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Discurso de posse

Senhores acadêmicos,

Entre o fundador e o meu antecessor na Cadeira 13 há um traço comum que nesta noite não pode deixar de ser evocado. O visconde de Taunay e Augusto Meyer, descendentes ambos de estrangeiros, não tinham sequer uma gota de sangue nativo. No entanto, foram um e outro grandes patriotas, de espírito e obra profundamente brasileiros. Taunay é o autor de um dos romances mais lidos de toda a nossa história literária, a novela sertaneja Inocência, e da narrativa épica A Retirada da Laguna, livros inspirados pelo mais puro sentimento nacional. Meyer, autor de Prosa dos Pagos, conheceu como nenhum outro pesquisador as tradições do Rio Grande do Sul, que ele amava mais do que ninguém será capaz de amar. José Veríssimo acentuou que a “dupla origem estrangeira” não impediu a Taunay de ser “um genuíno brasileiro de índole e sentimento”. Alceu Amoroso Lima apontou em Augusto Meyer o filho de imigrante, de corrente não lusitana, destacando-o dentre muitos outros que começaram a aparecer com o Modernismo, dos quais a Academia já havia escolhido Menotti Del Picchia, filho de italianos, e Viana Moog, descendente de alemães, como ainda há pouco elegeu Antonio Houaiss, primeiro brasileiro de ascendência árabe a ingressar na Casa de Machado de Assis.

“Cria de imigrantes”, era este o título de que mais se vangloriava Augusto Meyer. Num dos seus livros de memórias, em que desce à “raiz da vida” dos “pagos da infância”, orgulhoso de sua progênie humilde, qualifica-se “um neto de farroupilha”. “Cria de imigrantes” e “neto de farroupilha”. Expliquemos o sentido destas confissões, que nada possuem de fantasiosas. São alemães os bisavós maternos, Filipe e Maria Klinger, chegados ao Brasil em 1824, na primeira leva de colonos estabelecidos em São Leopoldo com um trato de terra. As duas gerações sucessivas, a dos avós e a dos pais, os Feldmans e os Meyers, não se misturaram, conservaram intacta a pureza do sangue germânico. Somente ele, Augusto, transporia a linha racial, casando com brasileira, depois de um século de aculturação.

Filipe Klinger morreu na Revolução Farroupilha. Abandonou a pequena lavoura iniciada na Feitoria Velha para alistar-se entre os partidários de Bento Gonçalves. Teria sido, em consequência, um dos muitos heróis anônimos da guerra civil que durante dez anos ensanguentou a província de São Pedro do Sul, não fora o entusiasmo póstumo do bisneto, poeta e prosador ilustre, duplo e incontido entusiasmo por Filipe Klinger e Maria Klinger.

Segundo as lembranças familiares, Filipe era “inquieto, magro, alto, cabelo cacheado e cor de fogo”. E Maria, “pequenina, vivaracha, sacudida, os olhos pretos, furungando tudo em derredor, a modo de camundongo”... Anti-retórico, sóbrio e até seco, policiando a emoção com escala milimétrica, o escritor não se contém ao recordar a valentia humilde da bisavó: “Todos os depoimentos concordam neste caso; de espada em punho, aprendeu a defender o couro e os seus direitos. Chegou certa vez a vir a pé, de Lomba Grande a Porto Alegre, para pleitear com a eloquência da candura a posse do pobre pedacinho de terra cultivado com suor e lágrimas por seu marido.”

E o memorialista assim remata a talvez única página derramada de toda a sua obra enxuta e magra, a carta aos bisavós, no pórtico da segunda edição de Segredos da Infância (1966): “Pensando bem, são estes os meus brasões de colono sem terras; em campo de sangue, uma cabeça degolada, ou, para ser menos patético – em campo blau, uma espada e uma pena cruzadas –, a pena esta mesma que assina a carta, e a espada, bem entendido, da avózinha Maria.”

A página já devia estar escrita, por ocasião da primeira edição do livro (1949). A espada da avózinha e a pena do neto – imagens de fácil efeito – foram a princípio repelidas, aceitas afinal, após um período de hibernação. Meyer não pertence àquela família de escritores que ele próprio classificou de “farfalhantes”. Preferia o estilo “pão e água” da receita de Anatole France. Mas acabou fazendo uma concessão aos bisavós. Não poderia recordá-los mitigando a frase, suprimindo os adjetivos generosos. Fez tudo ao contrário do seu estilo temperado, do seu natural comedido, com receio talvez de cair no pecado da restrição afetiva. Dos Feldmans e dos Meyers, pouco fala o neto e o filho nas memórias, a não ser de Emílio Meyer, o tio solteirão, para ele um segundo pai, professor que deixou fama de humanista no Rio Grande do Sul.

