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No velório, Secchin lembra o lado poeta de Cacá Diegues

 

O Secretário-Geral da Academia Brasileira de Letras, Antonio Carlos Secchin, lembrou o lado poeta do Acadêmico Caca Diegues, morto na última semana no Rio, durante o velório realizado no Petit Trianon.

Confira o texto:

Cacá Diegues não foi apenas um ser humano admirável. Grande cineasta e pensador do Brasil, foi também um homem que honrou esta casa, desde sua posse na cadeira 7, em 2018. Cadeira marcada por um sopro épico que nasce com o patrono Castro Alves, prolonga-se no seu segundo ocupante, Euclides da Cunha e desemboca em seu antecessor imediato, o igualmente cineasta Nelson Pereira dos Santos, diretor da antiepopeia Vida Secas, com quem Cacá partilhou algumas afinidades: ambos roteirizaram obras de Jorge Amado; ambos exploraram a potencialidade da cultura popular por meio de uma refinada arte cinematográfica.

Lembro-me do encanto com que, adolescente, assisti, no extinto metro-copacabana, a A Grande Cidade, de 1966. E quantos outros filmes de Cacá, expoente do Cinema Novo, não encantariam as plateias do Brasil e do mundo! Sem ser exaustivo, recordo Joana, a Francesa, de 1974; Bye Bye Brasil, 1980; Quilombo, 1984, Orfeu, 1999. Destaco uma obra-prima insuficiente valorizada, O Grande Circo Místico, de 2018, adaptação personalíssima e barroca de um poema de Jorge de Lima.

O poeta, alagoano como Diegues, foi uma das três paixões do cineasta, numa devoção que só encontrava paralelo no seu amor pelo Botafogo e pela esposa e musa Renata Almeida Magalhães. Do Hino do Botafogo, cito um trecho que transfiro a Cacá; “Tu és Glorioso”.

Neste espaço que, em escala superlativa, simboliza a celebração das Letras, gostaria de destacar uma faceta menos conhecida do talento de Cacá: a de poeta. No fervilhante ambiente cultural de fins da década de 1950, foi acolhido por Mario Faustino como uma das mais promissoras vocações para a poesia, e 12 de seus poemas foram estampados com destaque nas páginas do prestigioso Suplemento Dominical do Jornal do Brasil.

Por algum tempo, insisti junto a Cacá para que retornasse ao verso, e cedesse os poemas para a divulgação em nossa Revista Brasileira. Ele pareceu receptivo à proposta, mas, absorvido por incessantes demandas profissionais, acabou não levando adiante o projeto. Uma pena, pois constataríamos que, além de poeta das imagens, Cacá também foi, ou poderia ter sido, um qualificado poeta das palavras.

No comovente discurso de posse, Cacá relata o deslumbramento que representou, aos 5 anos, sua primeira ida ao cinema. Posteriormente se cumpriria a frase então proferida pela tia que o acompanhava: “Não bote a mão na tela, menino, que sua mão fica lá, presa para o resto da vida”. Numa versão brasileira do mito do rei Midas, Cacá transformava em cinema tudo aquilo em que botava a mão.

Em homenagem a seu extremado amor à literatura, recorro, de novo, a Jorge de Lima. Sobre o poeta, Cacá proferiu excelente palestra, disponível nos arquivos da Casa. Se Glauber Rocha, a sério, se considerava a reencarnação de Castro Alves, não diria o mesmo de Cacá em relação a Jorge, inclusive porque, num certo período, ambos coexistiram na face da Terra, e uma alma teria dificuldade em se acomodar simultaneamente em dois corpos.

Mas não deixo de observar que o primeiro filme de Cacá, Ganga Zumba, de 1964, narra uma fuga de escravos para o Quilombo de Palmares, e que o primeiro livro de Jorge, XIV alexandrinos, de 1912, contém o soneto “Zumbi”.

Nesta cerimônia de despedida física deste grande artista, invoco, portanto, Jorge de Lima, para que seus versos sejam a voz de Cacá Diegues, num possível epitáfio:

Mel silvestre tirei das plantas,

Sal tirei das águas, luz tirei do céu.

Só tenho poesia para vos dar.

Abancai-vos, meus irmãos.

Cacá Diegues, para sempre!

18/02/2025