos costumes contemporâneos na forma de chistes intercalados nos diálogos, um expediente importado da comédia contemporânea francesa. Homem culto, rico, de hábitos requintados, genuíno praticante da linguagem educada, não era fácil a Cláudio de Souza alcançar nas falas de seus personagens uma autêntica reprodução da maneira de falar, e até mesmo de pensar, dos seus personagens populares.
Cláudio de Souza escreveu 29 peças, a última das quais, Pátria e Bandeira, em 1942, se excluirmos Le Sieur de Beaumarchais, escrita em francês, ainda no mesmo ano. No ano seguinte, nascia em São Paulo o moderno teatro brasileiro com a encenação, pelo grupo Os Comediantes, de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, sob a direção do polonês Zbigniew Ziembinski. Quem teve a oportunidade de assistir a esse espetáculo, viveu um dos maiores momentos do teatro no Brasil.
Não posso abandonar Cláudio de Souza sem mencionar, de seu legado no mundo das letras, sua obra mais original e permanente: a criação, em 1936, do PEN Clube do Brasil. Dos objetivos originais do PEN Club internacional, guardou, para o rebento brasileiro, aquele de congregar escritores e profissionais da palavra com vistas a estimular a criação literária. Deu de si muito de dedicação e dos bens de sua fortuna pessoal. Tomou emprestada da Academia Brasileira de Letras, à qual já pertencia desde 1924, a rigidez institucional que o distingue das associações congêneres em outras partes do mundo. Nas mais de sete décadas desde então passadas o PEN Clube do Brasil vem prestando inestimável contribuição às letras brasileiras.
Volto no tempo para restaurar, no seu lugar, Vicente de Carvalho que, eleito para a Cadeira 29, em sucessão a Artur de Azevedo, nela nunca se sentou. Tomando posse por carta – não foi o único –, faltaram-lhe o discurso de inauguração e o de recebimento. Este se dará, na verdade, postumamente, quando, no dia 8 de outubro de 1924, sobre seu antecessor, falará o acadêmico Cláudio de Souza, seis meses após a morte do poeta. Não foi um necrológio. Não cabia. Foi um panegírico, como convinha à circunstância e à oratória do novo acadêmico.
À circunstância digo, e paro para uma reflexão. A sucessão acadêmica é obra do destino. As cadeiras, se têm patronos, não são dinásticas por profissão ou sobreexcelência em algum gênero literário. Vimos Cláudio de Souza dizer que ao suceder a Vicente de Carvalho recuperava para o teatro a Cadeira 29. Mas essa recuperação era circunstancial e não uma herança devida.
À oratória acrescentei. Por necessidade. O estilo sublime ainda encontrava cultores na época em que viveu e falou Cláudio de Souza, e nenhum mais a ele devotado do que o novo acadêmico.
Quem foi Vicente de Carvalho? Dizem os resumos biográficos que foi um poeta parnasiano que podia ombrear-se a Olavo Bilac, Raimundo Corrêa e Alberto de Oliveira. É pouco e é muito.
Vicente de Carvalho foi advogado, político, deputado constituinte, magistrado, ministro do Tribunal de Apelação de São Paulo, empresário, fazendeiro, jornalista. Escreveu contos e poesias. Com essas criou a sua reputação de poeta parnasiano.
Essa qualificação, repetida quase como um lugar comum, é uma imprecisão. Escreveu, sim, poesias parnasianas, como todos os poetas seus contemporâneos, mas a parte substancial de sua produção foi de um romantismo tardio na temática e na forma, onde havia uma predileção pelos ritmos e os gêneros populares, a redondilha maior e a trova. De início, não apenas não era parnasiano como, ao parnasianismo se opunha com veemência. “Prefiro o obscuro rouxinol mavioso de Menina e Moça aos pavões bizarros do parnasianismo”, escreve ao tempo de seu segundo livro de poemas, Relicário, em 1889. No mesmo texto, acrescenta que a poesia parnasiana “faz-me lembrar os manequins destinados ao reclamo dos alfaiates: por fora desenham-se as formas corretas da roupa bem talhada, dentro dorme um pedaço de pau toscamente ajeitado ao feito do corpo humano ... não quero que por amor ao apuro casquilho se faça da poesia o manequim do verso.” Seu verso era limpo, transparente, acessível no vocabulário, despretensioso nas imagens, ricas embora, muitas vezes brilhantes, razões para seu permanente sucesso. E só cantava o amor e a natureza, até que, na maturidade, deu um tom mais filosófico e naturalista à sua poesia, deixando-nos ora suas reflexões sobre a morte, assumindo o naturalismo macabro de um Augusto dos Anjos, como no terceiro poema de Avulsos, ou tocando-nos com a sua dor pela morte de um filho, como em “O pequenino morto”, ora exprimindo, como em seu pungente “Fugindo ao cativeiro”, o drama épico da escravidão.