Os avós paternos vieram muito depois dos Klingers. Chegaram ao Brasil, em 1851, como soldados da Legião Estrangeira organizada pelo Império na campanha contra Rosas, a mesma leva que traria Karl von Koseritz e Carlos Jansen. Esses imigrantes eram pacíficos cidadãos liberais, alguns deles republicanos, de qualquer modo inconformados com a supressão das liberdades civis, após a Revolução de 1848, imposta pelo retumbante e atrabiliário Rei da Prússia, Frederico Guilherme IV. Reclamavam, protestavam, resmungavam, como besouros zumbidores, e ficavam nisso. Daí o apelido Brummer. O general Bertoldo Klinger encontrou o vocábulo correspondente que é lapidar em nossa língua: rezingão. Dissolvido o corpo militar, após a vitória de Monte Caseros, os rezingões viraram colonos, artífices, professores, pequenos industriais, senão a maioria, muitos deles se transformaram em verdadeiros gaúchos, adotaram a indumentária da terra, bombacha, chapéu de abas largas, guaiaca e esporas de prata, tal como o pai do próprio Augusto Meyer, embora ostentasse um belo e agressivo bigode à Kaiser.

O entranhado sentimento nativista de Augusto Meyer não é caso isolado em imigrantes até das primeiras levas ou “crias de imigrantes”, como o escritor também se intitulava, além de “neto de farroupilha”. É uma decisão, um ato de vontade, conscientemente determinado, como disse Jorge Luís Borges ao tratar do criollismo de um dos mais típicos poetas portenhos, Evaristo Carriego, da área suburbana de Buenos Aires, entrerriano pelo lado paterno mas trazendo nas veias algum sangue italiano pelo lado materno, criollismo que parece ao autor de Ficciones um paradoxo. O caso de Augusto Meyer é ainda mais estranho, porque não existe nele, como já ficou dito, resquício de sangue crioulo. Aos alemães ou filhos de alemães de que descende não lhes chama “gringos”, mas aplica a palavra pejorativa ao italiano, seu vizinho na casa da Floresta, onde viveu parte da infância porto-alegrense, “o grinco Ércole”.

Gaúcho de sensibilidade à flor da pele, sempre alerta a tudo que pudesse ferir ou diminuir o seu querido torrão natal, a começar pelo destempero de Capistrano de Abreu, grande historiador, que, no caso da Guerra Cisplatina, em maré de mau humor, comparou o Rio Grande ao “cavalo de Troia”, lamentando não ter sido excluído das nossas fronteiras, como se fora “um potreiro cisplatino encravado no Brasil”. Há de vingar-se do mestre, em tópico cáustico, chamando-lhe “afoito e precipitado”, pela sua interpretação do Tratado de 1750. A situação do índio é o que mais interessa, nesse passo, a Augusto Meyer, em posição de protesto contra o refrão dos historiadores convencionais – e Capistrano certamente não se inclui entre eles –, que transmitiram o preconceito da “preguiça do índio” ou da “incúria do índio”, quando na verdade o índio não passava de pária, instrumento indefeso nas mãos poderosas dos dominadores.

Com vigor ainda maior, direi mesmo com irritação, Meyer rebate o paralelo entre o sertanejo e o gaúcho, que “a traço grosso” Euclides da Cunha desenhou, segundo ele, “sem o mais leve pudor crítico”, merecendo uma “severa análise, do ponto de vista do seu enfático, da sua leviandade enfunada, que tanto impressionou os leitores incautos da minha geração”. E acentua:

Muito pode a retórica; deve-se principalmente à influência de Euclides a difusão desse clichê: o gaúcho entonado e pachola, estereótipo que nem mesmo se ajusta bem a certas variantes mais próximas do gaúcho antigo de vida solta: o fronteiro, o vaqueano, o changador, o gaudério, o belendengue, o índio vago, aquelas variantes idealizadas na imagem folclórica do monarca das coxilhas.

O brio do gaúcho ferido vem à tona, mais uma vez, na límpida análise do primeiro romance em que o homem do pampa aparece como herói da liberdade, O Gaúcho, de José de Alencar. Reconhecendo embora “o grande Alencar de sempre, o maior criador da prosa romântica, na língua portuguesa”, Augusto Meyer faz trabalho meticuloso de dissecação, com implacável bisturi, enumerando todas as impropriedades de expressão e deslizes históricos ou sociológicos. Não perdoaria a Alencar as duas falhas mais graves: o retrato deformado de Bento Gonçalves com bigodes grisalhos e, “pior ainda, pior dos piores – nem sei como o diga – é o herói da história, o Gaúcho, montado em égua!”.

