Homenageado pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, Marques Rebelo, famoso e admirado em vida, amarga o esquecimento literário
Alvaro Costa e Silva
Um nome sempre lembrado quando se fala de autores esquecidos é Marques Rebelo. O centenário de seu nascimento, no ano passado, passou quase em branco, não fossem a realização de um mesa de debates na Academia Brasileiras de Letras, à qual pertenceu, e o lançamento do Guia antiturístico do Rio de Janeiro, reunião de colunas publicadas no jornal Última Hora nos anos 60. Bem pouco para um escritor que é citado na luxuosa galeria dos romancistas cariocas da gema, na linha sucessória de Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto.
Com algum atraso, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, com sede em Brasília, presta uma homenagem com a publicação de Nove contos de Marques Rebelo, que traz desenhos do artista plástico Orlando Mollica (um deles ilustra esta página). Da seleção, constam alguns dos melhores contos do escritor: "Stella me abriu a porta", "Na Rua Dona Emereciana", "Labirinto" (predileto de Rebelo), "A árvore". Este foi o último que escreveu, em 1967, de encomenda para uma coletânea sobre bairros cariocas – coube-lhe Laranjeiras – com parágrafos quilométricos, antecipando no estilo e no tema as melhores páginas das memórias de Pedro Nava. Infelizmente, é uma edição fora do mercado, com exemplares numerados de 000 a 350, só para confrades e confreiras.
Obra em catálogo
As principais obras de Marques Rebelo continuam no catálogo da Nova Fronteira: os romances Marafa e A estrela sobe (filmado por Bruno Barreto em 1974, estrelando um deliciosa Betty Faria no papel da aspirante à cantora Leniza Mayer), a trilogia Espelho partido, a novela O simples coronel Madureira, os Contos reunidos, as Melhores crônicas. Portanto, à disposição de quem o queira descobrir ou reavaliar sua trajetória.
Ele nasceu Eddy Dias da Cruz, em Vila Isabel, a 6 de janeiro de 1907. Mas achava Eddy Dias da Cruz um bom nome para compositor de escola de samba, não para escritor, daí o pseudônimo.
Quem lhe traçou o perfil, no livro Subsidiário - extravagante mistura de memórias, confissões e diários – foi o escritor Herberto Salles (este, sim, está completamente esquecido). Herberto morou, ao chegar ao Rio, no apartamento de Rebelo (que também o ajudou a publicar o primeiro romance, Cascalho). Era na Praia de Botafogo, 48, edifício Duque de Caxias, chamado de "chocadeira acadêmica", porque lá também passou o futuro acadêmico R. Magalhães Jr., em cujo apartamento foi depois morar o futuro acadêmico Álvaro Lins, que teve como vizinho o futuro acadêmico Aurélio Buarque de Holanda. É de imaginar o que tão ilustres literatos tramavam entre quatro paredes.
Herberto Salles, outro futuro acadêmico, conta que Marques Rebelo odiava relógio de pulso, usava boina e cachecol no inverno e, no verão, às vezes chapéu, mas quase sempre andava em pêlo com o corte de cabelo escovinha, cortado rente, hábito trazido dos tempos da caserna e do boxe amador. Usava óculos de tartaruga. Almoçava cedo e rápido: legumes, omelete, batatas fritas e bife. Goiabada de sobremesa. E então saía, para falar com Deus e o mundo. Era freqüentemente reconhecido nas ruas do Rio. À noite, ouvia Beethoven e jogava xadrez (chamava Capablanca de imbecil). Sadio por futebol, dizia que o dia mais feliz da sua vida foi 13 de dezembro de 1960, quando o América conquistou o Campeonato Carioca (aliás, o último da história do clube).
Herberto o chamava de "um dos sete cariocas do Rio". Os outros seis, quem seriam?
Inimigo número 1
Nos anos 30, Marques Rebelo também era classificado de "inimigo número 1 dos escritores do Norte". Na verdade, era mais uma implicância, uma birra, um pinimba, ou não teria acolhido em sua casa o baiano Herberto Sales. Seu alvo predileto era o paraense Osvaldo Orico (outro de que ninguém mais se lembra), que assinava com as iniciais O. O. Para Rebelo, era o double zero.
Um fim de tarde, na livraria José Olympio, os dois se esbarraram e não houve jeito: fúria desordenada, enxurrada de palavrões, tapas e empurrões. O entrevero só terminou com a intromissão de Sílvio Peixoto, neto e biógrafo de Floriano, que, ex-remador do Flamengo, botou moral no pedaço. No fim das contas, Rebelo, apesar de ex-pugilista, apanhou mais do que o corpulento Orico. Juízo do alagoano Graciliano Ramos que, de seu canto pintando um cigarro, a tudo assistiu. Aliás, Graciliano era fã de carteirinha do conto "Na Rua Dona Emereciana". Sabia trechos de cor e os recitava na livraria.
Em forma de diário
Por que então o perdurante ostracismo de Marques Rebelo? Uma explicação possível está no seu mais ambicioso projeto: "Um comprido romance, cuja ação fosse tão monótona como a nossa vida". Fragmentário, em forma de diário, com mais de 200 personagens, O espelho partido, na cabeça do autor a que ele dedicou até o fim da vida, em 1973, teria, proustianamente, sete volumes. Apenas três foram publicados: O trapicheiro, A mudança e A guerra está entre nós, abrangendo os anos entre 1936 e 1944.
Típico roman-à-clé, um de seus principais temas é a vida literária no Rio da época. Muitos artistas e escritores aparecem sob nomes fictícios, entre eles Lasar Segall, Tristão de Athayde, Jorge Amado, Augusto Frederico Schmidt, Carlos Lacerda, José Lins do Rego, Álvaro Lins, Rachel de Queiroz, Cândido Portinari, Cyro dos Anjos, Santa Rosa, Otto Maria Carpeaux, Paulo Rónai e outros.
Nem sempre o disfarce funciona, e é fácil reconhecer na pele do personagem Guilherme Grunberg a figura real do arquiteto Oscar Niemeyer, ou na do "famoso sociólogo" que vive a dizer coisas óbvias o sotaque de Gilberto Freyre. O "poeta" é obviamente Manuel Bandeira.
A vaidade dos homens é grande. O rancor pode ser ainda maior.
Jornal do Brasil (RJ) 29/3/2008
31/03/2008 - Atualizada em 30/03/2008