Ninguém podia ser mais diferente do que o seu sucessor. Da recorrente evocação da natureza em seus primeiros poemas, diz Cláudio de Souza, no panegírico já mencionado: eram esses os tempos em que na sua poesia ”cada colina tinha sua oréade, cada rio uma náiade, cada arbusto uma dríade, cada angra uma nereide, ... e vivia a natureza a sorrir o riso dos deuses, e eram os vales frescos e umbrosos, as montanhas pitorescas, os vales férteis, o mar cerúleo, o firmamento limpo e anilado”, uma anáfora seguida de uma seriação sindética – desculpem-me essa investida no vocabulário técnico dos manuais de oratória, mas estimo ter sido essa a intenção do autor, a de que fosse reconhecido o seu domínio dos recursos estilísticos das belles lettres, e volto à frase interrompida –, helênicas alusões que nada tinham a ver com a poesia de Vicente de Carvalho, onde oréades, náiades, dríades e nereides não são mencionadas uma só vez. Encontraremos sim, a natureza real que comungava o poeta, com sua flora, sua fauna, seus habitantes e artefatos, o coqueiro, o jambeiro, a aroeira, a garça, a araponga, a juriti, o caitetu e a cascavel, os canoeiros, o puçá, o candeeiro, e até as panelas que chiam ao fogo, nada disso, que eu saiba, conhecido no Parnaso.
Bem ao contrário de um parnasiano reticente, era Vicente de Carvalho um poeta cuja simplicidade de linguagem, cujo avesso à obscuridade, ao rebuscado, à alusão literária, mais se prestava a uma apreciação oposta, a de um sentimentalismo, por vezes até mesmo um tanto raso, pelo menos em sua obra de mocidade. Donde poder ver Mário de Andrade na sua poesia, “um parentesco assaz tênue ... com o parnasianismo”, e Manuel Bandeira, que chega a igualá-la, e até superar, à da trindade parnasiana canônica, a afirmar que a ela “mal se pode aplicar o rótulo” de parnasiana.
No longo prefácio à primeira edição de Poemas e Canções, o livro máximo, e quase poderíamos dizer o livro único de Vicente de Carvalho, pois nele está reunida toda a obra considerada definitiva pelo poeta, diz Euclides da Cunha: “Nas várias escolas esporádicas – que vão do parnasianismo, com a idiotice de seu culto fetichista da forma, ao simbolismo, com a loucura de suas ideias exageradamente subjetivas –, o que parece a decadência da poesia é apenas o desequilíbrio e as emoções falsificadas dos que não podem mais compreendê-la na altitude a que chegou o nosso pensamento.”
E chegamos a Josué Montello.
Montello nasceu fadado a pertencer à Academia.
Precoce em tudo o que fazia, aos 14 anos tornou-se professor na escola em que era aluno. Aos 15, lança seu primeiro livro de poemas. Aos 18, é eleito membro do Instituto Histórico e Geográfico do Pará. Transfere-se para o Rio de Janeiro, inicia sua carreira jornalística e é nomeado Inspetor Federal do Ensino Comercial. Aos 19, obtém, por concurso, o cargo de Técnico de Educação. Aos 23, publica seu primeiro romance, Janelas Fechadas. Aos 26, vê representada sua primeira peça teatral, Precisa-se de um Anjo. No mesmo ano, prepara o plano de reforma da Biblioteca Nacional, da qual se torna de imediato Diretor dos cursos e, finalmente, aos 31 anos, Diretor Geral. Ninguém parará esse dinâmico homem público e homem de letras que irá, de cargo em cargo, no Brasil, a Secretário Geral do Governo do Maranhão, Subchefe da Casa Civil do Presidente Juscelino Kubitschek, Diretor Geral do Museu Histórico Nacional, Fundador e Diretor do Museu da República, Presidente do Conselho Federal de Cultura, Reitor da Universidade Federal do Maranhão, e, no exterior, a Adido Cultural junto às embaixadas do Brasil em Lima, Lisboa, Madrid e Paris, para terminar seus cargos públicos como embaixador do Brasil junto à UNESCO.