Para um escritor do porte de Augusto Meyer, que tão bem conhecia o valor das palavras, o amor pelo Rio Grande do Sul transparece até na maneira sensual como se refere à palavra pampa, num dos seus melhores ensaios:

Eu digo pampa, os lábios unidos se abrem, passo da intenção à distensão final sem consciência de qualquer esforço, e depois de ecoar na memória, a palavrinha se dilata em horizontes e distâncias até perder-se num vazio de imensidade... Se a pronunciasse aberta no a, como um vizinho da outra banda, em vez de nasalada ao nosso modo, é quase certo que para mim perderia metade da magia poética; seria ainda assim uma bela palavra mas, de qualquer modo, fronteira. E passando ao feminino, ainda mais se agravaria a impressão de coisa traduzida, em vez de coisa minha e espontânea, quando na verdade fomos nós os tradutores.

Peço licença a mestre Aurélio, ao invadir seu latifúndio, neste breve repasse de Meyer filólogo. Ainda sobre a palavra pampa. Dela sentia-se dono e senhor, e só a admitia ao modo do Rio Grande, e não do Uruguai ou da Argentina, uma palavra masculina: o pampa, e nunca la pampa, como nascera, feminina, na outra banda.

Outra palavra do vocabulário gaúcho que o enternece: rodeio. “Rodeio” – escreve – “é também palavra mágica, pelo menos para a gente da minha geração, ainda com um pé no século passado – nascera em 1902 –, palavra que envolve ao mesmo tempo um grande espaço de campos abertos ao galope e um grande tumulto concentrado de gritos, latidos, mugidos, bater de aspas, disparadas.”

Guasca e gaúcho são outras tantas palavras que lhe satisfazem a sensualidade semântica, palavras heróicas que enchem o peito.

Falava-se em guasca largado como quem dissesse quebra largado, torena, monarca das coxilhas. Como quem diz gaúcho. A violenta expansão de individualismo, quase narcisismo, que palpita ainda em tais vocábulos! Palavras de sangue quente, revelam o excesso de vitalidade que se apega ao desfastio e à ebriez de si mesmo, como o touro escarva a terra. E menos que egolatria e mais que bravata, é uma força que se gasta por necessidade.

Nascido em Porto Alegre, Augusto Meyer viveu boa parte da primeira infância no campo, por entre várzeas e canhadas, na paisagem pampiana do município de Encruzilhada, para onde se mudou toda a família, com os cavalos e os cachorros, quando o pai foi assumir a gerência das minas de volfrâmio de Cerro d’Árvore. E a imagem, que fixou, nítida, para todo o sempre, ao adquirir consciência das coisas – “um muro velho, no quintal de uma casa indefinível” – logo se amplia como que na procura de uma libertação, com o espetáculo da natureza: “Estou vendo o nosso rancho, construído no alto de uma coxilha, a taquara e barro, com teto de santa-fé. Abrem-se e ondulam, no fundo da memória, os horizontes dos coxilhões, com maravilhosos crepúsculos e o sol enorme, inundando os campos.”

A vida rústica, o inverno longo e duro, o zunido aterrador do minuano, três dias e três noites seguidas, anunciando as geadas, tudo, enfim, que significa, ainda que simbolicamente, a luta do homem contra a opressão, há de marcar-lhe fundo a personalidade: “Estou no alto da coxilha, agarrado ao avental de minha mãe: o medo gravou para sempre aquele instante na memória.” Uma sensação de insegurança lhe incutira não apenas o minuano, na primeira infância, como também a caçada policial a um índio fugido, acoitado no rancho dos Meyers. Episódio mais imaginado que vivido, mas com tamanha e angustiada força que não se apagará jamais da lembrança, a

[...] daquele índio vago, dormindo de freio na macega, acossado como fera de mato em mato, de grota em grota, de rancho em rancho, até receber de minha mãe a esmola de um refúgio em nossa casa, de onde ouvia decerto, respirando a custo, o bofar dos cavalos maneados, a saudação do cabo – buenas, dona Rosa! – e de vez em quando o arrastar das rosetas de espora.

As imagens posteriores da primeira infância, na volta a Porto Alegre, revelam a mesma angústia. A tônica destas recordações, entre 8 e 10 anos, parece, é a da insônia ou a dos pesadelos que atormentam o menino de olhos tristes:

Era sempre o mesmo sonho, na outra casa da Floresta: eu descia, descia a escada do porão, e de lá de baixo, com um riso escondido na barba branca, ele apontava para a porta escura, fechada a cadeado. Sentia atravessar-me o corpo todo o frio do terror. O Anão me chamava com a mão, vem cá, e indicava a porta do cadeado. Eu queria ao mesmo tempo descer e subir, desvendar o mistério da porta de baixo e fugir a quatro e quatro escada acima...

