DISCURSO DO SR. RODRIGO OCTAVIO
SENHOR Presidente.
Meus colegas:
Pela circunstância, que já se vai tornando dolorosa, de ser dos antigos desta companhia, o Sr. Presidente, numa gentileza cheia de ironia, incluiu meu nome no programa da sessão de hoje, sessão de saudades... Aqui nos achamos para nos despedir deste teto que nos abrigou por quase quatro lustros. Sob ele vivemos, e se, no rigor da palavra, não podemos dizer que muito trabalhamos, é certo que prosperamos; aqui nos veio encontrar o prestígio e a fortuna; quase que sou tentado a inverter a fórmula e dizer a fortuna e o prestígio, que, mesmo nestas coisas de cultura e engenho, que são nosso escopo, a fortuna é o degrau do prestígio.
Daqui, da simplicidade destes tetos caiados e destas salas despidas de adorno, simplicidade que bem condizia com a nossa pobreza franciscana, saímos agora para o esplendor de um palácio, entre os dourados dos estuques e os coloridos das tapeçarias sem preço... E, na antemanhã desse novo período de uma vida, que se há de projetar pelos anos incontáveis, pronunciemos, comovidos, o nome de Francisco Alves, que, tendo a visão da altura a que podia chegar a Academia Brasileira, deu-lhe asas para ascender.
Falei-vos em pobreza franciscana, e talvez tivesse sido lisonjeiro para com os deveres desta companhia...
Os frades, embora descalços e mendicantes, têm sempre teto para abrigar suas fadigas, e teto amplo e descortinado, de ordinário em sítio de beleza, entregue ao refrigério das brisas e aberto à contemplação dos horizontes.
Foram eles que descobriram as virtudes de eminências como as do nosso Castelo, que os homens de agora só entenderam útil para arrasar...
E nós, mais pobres que franciscanos, nem teto possuíamos...
Antes que a iniciativa corajosa de Eduardo Ramos, essa fidalguia espiritual que se vingou das negaças incompreensíveis desta companhia, não transpondo os umbrais da casa depois que a entrada lhe foi aberta, antes que a iniciativa parlamentar de Eduardo Ramos nos proporcionasse o conforto singelo desses tetos, a Academia andou vagabunda, abrigando seu labor modesto em diversos colmos de aventura.
A pequena sala da Revista Brasileira, na Rua Nova do Ouvidor, muito perto do bulício elegante da luxuosa artéria essencial do sistema circulatório da cidade, essa pequena sala, enquanto existiu, era o natural refúgio da instituição que nela germinou e nasceu. Mas a hospitalidade generosa de José Veríssimo e Paulo Tavares teve de cessar pelo desaparecimento da preciosa Revista que ambos fundaram em 1895 e não se pôde manter além de 1900.
E a Academia passou a pedir hospedagem, primeiro ao Pedagogium, então no velho casarão da antiga Secretaria da Justiça, em frente ao Passeio Público, depois ao Colégio Dom Pedro II, de que eram diretor José Veríssimo e secretário Paulo Tavares, esse que se contentou de ser Oficial-Maior, sem empregados menores e, o que é mais, mesmo sem secretaria, de nossa ambulante instituição. É claro que a posição pessoal de Veríssimo e Tavares na administração do Colégio foi a razão de ser da escolha desse local para as nossas sessões, uma vez abandonado o Pedagogium, onde, por motivos de serviço da casa, nossas reuniões tiveram de ser à noite, o que era sem dúvida inconveniente.
A colocação da nova sede das sessões, entretanto, longe do vasto armazém da Livraria Garnier, centro da atividade intelectual da cidade e ponto de reunião de escritores, acadêmicos ou pretendendo sê-lo, não era menos inconveniente. A Academia, porém, na precariedade de sua vida material, não se podia dar ao luxo da escolha... Por fim surgiu a idéia da Biblioteca Fluminense, ali mesmo na Rua do Ouvidor, quase em frente ao Garnier... Foi um achado, pensou-se: a Biblioteca Fluminense... Quanta gente, mesmo letrada, ignora o que isso era: uma associação privada que floresceu nos meados do século passado, acumulou uma preciosa livraria pacientemente organizada por Francisco Antônio Martins, seu erudito e prestante bibliotecário, e um dos maiores conhecedores de livros do Brasil...
Converteu seu patrimônio num magnífico edifício, na então rua principal da cidade, em cuja loja se estabeleceu, e ainda hoje se mantém, a casa de modas de Salgado Zenha... E, tendo preparado essa opulenta instalação para seus livros, em ponto central e do mais fácil acesso para leitores de todo o gênero, conservou, desde então, suas portas trancadas, limitando a serventia de seus preciosos arquivos e depósitos à procriação das traças e dos anóbios. Depois, a sociedade se extinguiu, pelo desaparecimento dos sócios, e a biblioteca, que praticamente era apenas um conjunto de salas fechadas, se dispersou e acabou... Felizmente a Biblioteca Nacional recolheu uma boa parte do precioso acervo.