Neste recinto da Academia falará, pela primeira vez, aos 22 anos, para pronunciar uma conferência por ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Machado de Assis, iniciando uma relação intensa que desembocará na sua eleição para membro titular aos 37 anos. Entre uma data e outra, a Academia editará, aos seus 26 anos, o ensaio bibliográfico sobre Gonçalves Dias, de sua autoria; aos 31 lhe concederá o Prêmio Sílvio Romero, de Crítica e História, por sua História da Vida Literária; dois anos depois, o Prêmio Artur de Azevedo, por sua peça Escola da Saudade, e em mais seis anos, o Prêmio Coelho Neto de Romance, por seu Labirinto de Espelhos. Estava mais do que pavimentado o caminho para sua admissão como acadêmico. Da Academia veio a tornar-se Presidente em 1994 e 1955.
Relembrado, mais que tudo, por sua imensa produção na área da ficção, especificamente na do romance, Montello poderia ter ficado reconhecido, igualmente, como homem de teatro. A tese com a qual obteve aos 21 anos o cargo de Técnico de Educação tratava, precisamente, de “O sentido educativo da arte dramática”. Muito cedo, estreia nos palcos com a peça Precisa-se de um Anjo, em 1943, após haver publicado apenas um primeiro livro de poemas, seu primeiro romance e um livro de ensaios. Tinha 26 anos. Sua última peça é de 1997, quando o escritor completava 80 anos. Escreveu 9 peças ao longo da vida, o que demonstra um interesse constante pelo gênero. Tinha títulos, portanto, para reivindicar a linhagem teatral da Cadeira 29. Não o esquece Montello em seu discurso inaugural e se felicita de que o receba Viriato Corrêa “autêntico homem de teatro, dos maiores que o Brasil tem tido”, nas suas palavras.
Montello foi tudo, além do ensaísta, do dramaturgo e do romancista de que já falamos. Foi poeta (o que as biografias resistem em registrar, mas Viriato Corrêa, no discurso de saudação ao novo acadêmico fez questão de ressaltar); jornalista (deixou marcada a sua presença em revistas e jornais que já se foram - Dom Casmurro, O Malho, A Careta, A IIlustração Brasileira, Manchette, ou jornais, como o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, e o Jornal do Brasil, que acaba de finar-se, bem como no sobrevivente O Globo); cronista, diarista, memorialista, novelista, autor de livros para crianças, historiador, orador, tradutor, que mais... Dele escreveu seu grande amigo e nosso confrade Evaristo de Moraes Filho que tudo o que dele se diga ou é de mais ou é de menos. Certamente, dele nada disse eu de mais. Estas poucas linhas, ou estes poucos minutos, nem mesmo permitiriam enunciar os títulos de sua vastíssima obra de cerca de 150 volumes. A única maneira de não ser injusto à sua memória é dizer que Josué Montello foi o escritor por antonomásia. Graças a seu enorme talento, à sua cultura universal, à sua inquebrantável disciplina, produziu uma das mais abrangestes obras da literatura brasileira. Disse ele certa vez, desta mesma tribuna, citando Mallamé, que tudo neste mundo se acaba em livro. E, noutra ocasião, “Sou um escritor. (...) Sou assim por determinação da natureza.”
Está aí Josué Montello, de corpo inteiro.
Suceder a José Mindlin é algo que me toca profundamente. Nossa amizade iria comemorar em breve as bodas de ouro de uma convivência amável e fraterna. Desde sua eleição, costumava dizer-me, quando neste recinto nos encontrávamos: “Quero vê-lo aqui – e acrescentava – de preferência com o meu voto.” Deu-me a sua vaga.