Da segunda casa do bairro da Floresta ao sobrado da Praça da Matriz, a vida de Augusto Meyer é igual a de todos os meninos. Vai ao colégio, primeiro o Bom Conselho, depois o Ginásio Anchieta, sofre a incompreensão de um ou outro professor – não esquecerá jamais o “empurrão brutal” de um deles, de quem se desforra nas memórias dando-lhe o apelido de “Pata Larga”. Vidinha igual à de todos os meninos até mesmo nas travessuras mais estranhas, como as brincadeiras de feitor surrando dois pretinhos da vizinhança que se compraziam no papel retroativo de escravos. Tico, o menino ruivo de Porto Alegre e São Leopoldo, não difere em essência de outros meninos, ruivos ou morenos, de São Luís do Maranhão, Maranguape ou Guaratinguetá. No “tempo da flor”, quando brotam as espinhas, vai surgindo o Foguinho, adolescente insatisfeito, depois o Aug, aprendiz de pintor, em seguida aprendiz de poeta. Começa a compor versos em francês, com um certo tom vagamente simbolista. Descobre o cinema. Do curso de preparatórios do Velho Meyer salta para a Faculdade de Direito, mas abandona o curso antes de iniciar o segundo ano para se dedicar por inteiro à aventura literária.

Os primeiros poemas, de A Ilusão Querida (1923) a Giraluz (1928), da fase preparatória, entremostram o artista requintado que atinge a plenitude da expressão em Poemas de Bilu (1929),Literatura & Poesia (1931) e Últimos Poemas (1950-1955). Como quase todos os modernistas, procurou divertir-se com os temas já superados do Parnasianismo e do Simbolismo. Mas acima da atitude aparentemente descomprometida com o passado, não conseguiu desprender-se de um profundo sentimento telúrico, o mesmo que transparece na obra de um José Lins do Rego ou de um Guimarães Rosa. As leituras de Francis Jammes ou de Proust não o desenraízam, pelo contrário, como que aprofundam e robustecem a vocação crioula. Os melhores versos do período inicial são os de inspiração gauchesca, como a “Oração ao Negrinho do Pastoreio”, cujo conteúdo folclórico se dilui e se concentra para transfigurar-se de Literatura oral, sem dono, em literatura escrita, com a marca inconfundível do autor, obra de arte elaborada com todos os recursos da estética.

Pouca coisa restará a Bilu, na fase final do entreato poético, o “filoir Bilu, malabarista metafísico, grão-tapeador parabólico”. Nesse livro está, não direi o melhor, e sim o mais original, o mais denso, da poética de Augusto Meyer, nos versos trabalhados numa técnica muito especial de comunicação, empregando ao mesmo tempo vocábulos do populário gaúcho e do português arcaico, galicismos, anglicismos, germanismos, uma língua de uso pessoal, provocadora, desafiadora, embora não hermética.

Esse Bilu, galhofeiro, irônico, que faz lembrar o Puck shakespeariano, não aparece só na Poesia, mas na Prosa que Augusto Meyer vai construindo, daí por diante, sobretudo no campo da crítica e da exegese literárias, autor de ensaios magistrais como os que dedicou a Rimbaud e a Camões.

Minhas senhoras e meus senhores,

Nesta noite em que inicio a minha vida acadêmica, reencontro Augusto Meyer não na Praça da Matriz, a Praça do Paraíso, em Porto Alegre, mas no antigo Bar Recreio, aqui mesmo no Rio de Janeiro, na Praça José de Alencar. Um Bar Recreio bem mais simpático e acolhedor que a vasta cervejaria de hoje, sempre apinhada de gente. Aquele Bar Recreio não existe mais. Foi demolido o sobrado, desfeito o jardim que o enlaçava, cheio de sombras. Tudo mudou na praça José de Alencar. Desapareceu o belo solar do Hotel dos Estrangeiros e ergueu-se no mesmo lugar outrora venerável horrendo edifício de apartamentos. A casa que pertencera ao Barão do Flamengo, na esquina da Rua do Catete, mais tarde recolhimento de velhinhas, foi também abaixo, substituída por um prosaico e rentável posto de venda de gasolina. É o algo mais que a Shell nos dá... Na página inesquecível sobre a Praça da Matriz, Augusto Meyer denuncia esse nosso “ávido novo riquismo”, numa advertência aos prefeitos de tantas cidades brasileiras, inimigos das árvores, dos parques e dos jardins, das casas antigas e das velhas igrejas, impotentes ou incapazes de conter ou disciplinar a explosão urbana.

