Os muitos anos vividos, que me tornam mais próxima dos 100-ainda-raros do que dos 90-agora-quase-banais, concedem-me várias prerrogativas. Dentre elas a que agora quero exercer: quebrar protocolos.
Assim, nestas palavras de acolhida ao mais novo membro da ABL, opto por deixar de lado o longo e pomposo discurso recheado de justos elogios a uma carreira brilhante de jornalista, professor e escritor, coroada de vários prêmios, para privilegiar um breve testemunho pessoal, único e intransferível.
Deixo de lado a enumeração dos muitos títulos que assinou, dos muitos cargos que ocupou e das muitas ações decisivas que ousou em momentos cruciais da vida política brasileira, para me deter nos elos de afeto que me unem indissoluvelmente ao querido amigo. Sobre o muito que fez, sobre os muitos caminhos que abriu, sobre as corajosas atitudes que tomou, sobre as opções éticas que defendeu, sobre a sua gigantesca bibliografia, estão aí, disponíveis para consulta e análise, incontáveis páginas de jornais e revistas, frutos da pesquisa acurada de repórteres ou das várias entrevistas a que ele próprio respondeu – tudo ao alcance de um click internético. Tudo a comprovar, em minúcias, essa trajetória singular e plural, de vida e obra superlativas, que largamente justifica sua eleição para esta “Casa de Machado de Assis”. Mas, sobre a amizade longa e firme que construímos, plena de nuances delicadas, só eu posso dizer como a sinto e o quanto ela me faz bem. Eis porque dela agora evoco fragmentos.
Zuenir. Zuenir Ventura.
É um nome fora do comum. Muito fora do comum. Tão fora do comum, que me fez cometer uma gafe diante de uma de minhas antigas turmas. Porque Zuenir foi primeiro um nome numa lista de alunos que eu teria numa classe, lá se vão décadas, na Avenida Antônio Carlos, 40, 8o. andar, sala 81. Era a nossa sala, com uma vista lindíssima do mar. Acontece que eu entrei na sala de aula, cumprimentei os estudantes, e comecei a fazer a chamada. Naturalmente, a última pessoa da lista chamava-se Zuenir, porque “Z”, ainda mais seguido de “u”, só podia ser a última pessoa da lista. Mas, chegando a Zuenir, Zuenir não respondeu. Faltou. Muito bem.
Na segunda aula, o mesmo ritual. “Zuenir Ventura”. E ninguém respondeu. Eu então, voltei-me para a turma e indaguei: “alguém aqui conhece essa menina?”, e as pessoas disseram: “não, não conhecemos; só achamos o nome estranho.” Não protestaram quando eu disse “essa menina”, o que era muito de esperar, uma vez que Zuenir é um nome que pode ser masculino ou feminino, e, para mim, numa classe onde predominavam moças, era feminino, era uma menina e que estava faltando à segunda aula. Disse então à turma: “Vou pedir-lhes um favor. Se encontrarem esta menina, digam-lhe que ela me procure para conversarmos. Quero saber se ela vai frequentar o curso ou não, para não começarmos já com o lançamento de faltas.”
Na terceira aula, eu chamei Zuenir. Levanta-se um rapaz de quase dois metros e responde: “Sou eu”. Eu disse: “o quê? você é Zuenir?”. E ele: “por que esse espanto, Professora?”
– Porque eu pensei que você fosse uma menina!
– Não, e a senhora não é a primeira pessoa. Este meu nome é uma fatalidade. Eu não sei por que o puseram em mim... Eu já fui tratado de menina em vários lugares. E agora, aqui, uma professora da minha universidade também me julga menina...
– Não, Zuenir! Acabou hoje! Daqui por diante, não há dúvida. Vou chamá-lo de rapaz, com toda a consciência de que está diante de mim um rapaz.
Achei graça na situação, mas creio que ele ficou meio encabulado – aliás, eu também, ficamos ambos encabulados, cada um por seu motivo, e comecei a aula.
Bom, o curso se iniciava sob os auspícios de uma certa hilaridade, que parou por ali. Na aula seguinte, Zuenir Ventura, com seu metro e quase dois, novamente estava presente e respondeu à chamada. Fiquei feliz, ele me cumprimentou, eu o cumprimentei, os colegas o cumprimentaram, foi um acolhimento coletivo.
Certo é que esta passagem divertida ficou na nossa lembrança, de todos nós, e eu tenho certeza de que está na lembrança de Zuenir. Com certeza absoluta. Absoluta.
A participação dele em classe foi sempre muito boa. A aula era no final do expediente, permitindo-lhe ser assíduo, porque, àquela época, ele já trabalhava como jornalista. Era muito atilado e muito atento. Olhava firme na minha direção e não cessava de tomar notas.
Findos esses tempos, mantivemos sempre contato, menos próximo até o momento em que Zuenir publica, perto de um aniversário meu, uma crônica intitulada “A Divina Cléo”.
Eu não a tinha visto, não tinha tido tempo ainda de abrir o jornal, mas logo de manhã fui assaltada à entrada da sala: “então, agora é divina, não é?”. Eu disse “o quê???”