Não se pode falar de José Mindlin sem falar de Guita. Formaram um só ser em duas pessoas distintas desde o dia em que, ainda estudantes, não sabendo Guita, referindo-se às facções políticas universitárias que disputavam a sua adesão, a que partido filiar-se, recebeu do colega José a proposta de filiar-se a ele próprio. Viveram casados e complementados por quase 70 anos. A perda da companheira, dias depois de sua eleição para esta Academia, levou-lhe o gosto de viver que sempre havia caracterizado aquele que “nada fazia sem alegria”, divisa retirada de Montaigne - Je ne fay rien sans gayeté - que José tomou como ex-libris de sua famosa biblioteca, porque era sua palavra de vida. Guita e José Mindlin. Seus nomes continuarão unidos, como queria José, prolongando a união exemplar de suas existências, na Biblioteca que será conservada no campus da USP para abrigar a magnífica Brasiliana que ele, com seu tino para encontrar a obra rara e sua persistência para adquiri-la, conseguiu reunir num trabalho de mais de sete décadas.
São conhecidas as muitas histórias relacionadas à constituição da biblioteca Guita e José Mindlin que não vou aqui evocar, pois, com graça e humildade, o próprio José inúmeras vezes as reconstituiu em documentos publicados, entrevistas concedidas, e resumiu na obra Uma vida entre livros. Documentos fundamentais para conhecer algumas das descrições episódicas de momentos grandiosos de sua vida de colecionador encontram-se, igualmente, no catálogo da exposição de 110 exemplares de sua coleção no Museu Lasar Segall, em São Paulo, realizada em 1999, que os cariocas puderam ver, depois, no Museu da Chácara do Céu, e, com perfeita memória e rara erudição, ele próprio anotou na monumental obra editada pela Biblioteca Nacional, por ocasião dos seus 90 anos, Destaques da Biblioteca InDisciplinada de Guita e José Mindlin. O que quero ressaltar neste momento é o inabalável bom humor com que sempre relatou suas aventuras e desventuras como colecionador de livros.
Diferentemente de seus congêneres mais célebres, José não era um bibliômano, mas autêntico bibliófilo. Amava os livros e com eles convivia. Dizia que sua biblioteca era indisciplinada. Não era. Ou o era apenas no sentido de que construí-la não obedecia a um programa. Seguia o que ele chamava de vertentes, linhas de interesse que por vezes se desdobravam, por vezes se extinguiam. A vertente Brasil, por exemplo, se ramificou em Literatura, História, Viagens, História Natural, Arte etc., como disse no seu discurso de posse nesta Academia, e incluímos no seu “etc” a Poesia, que sempre teve um lugar muito especial entre os seus livros. Vertentes subsequentes foram, por exemplo, as obras de referência, a história do livro e as artes gráficas, inclusive a tipográfica, ou a do livro em si, como objeto, em particular pela arte da encadernação. Novas vertentes surgiam constantemente, a dos periódicos, a dos manuscritos originais, a de roteiros cinematográficos, a da literatura de cordel, e as de cartas, dedicatórias, provas tipográficas, proclamas, alvarás, documentos históricos da Imprensa Régia, mapas, calendários, catálogos, regimentos de irmandades, catecismos, enfim toda sorte de “papéis velhos” originais que pudessem ser úteis ao pesquisador da história literária, política e social do Brasil.
Não tinha corretores, book dealers, para alertá-lo ou substituí-lo. Cada livro adquirido foi por ele examinado, apreciado para ter a certeza de que seria bem acolhido, pelos demais, na biblioteca, como se merecesse a sua companhia. E cada um foi, ou era, frequentemente visitado, folheado, contemplado, e, sempre que possível, lido. Não os lia todos. Seria impossível. Desejo talvez não lhe faltasse. Dizia que, ao adquiri-los, tinha pelo menos a intenção de lê-los. E chamava de “loucura mansa” o que reconhecia ser seu vício incurável: comprar livros. Loucura, talvez, mas havia método em sua loucura.
Alberto Manguel faz uma distinção entre bibliotecas com livros entronizados e bibliotecas com livros lidos. A de José Mindlin não tinha livros entronizados. Mesmo as joias da coroa estavam expostas à consulta do leitor interessado, ele próprio em primeiro lugar, que as visitava regularmente, e a quem quer que se beneficiasse de sua generosa acolhida para realizar trabalhos de pesquisa. Sua enorme biblioteca surgiu, aliás, como um produto quase diria secundário do seu amor pela leitura. Ele próprio o diz ao evocar o nascimento de sua coleção a partir da leitura de obras específicas que o levavam a procurar outras obras do mesmo autor e depois obras sobre aquele autor e assim por diante.