Perdoem-me o desabafo e uma intromissão autobiográfica. É que conheci Augusto Meyer (creio que ainda residia no Sul), quando se preparava para deixar a Biblioteca Pública de Porto Alegre pelo Instituto Nacional do Livro, então fundado. O grupo que se formara no Bar Recreio, aos sábados, dia boêmio da classe média, era uma continuação do Antonello, ponto de referência obrigatório da brilhante geração dos modernistas sulinos de Augusto Meyer e Mário Quintana. Além do poeta, centro das atenções, os amigos mais antigos, Teodemiro Tostes e Sotero Cosme, e os amigos mais novos, como Egídio Squeff, um poeta que não chegou a realizar-se, meu companheiro de jornal, que foi quem me conduziu àquela confraria de gaúchos líricos, amigos de uma boa conversa nas rodadas de chope, amontoando os cartões sobre a mesa. “O chope louro espuma a franja branca.” Confraria que se enriqueceu um pouco mais tarde com a presença buliçosa e risonha de Rivadávia de Sousa, uma das melhores figuras humanas que tive a fortuna de encontrar em meu caminho.

Voltei a conviver com Augusto Meyer, dividindo com ele o mesmo cigarro de palha, de fumo crioulo em rama, amarelinho, vindo de Cachoeira, sob encomenda, ao tempo do Instituto Nacional do Livro, quando por ali passei rapidamente, em 1942, não direi no “meu” tempo da flor, mas um instante da perdida mocidade, rediviva de repente: Sérgio Buarque de Holanda, sempre alegre, a trabalhar com a mesa atulhada de livros e originais, vis-a-vis José Honório Rodrigues, mergulhado na sua bibliografia sobre o domínio holandês, Eneida e eu, lendo e conferindo as provas dos volumes da Biblioteca Popular Brasileira.

Augusto Meyer esteve longos anos à frente do Instituto Nacional do Livro, da primeira vez quase vinte anos. A Revolução de 1930 criara o Ministério da Educação, e a primeira década é quase toda voltada para a implantação de instituições como o Serviço (hoje Instituto) do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Instituto Nacional do Cinema Educativo, o Serviço de Radiodifusão Educativa, o Serviço Nacional do Teatro, o Instituto Nacional do Livro, além da reorganização, pode-se mesmo dizer, da organização definitiva da Universidade do Brasil. Muito pouco tinha sido feito até então. Já se abre o horizonte da história em que aparece, com as cores de uma alvorada renovadora, o impulso vivificador dos Anos de Trinta, com a participação efetiva, em muitos setores da atividade cultural, dos líderes do Modernismo, os que vieram da Semana de Arte Moderna e os que vieram depois, na lufada do romance do Nordeste. A história cultural desse período inicial da revolução de 1930 não pode ser escrita sem os nomes de Gustavo Capanema, Mário de Andrade, Lúcio Costa, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Roquette-Pinto, Carlos Drummond de Andrade, Peregrino Júnior, Abgar Renault, Augusto Meyer e tantos outros, todos, ou quase todos, antigos militantes do Modernismo, com exceção talvez de Roquette-Pinto, a exercer funções de comando na administração pública.

O Presidente Getúlio Vargas haveria de valorizar essa contribuição em discurso proferido na Universidade do Brasil, em 1951, procurando identificar o movimento modernista com as forças que, no campo social e político, precipitaram a revolução vitoriosa de 1930. A chamada era de Vargas, que se estende até 1945, com tantos desvios e contradições, foi um período sem dúvida fecundo para a Cultura brasileira, coincidindo com a difusão do rádio e do livro, das grandes edições que encontraram em José Olympio o audaz bandeirante.

É o tempo da floração dos romances do Nordeste, de José Américo de Almeida e Rachel de Queiroz a Jorge Amado e Adonias Filho. Da produção mais intensa de Portinari e do início da maturidade de Di Cavalcanti. Das primeiras obras monumentais da arquitetura moderna, de Lúcio Costa e seus discípulos, o maior de todos eles, Oscar Niemeyer. De poetas como Manuel Bandeira, Ribeiro Couto, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt, Cassiano Ricardo, Carlos Drummond de Andrade. De músicos como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. De grandes novelistas e contistas também do Sul, os da Semana de Arte Moderna, à frente Menotti Del Picchia, prosador e poeta, e os que vieram depois, Marques Rebelo e Cyro dos Anjos, mestres da prosa moderna, Gastão Cruls e Otávio de Faria, Cornélio Pena e Lúcio Cardoso, que restituíram o prestígio ameaçado ao romance introspectivo.

É quando desponta uma clareira popular, no Teatro, com a apresentação de “Deus lhe Pague”, de Joracy Camargo, seguindo-se-lhe pouco depois o movimento renovador de Os Comediantes, com Brutus Pedreira, Santa Rosa e Ziembinski. Roquette-Pinto vai buscar o pai do cinema brasileiro, Humberto Mauro, solitário e esquecido, para a sua obra de criação do Instituto Nacional do Cinema Educativo.