– Agora é di-vi-na.
– Que brincadeira é essa? Brincadeira engraçada, mas um pouco sem jeito...
– Não! Foi o Zuenir que escreveu no jornal – esclareceram vozes familiares. Agora é “A Divina Cléo”.
Telefonei para ele: “você enlouqueceu, rapaz? Que é isto? Que divina? De onde você tirou essa minha divindade?” Então ele me dá umas respostas espirituosíssimas, dá boas gargalhadas, eu também dou outras do lado de cá, e nossa amizade se apertou mais. E desde aí Zuenir é presença indispensável na comemoração anual do meu natalício, que os amigos insistem em promover.
Eu bem sabia que ele gostava de Portugal (não tanto quanto eu...) e que Portugal gostava dele (não tanto quanto de mim...). Mas, há uns meses, numa palestra que proferiu no Real Gabinete Português de Leitura, fui agradavelmente surpreendida com a notícia de que fora o primeiro jornalista estrangeiro a cobrir a “Revolução dos Cravos”, em abril de 74. Encantou-me ouvir seu testemunho sobre o despontar alegre da democracia quase meio século depois da tirania salazarista. Conhecendo os fatos somente pela página impressa ou por depoimentos portugueses, a palavra viva de Zuenir, num olhar brasileiro, trouxe-me perspectivas que, talvez um dia, eu use em alguma aula ou algum paper... E não deixarei de citar seu nome nas referências bibliográficas.
A sua candidatura à Academia foi primeiro uma surpresa para mim. Depois, já eleito, uma satisfação imaginar que agora estaremos juntos pelo menos uma vez por semana, pois, decerto, não faltará às 5as. feiras, como a velha mestra.
Eu já tinha quatro ex-alunos na ABL: uma, Ana Maria Machado, minha aluna na faculdade, em tempos do governo militar. Sempre distinta e encantadora, eu e meu marido dávamos-lhe carona todos os dias, após a aula, sem adivinharmos que se tornaria a escritora laureada que hoje é.
Outro, foi aquele que, pela primeira vez, me fez pensar em entrar para esta nossa ABL: Antonio Carlos Secchin, também meu aluno na UFRJ, dos anos 70. Embora encantado por Fernando Pessoa, dedicou-se por completo à Literatura Brasileira, onde atua exemplarmente. Mas, enfim, estamos em áreas conexas, já que a poesia sobremodo nos atrai...
Outro querido ex-aluno, ainda dos bancos da FNFi, também professor de renome na Literatura Brasileira, é o Domício Proença, aliás colega de turma do Zuenir. Para sua posse, mandou-me um convite especial, com direito à primeira fila dos convidados, exemplificando a gentileza com que sempre me distinguiu.
E há ainda aquele que me veio lembrar ser, ele mesmo, o mais antigo dentre todos os ex-alunos: Afonso Arinos de Melo Franco, a quem dei aulas no colégio Melo e Souza, num tempo que antecedeu minha entrada no magistério universitário. Era eu ainda uma jovem professora de Português e Latim, longe de imaginar que neste píncaro nos reencontraríamos.
Todos “imortais”, como agora Zuenir é “imortal”. Um título que, confesso entre parênteses, acho meio desagradável. Imortal eu sempre acreditei que era desde o dia em que me batizaram. Então, não é a imortalidade da Academia, com seus verdes louros, que vai alterar a minha anteriormente ganha imortalidade... Como preconiza Fernando Pessoa, pela voz apolínea do heterônimo Ricardo Reis,
Grinalda ou coroa
É só peso posto
Na fronte antes limpa.
Grinalda de rosas,
Coroa de louros,
A fronte transtornam.
Que o vento nos possa
Mexer nos cabelos,
Refrescar a fronte!
Que a fronte despida
Possa reclinar-se,
Serena, onde durma.
Cloé! Não conheço
Melhor alegria
Que esta fronte lisa.*
Finalizando, uma palavra que eu sei que Zuenir gostará de ouvir. E não pensem que é a declaração pública do quanto aprecio seus livros e suas crônicas... Isso ele bem o sabe, há muito tempo...
Declaro, sim, é que eu ADORO a Alice! Alice é a netinha dele, e ele põe a Alice em muitos dos seus textos, em programas seus, em tudo que lhe parece importante. Alice vai com ele a todos os lugares. E como eu sou uma avó, bisavó e trisavó corujíssima, eu entendo perfeitamente o Zuenir... Entendemo-nos no campo dos avoengos. Então, vejam lá, Alice é mais um elo que nos une. Ou seja, tudo nos une, nada nos separa. Inclusive a ABL...
E eu lhe desejo, Zuenir, todas as felicidades do mundo dentro desta nossa Academia, onde você agora se torna meu confrade, meu confrade dileto, que, além de tudo, integra o grupo dos meus ex-alunos.
Bem vindo, Zuenir! E, relembrando versos muito conhecidos do velho amigo Manuel Bandeira, um Confrade que aqui nos precedeu, digo convicta: Entre, Zuenir, você não precisa pedir licença!