Mindlin costumava dizer que não tinha tempo para ler os bons livros porque existiam os ótimos, citando, e propositadamente distorcendo, uma boutade de Thomas Mann. E não era verdade, pois ele próprio se orgulhava de haver feito belas descobertas através da leitura de autores desconhecidos que lhe chegavam às mãos pelo acaso.
Gostava de ler em voz alta. “Para mim – escreveu – “a poesia é, de certo modo, uma partitura cuja musicalidade só a leitura em voz alta faz aparecer.” Guita era sua ouvinte predileta, porque constante e sempre atenta. Fazia-o com uma evidente satisfação e orgulhava-se de sua voz. Sua impostação solene e cadenciada pareceu-me, à primeira vista – ou devo dizer à primeira audiência – datada, mas vim a descobrir, depois, que devia estar impregnada no seu gene russo, pois era a mesma entonação que encontrei nas gravações de Ana Akhmátova ao ler os próprios poemas.
Do amor e do carinho que tinha pelos livros dizem muito as palavras com que procura justificar-se perante os que não foram selecionados para figurar na exposição do Museu Lasar Segall ou entre os Destaques da edição da Biblioteca Nacional, seleções que teve que fazer enfrentando “muitas ciumeiras e muitas queixas” dos livros que delas foram excluídos.
A imagem de José Mindlin está associada ao livro, à biblioteca. Mas Mindlin foi muito mais do que o bibliófilo. Foi o empresário sempre disposto a pôr a sua empresa a serviço das artes, o editor, o incentivador da esposa no árduo e exigente trabalho de restauro de livros e obras de arte, o administrador vigilante da proteção do patrimônio cultural quando em cargo executivo no estado de São Paulo, o zelador dos manuscritos de grandes escritores brasileiros e o mecenas para a divulgação desse patrimônio.
Em 2004, para comemorar os seus 90 anos, a EDUSP, da qual era Mindlin o presidente da Comissão Editorial, decidiu publicar uma obra que fizesse recordar os livros dos quais houvesse sido ele editor, co-editor ou patrocinador, muitas delas publicadas pela Metal Leve, ao tempo em que ele presidiu a famosa empresa produtora de autopeças, por ele mesmo fundada. Sob protestos do homenageado, a EDUSP produziu o catálogo José Mindlin, Editor, preciosa recapitulação de um dos aspectos mais fascinantes da obra de José, infelizmente só conhecida por um número reduzido de seus amigos e dos beneficiários de seu generoso apoio e interesse pelas artes gráficas aplicadas ao livro. São 60 obras de primoroso acabamento gráfico, a primeira das quais, as Elegias de Duino, de Rainer Maria Rilke, em tradução de Diva Ferreira da Silva, foi publicada em 1951. Mas não data daí a incursão inicial de Mindlin nas artes tipográficas. Aos 14 anos de idade, já demonstrara sua preocupação com a qualidade da impressão como editor da revista Rio Branco, que levava o nome da escola em que estudava em São Paulo. Na década dos 50 colaborou estreitamente com o grupo pernambucano Gráfico Amador cuja atuação revela uma das páginas mais originais da arte gráfica no Brasil. E aqui não posso deixar de evocar a figura fidalga de Aloysio Magalhães, seu grande animador, tão prematuramente desaparecido, morto em Veneza – como Aschenbach – enquanto defendia, em reunião da UNESCO, a inclusão de Olinda na Lista do Patrimônio Histórico e Cultural da Humanidade. A partir da década dos 60, de início em colaboração com Gastão de Holanda, ex-participante do grupo Gráfico Amador, no Recife, primeiro, e no Rio de Janeiro depois, inicia um projeto ao qual estarão associados os nomes de João Câmara, João Cabral de Melo Neto e Haroldo de Campos, este como tradutor de Octavio Paz. As publicações patrocinadas pela Metal Leve terão um destino mais especial: reeditar, em edições fac-similadas, revistas e livros tornados raridades, relativos, sobretudo, ao período modernista nas letras nacionais. Assim ressurgem A Revista, de Carlos Drummond de Andrade, a Revista Anual do Salão de Maio, de Flávio de Carvalho, a revista Verde, do Grupo de Cataguazes e a Revista de Antropofagia, consequencia e seguimento do Manifesto de Oswald de Andrade. Durante sua breve passagem como Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, a par de uma atividade administrativa rigorosa de desburocratização dos processos da Secretaria, criação de projetos de preservação do patrimônio cultural, estruturação da carreira de pesquisador, dirigiu, ainda, a publicação de uma vintena de livros em co-edições, uma bibliografia de editor bissexto, como se intitulava, que encheria de orgulho qualquer casa editorial.