Ali, em uma das salas de mistério deste velho casarão silencioso e empoeirado, a Academia realizou algumas sessões; algumas apenas... O local era por demais lúgubre e tumular; num tácito entendimento, cedo generalizado, os Acadêmicos, já de si em número reduzido, que freqüentavam as sessões, foram desertando aquela casa de silêncio... Impôs-se ao espírito de cada um de nós, sem ter coragem de confiar aos outros o que parecia uma infantilidade, que a Academia, se persistisse em se reunir ali, desapareceria contagiada pela impressão de desânimo e inatividade que pesava naqueles vastos salões desertos, naqueles longos corredores quedos, cujas paredes revestiam as enfileiradas lombadas de livros e pastas, fechados e inúteis. E, de novo na rua, sem teto a que se acolhesse, a Academia Brasileira de Letras aceitou o tímido oferecimento que fiz da minha modesta sala de advogado à Rua da Quitanda, então n.o 47.
Era uma velha sala de frente, com teto em funil sobre a armação do telhado, de uma antiga casa colonial, baixa, de sacadas corridas e maçanetas de ferro, hoje demolida.
Aí a Academia se reuniu por alguns anos, até que, em 1905, o governo lhe deu casa, e ela veio para este local de onde agora se despede.
E nesta altura de minhas desalinhadas reminiscências deve ser lembrado um nome que, quando não fosse de toda a justiça recordá-lo aqui, mandava a generosidade desta casa, onde não entram paixões políticas nem agitações mundanas, não calar no momento em que dele tanta gente se afasta, o nome do Sr. José Joaquim Seabra. Foi esse homem público que, sendo Ministro do Interior e Justiça do Sr. Rodrigues Alves, em liberal e benévola execução da Lei Eduardo Ramos, que nos mandava dar instalação condigna, não só pôs à disposição da Academia esta casa, como me autorizou, a mim que então era seu secretário e fui por muitos anos, com Machado de Assis, toda sua administração e movimento, a mandar fazer o seu mobiliário.
Essa mesa, Sr. Presidente, em que tendes a honra de nos presidir, este estrado e essas cadeiras em que nos achamos sentados, meus eminentes colegas, toda a mobília que guarnece a nossa modesta sala de entrada, tudo nos foi dado pelo Sr. Seabra e solidamente feito, sob meu gosto e indicação, nas oficinas, hoje desaparecidas, de um velho marceneiro da Rua da Relação.
Cumprido este grato dever para com o velho político baiano, voltemos à modéstia do meu escritório, onde deixamos a Academia instalada.
Ali não tinha ela luxo nem mesmo conforto. Mas, havia luz e ar; estava-se perto da Rua do Ouvidor, em local acessível para as reuniões à hora que conviesse; na mesa havia papel e tinta, para os gastos de nosso expediente, e na sala, cadeiras, para a meia dúzia que nós, ordinariamente, éramos, e um divã longo bastante para conter as presenças extraordinárias... Não era preciso mais para que a Academia persistisse na continuidade de sua vida à espera da hora da consagração e da glória.
Nessa pequena sala, com cadeiras suplementares, que vinham, de empréstimo, de escritórios vizinhos, se realizaram diversas sessões de eleição e foi ali que receberam o voto que lhes deu ingresso na imortalidade Afonso Arinos, Martins Júnior, Augusto de Lima, Euclides da Cunha e Sousa Bandeira, já todos mortos, à exceção do nosso brilhante poeta mineiro, cuja vida nós, que já estamos aqui dentro, fazemos votos sinceros para que se prolongue e por muitos anos...
Nessas ocasiões, como era natural, o número dos presentes era muito mais crescido e ali se encontravam, então, pessoas que raramente se viam e mesmo que se estimavam pouco.
Mas a inspiração superior que nos congregava era tão alta e salutar que a Academia, reunindo eminentes partidários e apologistas de credos políticos, religiosos e sociais, adversos e irreconciliáveis, jamais foi teatro do mais ligeiro e sutil desentendimento pessoal de seus membros.
Um pequeno e simples episódio, que vem à memória, ilustra esse estado de espírito que a Academia impunha a seus membros congregados. Foi no dia em que se elegeu Afonso Arinos, na vaga de Eduardo Prado. (Informa-me o prestante Sr. José Vicente, nosso digno chefe de Secretaria, que isso foi aos 31 de dezembro de 1901). Havia na sala respeitável número de acadêmicos, entre os quais José do Patrocínio, já muito enfermo, e que, chegando, se jogou no fundo do meu velho e desconjuntado divã. Outros colegas se sentaram ao lado, de modo que o vulto do grande jornalista negro não era desde logo reconhecível aos que entravam na sala. Nisso chegou o Sr. Carlos de Laet, que, pouco tempo antes, havia entretido com José do Pato uma violenta e azedíssima polêmica de imprensa. O Sr. Laet, sem ter visto o seu adversário no divã, foi apertando a mão de um por um dos acadêmicos ali reunidos, até que, em frente de Patrocínio, já não sendo possível evitar o cumprimento, parou e, com grande presença de espírito, perguntou:
– Camarada! Nós agora estamos bem ou estamos mal?