É a hora sobretudo dos grandes ensaios de interpretação social e política do Brasil. De Gilberto Freyre, Gilberto Amado, Octavio Tarquínio de Sousa, Afonso Arinos de Melo Franco, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Viana Moog, Barbosa Lima Sobrinho, Luís Viana Filho, Hermes Lima. Não posso deixar sem uma referência, em balanço tão sumário, a ação no Jornalismo, de Elmano Cardim e Austregésilo de Athayde. Na história e na biografia: Pedro Calmon, Cândido Mota Filho, Osvaldo Orico. No campo da Ciência, os livros de Silva Melo, de defesa e valorização do homem tropical. No debate das ideias, Alceu Amoroso Lima, que desmentiu, como Silva Melo, o mito aristotélico de que a mocidade termina aos cinquenta anos. E ainda: Ivan Lins, que, na Academia, pronunciou a série memorável de conferências sobre as Cruzadas, primeiro passo da sua consagração acadêmica. No campo do ensino, o movimento da Escola Nova, com Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Anísio Teixeira. É também desses anos a nova fase dos estudos machadianos, com os ensaios de Augusto Meyer, Lúcia Miguel Pereira, Alceu Amoroso Lima, Barreto Filho, Peregrino Júnior, Eugênio Gomes, Afrânio Coutinho, Astrojildo Pereira, Brito Broca, Raimundo Magalhães Júnior.

Em fase de tão intensa vitalidade na história brasileira nos últimos quarenta anos, coube a Augusto Meyer organizar e dirigir o Instituto Nacional do Livro. Foi um administrador mais estático que dinâmico. A ação não era o seu forte. O mundo de Meyer era o da abstração. O mundo dos livros, à sombra da estante, de que tirou por sinal o título de uma das suas coleções de ensaios. “Uma biblioteca” – escreveu –

[...] é antes de tudo solidão e silêncio, o silêncio das vozes desencontradas e a solidão dos grandes ajuntamentos. Há uma estranha ironia presidindo o concílio irônico dos livros: a ironia da vida, que não cabe nos textos e desfaz com um sorriso todas as definições dos doutores sutilíssimos, todas as redes que atiramos “sôbolos rios que vão”...

Da sua inaptidão para a vida prática, das coisas mais corriqueiras da vida até mesmo domésticas, conta Josué Montello um fato verídico com sabor de anedota:

Gravemente enferma, a mulher do escritor acordou, alta madrugada, com uma dor violenta à altura do estômago. Não havendo outra pessoa em casa a quem chamar, apelou para o marido:

– Augusto, vê para mim, com urgência, um saco d’água quente.

– Sim, querida, – replicou, solícito, o mestre de Prosa dos Pagos, os pés para fora da cama, a buscar os chinelos no tapete, visivelmente nervoso.

Saiu a arrastar os chinelos, rumo da cozinha, abotoando o pijama, cabelos revoltos. Daí a pouco ouviu-se o estalo do comutador elétrico. Depois, a zoada de uma panela. Silêncio. Novo ruído de panela. Outro silêncio. O escorrer do jato d’água de uma torneira. Por fim, outro silêncio, desta vez mais longo.

Sara Meyer, as costas apoiadas nos travesseiros, cortada de dores, olhava a porta do quarto, ansiosa. E viu quando o marido voltou, com o mesmo ar atarantado, trazendo numa das mãos o saco vazio e na outra a panela.

– Então, meu filho? – indagou ela ao poeta.

E Meyer, atrapalhado:

– Minha filha, como é mesmo que se faz água quente?

Pobre Meyer! Quando a companheira morreu, era como se lhe faltassem os braços e as pernas. E o seu verso angustiado se tornou mais verdadeiro: “Eu sou o irmão das solidões sem sentido”...

Escritor e não administrador, a obra de Augusto Meyer no Instituto Nacional do Livro deixou contudo a marca da sua erudição e da lucidez com que encarava os problemas da Cultura. Doze mil bibliotecas registradas no interior do Brasil, no setor em que teve como chefe exemplar Evandro Pequeno; a Biblioteca Popular Brasileira, orientada por Sérgio Buarque de Holanda; a publicação sistemática da bibliografia brasileira, inclusive a primeira Bibliografia das Bibliografias Brasileiras, da autoria de Antônio Simões dos Reis; a edição de numerosas obras de base para a futuraEnciclopédia Brasileira e para o Dicionário da Língua Nacional, o que não é pouco. E ainda assim não é tudo. Conhecia bem a fundo os obstáculos interpostos pela burocracia, a precariedade dos recursos técnicos, a falta de formação profissional, a deficiência de verbas, em suma, a montanha intransponível de dificuldades da administração pública. Daí o desencanto que dele se apossou, em meio à gigantesca tarefa.