Como preservador e difusor da cultura nacional, permitam-me introduzir aqui uma palavra de louvor e reconhecimento pela contribuição inestimável por ele prestada à União Latina, ao tempo em que eu a tinha a meu cargo, para a realização do que foi a maior e mais bela exposição da arte barroca brasileira jamais realizada no exterior, entre 1999 e 2000, no Petit Palais de Paris, intitulada Brésil Baroque – Entre Ciel et Terre, com a apresentação de mais de 600 obras de arte de coleções oficiais e particulares do Brasil inteiro. Sem sua mediação para a obtenção dos recursos necessários a essa prestigiosa apresentação, a exposição possivelmente, não teria chegado a realizar-se.
Escreve Mindlin na introdução aos Destaques: “Não tenho o fetiche da propriedade, porque, em matéria de raridade, considero-me mais um depositário do que um proprietário, uma vez que, para mim, o outro papel da biblioteca, além da leitura, é o da preservação da cultura – a gente passa, mas os livros ficam”. Há cerca de um ano, dizia numa entrevista ao jornal Estado de São Paulo: “Nunca me considerei o dono desta biblioteca. Eu e Guita éramos os guardiães destes livros que são um bem público”. E isso demonstrou, exemplarmente, ao doar os 26.000 livros que consistem a sua Brasiliana, a maior parte de sua biblioteca, à Universidade de São Paulo, num digno e raro exemplo de mecenato no Brasil, último grande gesto de um grande homem, um grande brasileiro.
Cito mais uma vez Alberto Manguel, que de livros e bibliotecas muito sabe: uma biblioteca é “um monumento incumbido de derrotar a morte”. Guita e José derrotam a morte ao ficarem recebendo com seus nomes no portal da futura biblioteca que abrigará os seus livros no campus da USP, por muitos e muitos anos, muitíssimos espero, todo aquele que neles for buscar inspiração e sabedoria.
Antonio Cândido observa com precisão que quando um homem é capaz de combinar harmoniosamente os traços de inteligência e sensibilidade demonstrados por José Mindlin para construir ao longo da vida uma biblioteca valiosa, “vai além da categoria de colecionador e se torna plenamente o seu autor, como um escritor é autor daquilo que escreve”. Assim soube nele reconhecer a Academia Brasileira de Letras ao elegê-lo em 2006. Homem de letras no sentido mais amplo da palavra, homem da palavra no sentido mais amplo do termo.
Muitas coincidências dizem respeito à Cadeira que hoje ocupo e às minhas relações com a Academia. De Cláudio de Souza sou sucessor duas vezes: primeiro como presidente do PEN Clube do Brasil, e agora, por ocupar-lhe a mesma Cadeira nesta Academia. De Josué Montello fui antecessor na UNESCO. À UNESCO, igualmente, estão ligados os nomes de outros ilustres acadêmicos, alguns meus antecessores, como Paulo Berredo Carneiro e Carlos Chagas, outros meus sucessores como, além de Josué Montello, José Guilherme Merquior. Ainda na UNESCO, tive o privilégio de ter como colaborador o acadêmico Abgar Renault na crucial XXI Conferência Geral, realizada em Belgrado, em 1980.
Esta breve, brevíssima, evocação de pessoas que me precederam na Academia Brasileira de Letras, às quais estive ligado, é, por si mesma, demonstração da sua plurivalência. E do sentido exato de sua divisa.