Ao que o jornalista, em sua larga habitual gesticulação, respondeu, risonho:
– Mas, estamos bem, amigo!
E, apertaram-se as mãos...
E já que entrei no capítulo das anedotas, seja-me lícito narrar ainda outra, que será a última. José Veríssimo havia feito enquadrar em pequenas molduras escuras os retratos de muitos colaboradores da Revista Brasileira e com essa linda galeria adornava a parede de sua sala de Redação. Desaparecida a Revista, quando a Academia começou a funcionar em meu escritório, José Veríssimo me ofereceu, dessa preciosa coleção, todos os retratos de acadêmicos, que eu coloquei, em fila, numa das minhas paredes. Certo dia uma senhora foi fazer-me uma consulta, levando uma esperta filhinha de uma meia dúzia de anos; e a menina, apontando para aqueles retratos enfileirados, perguntou:
– Mamãe, quem são aqueles gatunos?
Vendo a minha estupefação, a senhora num riso, me explicou que moravam nos subúrbios e na Estação em que embarcavam, como em outras próximas, havia a Polícia, para prevenção do público, colocado uns grandes quadros com retratos de ladrões e batedores de carteiras.
E, pela semelhança da apresentação, foi por essa gente que a filhinha da minha consultante tomou Joaquim Nabuco, Taunay, o Barão de Loreto, o Sr. Clóvis Beviláqua...
Não foram, entretanto, esses acima indicados os únicos tetos que abrigaram a Academia, nessa longa peregrinação para seu pouso definitivo.
Em outros lugares foram celebradas sessões solenes. A sessão de instalação em que Joaquim Nabuco pronunciou seu notável discurso inaugural, talvez a página mais admirável de quantas aqui têm sido ouvidas, se realizou no Pedagogium. A primeira sessão solene para recepção do Sr. João Ribeiro, primeiro acadêmico eleito depois da instalação da Academia, se realizou no salão nobre da Secretaria de Estado da Justiça e Negócios do Interior, graciosamente cedida pelo Sr. Epitácio Pessoa, então titular da pasta.
Outras sessões solenes se realizaram no opulento hall manuelino do Gabinete Português de Leitura; havendo ainda, já depois de transferidos para esta casa, nos valido do Palácio Monroe para as sessões de recepção de Pedro Lessa e do Sr. Dantas Barreto.
Nesta casa celebramos a primeira sessão ordinária no dia 31 de julho de 1905, havendo, dez dias depois, recebido solenemente o saudoso e querido Sousa Bandeira, nossa primeira festa aqui...
E se, como disse, mais pobres que franciscanos, nem teto tínhamos, era menos lamentável o estado de nossa Caixa. As pequenas despesas da companhia eram atendidas por uma diminuta contribuição mensal, que nem todos os Acadêmicos pagavam com pontualidade, de modo que nossa vida era forçadamente modesta.
E a propósito de nossa Caixa há o nome de nosso primeiro doador a relembrar, e doador anônimo, de nossa primeira hora...
A Academia havia apenas nascido, quando recebeu um dia num envelope fechado, sem indicação alguma, a dádiva de 100$000; foi a célula inicial de seu patrimônio... soube-se, depois, que o doador confiante nos destinos desta instituição, que assim nos animava, dando o exemplo a mais abastados amigos da cultura literária, fora o Sr. Coelho Rodrigues, jurisconsulto egrégio, depois senador e prefeito, homem de excelentes letras jurídicas e latinas, de que são atestados notáveis publicações, entre as quais avulta a tradução das Institutas de Justiniano. Cultor emérito da ciência dos Paulo e dos Gaio, versava tão bem a língua em que eles escreveram como a dos Coelho da Rocha e Paula Batista, em que escrevia.
A modéstia da oferta não diminuiu a beleza do gesto; nessa sessão de despedida, cabendo-me percorrer os passos de nossa vida de pobreza, o nome do primeiro benfeitor desta casa não podia deixar de ser registrado.
Nossa velha casa... Vamos deixá-la em poucas horas...
Não pode, entretanto, ser sem tristezas que a Academia abandone a simplicidade destas paredes, agora que, não tendo os frades crescido em número, a ordem se opulentou. Aqui decorreram quase vinte anos de nossa existência; daqui nós vimos desaparecer na morte quase todos aqueles que vinham da primeira hora e muitos daqueles que, depois, chamamos para nossa companhia. Aqui, dentro destes muros desguarnecidos, velados pelo carinho de amigos e pela saudade inextinguível de nossa Companhia, aguardaram a hora do sepultamento os despojos de Euclides, de Machado, de Olavo...
Para nós, os que aqui participamos, por tantos anos, dos labores da Academia, e contribuímos, através das vicissitudes dos primeiros tempos, para manter acesa a chama que se não deve extinguir, para nós, apesar da opulência da nova casa e do conforto das novas instalações, não será jamais sem tristeza e funda saudade que passaremos por esta enfiada de janelas por onde entrou o ar que nos deu vida e saiu o eco de tanta fulguração genial.