Meyer não tinha a vocação do burocrata. Era antes de tudo um scholar, que por um desses inexplicáveis desencontros de intelectuais desajustados ficou fora da cátedra de professor universitário. Este é que era o seu lugar. Que grande professor de Literatura Comparada não teria sido! De Literatura Comparada ou de qualquer das literaturas que versava com o mais profundo conhecimento, as Literaturas francesa, alemã, inglesa, espanhola ou italiana, a Brasileira como a Portuguesa, especialmente os clássicos, de Sá de Miranda a Camões. No entanto, não passou de um eventual professor de Teoria da Literatura, em dois ou três cursos que ministrou no Rio de Janeiro, e nas conferências que proferiu em Hamburgo e Madrid.

Retirado de Porto Alegre, vivendo no Rio de Janeiro, como diretor do Instituto Nacional do Livro, ou em missões culturais no estrangeiro, nos Estados Unidos da América, na Alemanha ou na Espanha, o escritor construiu a sua obra de ensaísta com livros todos ou quase todos de artigos de jornal, salvo o estudo dedicado a Machado de Assis (1.ª edição 1935, 2.ª 1952, 3.ª 1958), Prosa dos Pagos(1.ª edição 1943, 2.ª 1960), os estudos de análise e interpretação literárias – Le bateau ivre (1955) eCamões, o Bruxo (1958) –, ambos nascidos de um curso sobre Teoria da Literatura. Todas as demais coletâneas, À Sombra da Estante (1947), Preto e Branco (1956), A Chave e a Máscara(1964) e A Forma Secreta (1966) são obra de circunstância, requentada de suplementos ou folhetins de jornal, uma obra dilacerada e inconclusa de quem mestre Alceu Amoroso Lima, no discurso de saudação, na Academia Brasileira de Letras, chamou de “maior humanista vivo da nossa língua”. No entanto, o drama de Augusto Meyer, como o de João Ribeiro e tantos outros eruditos, é que a sua obra nem sempre dá a justa medida do grande escritor, ao mesmo tempo professor e filólogo, historiógrafo e folclorista, germanista e camonista, tradutor, lexicógrafo, jornalista, ensaísta, crítico literário e ainda por cima poeta.

Senhores acadêmicos,

Com humildade venho ocupar a Cadeira 13 para a qual desprevenidamente me elegestes. A vida é quase sempre um emaranhado de equívocos, contradições e ironias, que desde a mais remota meninice procuro em vão desembaraçar, sem muitas vezes entender o significado das derrotas ou das vitórias. Aqui cheguei para trabalhar e para servir, pois jamais alcancei qualquer posição que fosse gratuita ou ornamental. A Academia deu o maior prêmio que poderia ambicionar o biógrafo de um escritor que tanto a desejou e foi por ela duas vezes repelido. De uma delas, para esta mesma Cadeira 13, o seu pedido de inscrição na vaga de Sousa Bandeira nem sequer foi considerado.

Afonso Henriques de Lima Barreto, o grande romancista carioca da Primeira República, tão maltratado pela vida, nem por isso deixou de acreditar nos homens e até na Academia, malgrado o seu irredutível agnosticismo. “O Acaso” – escreveu, pela boca de um dos seus tranquilos personagens, o hierático Gonzaga de Sá –, “o Acaso, mais do que qualquer Deus, é capaz de perturbar imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar da nossa ciência e da nossa vontade. E o Acaso não tem predileções...”

Na data de hoje, Lima Barreto completaria noventa anos. Era um ano mais velho que Levi Carneiro, altaneiro jequitibá da Academia.

Nem pessimista, nem otimista em demasia, gravitando no meio-termo, desconfiado, não sei se defeito ou qualidade da gente da minha região, o vale do Paraíba, da área paulista, sou dos que não creem em bruxas, mas tenho as minhas dúvidas. Que las hay, las hay... Com relação ao número treze, não guardo reservas. Começo por tomar posse num dia treze, no décimo terceiro ano da presidência de Austregésilo de Athayde, grande administrador, que, todos sabemos, tem o corpo fechado a inimigos encarnados e desencarnados. Cresci com as “trezenas” a Santo Antônio, que diz o povo são infalíveis para afastar os malefícios das pragas e abusões. A cidade em que nasci, onde passei a infância e parte da mocidade, se escreve com treze letras. No dia 13 de junho festejamos o nosso padroeiro, Santo Antônio, “por ser o santo mais nobre”, conforme ensina a sabedoria popular:

São João a 24
São Pedro a 29,
Santo Antônio é a 13,
Por ser o Santo mais nobre.