Se é missão da Academia a cultura da língua e da literatura nacional, tem ela que ser dinâmica e corresponder às vocações naturais de uma e de outra. O idioma de um povo ou de uma nação é algo vivo, evolutivo, maleável. Que as palavras envelhecem já o sabia Horácio que diz, na sua Arte Poética: “Como as folhas na mata, as palavras envelhecem e caem (...). Algumas renascem, outras, agora em voga, cairão, se o uso assim o quer, o uso ao qual pertence, nas línguas, a soberania, o direito, a regra.” E isso se aplica tanto à palavra isolada, nas sua conotações, quanto a seu emprego na frase, no seu uso sintático, semântico, estilístico. E é, então, a literatura que é afetada. A norma culta, que cumpre aos gramáticos detectar, proteger, tampouco é marmórea, e é por saber como transgredi-la que, muitas vezes, de algum escritor que a dome, pode surgir uma nova linguagem literária. Vimos como isso souberam fazer, de forma magistral, em seu tempo, o nosso confrade Guimarães Rosa, e, mais recentemente, o escritor português José Saramago, que há tão pouco se despediu de nós. O que isso tem a ver com a Academia? Precisamente ser ela a zeladora de que esse processo, a evolução do idioma e a transmissão da literatura se faça de modo a preservar a singularidade e a autenticidade de uma e de outra. Atentemos serem objetivos da Academia a “cultura” do idioma e da literatura. E cultura, no sentido etimológico quer dizer “amanho”.
Isso me leva à consideração final desta breve reflexão sobre o que pensa da Academia este que foi por ela honrado ao admiti-lo em seu seio.
A nós, que nestas cadeiras nos sentamos, atribuem-nos, os de fora, pretendermos ser imortais. Ora somos mortais como qualquer um e a imortalidade que se inscreve na divisa da Academia está mais referida a ela como instituição, com tudo o que a palavra tem de exacerbação do contingente, do que a cada um de nós como contribuintes para sua continuidade. Aqui estamos apenas para demonstrar quão passageiro é o renome que ela nos possa dar. Ela, a Academia, é que perseverará, recolhendo a contribuição que cada um de nós lhe possa prestar na realização de seus cometimentos. E sua missão nunca terminará ... eterna enquanto dure, diria o poeta.
Desejo, ao terminar, deixar o registro de meu profundo reconhecimento a todos os acadêmicos que me acolheram à sua companhia. Serei assíduo em procurar justificar sua confiança. A todos os que aqui me cercam, unidos no gesto de amizade que essa presença significa, minha enorme gratidão. Esta entrego, muito especialmente, a minha mulher, meus filhos, meus netos, minhas irmãs, meus sobrinhos e aos demais familiares que, aqui presentes ou de longe, estão comigo neste momento.
Agradeço, orgulhoso, a atenção especial que me concede o Excelentíssimo Senhor Eduardo Campos, Governador do Estado de Pernambuco, ao designar o Senhor João Lyra Neto Vice-Governador, para representar o Governo do Estado nesta cerimônia. A ele e à sua Excelentíssima esposa, Sra Leila Queiroz agradeço a presença neste recinto. Comove-me, igualmente, que aqui esteja representada a Academia Pernambucana de Letras, na pessoa de seu Presidente, o Sr. Waldênio Porto, cuja recente obra “Violinos no Coque” relata a bela experiência social e cultural que vem sendo realizada em Caruaru, sua cidade natal, com a Orquestra Criança Cidadã dos Meninos do Coque.
Não terminei, ainda. Tinha dois compromissos com respeito a este discurso. Um era comigo mesmo: fugir ao usual recurso retórico de iniciar ou terminar o discurso duvidando do discernimento dos que me elegeram, o que me parece uma injuriosa ingratidão. Outro era com uma pessoa aqui presente, e que não preciso nomear. Disse-me ela, quando pela primeira vez nos encontramos após a minha eleição: “E fale, Geraldo, de Pernambuco, em seu discurso de posse!”
Não foi fácil cumprir a promessa que lhe fiz no texto de uma oração que só trata de paulistas e de maranhenses. Procurei um jeito de atendê-la, como terão notado, ao referir-me, em várias oportunidades, a pernambucanos ilustres. Foi o máximo que conseguiu este modesto pernambucano que aqui cessa suas palavras. Percebo, no entanto, que, ao assim me caracterizar, descumpro o outro compromisso, o assumido comigo mesmo, e incorro o risco de ver-me desacreditado pelo nosso presidente que não considerará válido o bizarro oximoro no qual incorro ao acoplar os dois adjetivos que me apliquei, porque, mais do que desconjuntados, ele os considerará contraditórios.