O 13 de maio é a data mais generosa da história da nossa Pátria, a data da igualdade das raças, ao abolir a iniquidade da escravidão. No dia de hoje, o povo brasileiro reverencia a memória da Princesa Isabel, acompanhando pelo rádio e pela televisão a cerimônia do solene depósito das suas cinzas e as do seu marido, o Conde d’Eu, no mausoléu da catedral de Petrópolis.

Outra lembrança que me é grata recordar aqui: o jantar do dia 13, instituído pelo nosso irmão maior Ribeiro Couto, tão grande poeta como prosador. Amigo incomparável, era o homem cordial em pessoa. Tinha o dom da sociabilidade. Gostava de noitadas literárias, reunindo na mesma mesa os velhos e os novos amigos, confraternizando veteranos e calouros, à base de bacalhau e vinho verde. Na Bella Napoli, na Açoriana ou no Tim-Tim-por-Tim-Tim, restaurantes que já desapareceram na poeira dos anos, o encontro era sempre no décimo terceiro dia de cada mês. Dos convivas dessas reuniões pertenciam à Academia Ribeiro Couto e Múcio Leão. Manuel Bandeira, já glorioso cinquentão, não tardaria a vestir o fardão aurifulgente, uma única vez, no dia da posse, tornando-se mesmo de casaca ou paletó saco o mais perfeito dos imortais. Vieram depois Peregrino Júnior, Magalhães Júnior, Afonso Arinos e Odylo Costa, filho. Sou portanto o sexto da turma. Ficamos aguardando outros comparsas: Sérgio Buarque de Holanda, Dante Milano, Luís Martins, Hélio Viana, Paulo Rónai. Mas não posso deixar de lembrar aqueles que não podem mais ser candidatos: Martins Castelo, Amadeu Amaral Júnior, Rafael Barbosa, Joaquim Ribeiro, Dante Costa.

Ser o sexto, pouco importa. O perigoso é ser o sétimo de uma Cadeira, a de número treze, a mais povoada de sombras, nesta Casa ilustre, e que um dos seus ocupantes, Hélio Lobo, chamou de Cadeira Fatídica, o que não o impediu de nela ter ficado ao longo de quarenta anos, muito mais tempo do que Catarina, a Grande, no trono da Rússia. Sete e treze são números cabalísticos. Confio na aproximação de ambos.

A honra de pertencer à Academia envolve um compromisso: o da fidelidade às normas de convívio não direi apenas da vossa companhia, fidelidade também ao espírito da unidade literária, que é o que sugere Machado de Assis, no discurso inaugural: conservar sempre “no meio da federação política, a unidade literária”. A Cadeira 13 nasceu aquecida pelo sol da Guanabara, passou depois para a Bahia, em seguida Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, chegando agora a vez de um paulista de Guaratinguetá e carioca de adoção.

Sou acima de tudo brasileiro. Um caipira do vale do Paraíba, que não dispensa virado de feijão, angu e cambuquira. Mas com o curso completo da Praça Onze, Lapa, Catete e arredores. Impregnei-me do sentimento nacional desta nossa querida cidade de São Sebastião. Como Manuel Bandeira, carioca do Recife. Eneida, carioca de Belém do Pará. Silva Melo, carioca de Juiz de Fora. José Olympio, carioca de Batatais. O Rio dilui todos os bairrismos e querências. O meu federalismo me faz assim um pouco de Belo Horizonte e Diamantina, da Bahia de Todos os Santos, do Recife e da Paraíba, de Natal, Fortaleza e Maranguape, de São Luís do Maranhão, Belém do Pará e Manaus, de Curitiba e Porto Alegre, de São Paulo e São Luís do Paraitinga, de Goiânia e de Brasília, a jovem capital erguida no sertão pelo grande Presidente Juscelino Kubitschek.

Taunay, carioca dos mais autênticos, imbuído do mesmo sentimento nacional, escolheu para patrono da sua Cadeira uma das maiores figuras do liberalismo fluminense, Francisco Octaviano de Almeida Rosa, o grande político e jornalista, padrinho literário do fundador, ao escrever o prefácio de Inocência (1872). Patrono e fundador defenderam na imprensa e no parlamento as reformas que o Império transferiu à República: o casamento civil, a grande naturalização, a separação da Igreja do Estado e a liberdade de cultos.

Da mesma linhagem liberal são todos os demais titulares: Francisco de Castro, Martins Júnior, Sousa Bandeira, Hélio Lobo, Augusto Meyer.

Ainda perplexo diante da vossa generosidade, olho para o passado, olho em torno, olho para a frente. Posso sentar-me na Cadeira 13?