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Adélia manda poema de agradecimento para ABL

 

A poetisa Adelia Prado não pode receber pessoalmente o prêmio Machado de Assis, na última quinta-feira, dia 18, mas mandou um presente para a ABL: um lindo poema, lido por sua filha, Ana Prado, na cerimônia.

Queridos amigos, família, acadêmicos, todos que amam a poesia.

Pensando em como expressar minha gratidão pela honraria que a Academia Brasileira de Letras me concede, o Prêmio Machado de Assis, lembrei-me das palavras inspiradas do poeta polonês Czeslaw Milosz:

Em sua essência, a poesia é algo horrível: nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós, e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre, e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.

Essa terrível imagem nos suspende e nos obriga, de modo gozoso e novo, a uma rendição ao maravilhoso fenômeno da poesia.

Ela não é enredo, não é tema, não é comentário, não tem gênero, fraterna, solidária. Qualquer coisa é a casa da poesia. Ela alimenta. Mora onde lhe apraz.

É uma experiência religiosa – o impacto da leitura de um texto sagrado, um olhar amoroso sobre você, ou olhar formigas trabalhando. O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isso é o sagrado. É Deus. É Seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. A única via para a realidade chama tudo e todos a um centro humano divino. É comunhão.

Nesta noite, estamos em comunhão, congregados pela poesia. Assim, quero encerrar minha fala oferecendo a vocês o que tenho de melhor: um poema.

MISERERE

Eu desenhava no papel de seda uma flor de cinco pétalas quando me ocorreu a vingança contra os donos do mundo.

Tentando versos com que vos narrar minha trama, adormeci sentada, o queixo desabado no peito.

Coitada, diríeis, é aquela que vimos esbravejar no seminário?

Cismei que adoecia e procurei o médico.

Ele não foi perspicaz.

Auscultou, profissional, minhas cavidades e prescreveu ginástica, redução de calorias, vida calma.

Doía tudo. Aqui dói, doutor, aqui também.

É certo que o senhor nunca deglutiu pedras, mas, afianço-lhe, mesmo a água que bebo é indigesta coisa sólida no meu bucho.

Ele precaveu-se, intimidado pela minha fluência, pelo manuseio intimorato que dispenso às palavras.

Dependendo da atividade intelectual, da sensibilidade de cada um, tais sintomas ocorrem, minha senhora.

E mostrou as garras, defensivo, mais uns grãos de enfado.

Eu não estava doente. E estava muito.

O medo de morrer, habitualmente grande, trinta vezes aumentado.

Comecei a rezar no registro dos náufragos:

Perdoa-me, Senhor. Lembra-Te de que és meu Pai.

Como gostaria de nascer de novo e começar tudo generosamente.

Olha pelos filhos que deixarei, por meu marido que talvez não se case mais.

Onde achará, neste lugar pequeno, outra mulher que lhe ofereça tantos motivos pra mortificar-se?

Passeava na casa, amargando a saudade prévia dos seus cantos.

Doía tudo, até que, até que nada, não dói mais.

Recolhi-me ao corriqueiro estatuto de comer, dormir, lavar-me, recuperado o saudável desejo de que se fodam bem determinadas pessoas em suas empresas.

Continuo passando a língua no molar obturado, desgostosa, porque se não sou eu a cuidar da cozinha, uma lata de óleo é a conta de dois dias.

Confesso-vos: quando comecei a escrever, o que eu queria era fazer um teatro.

Fostes salvos do sacrifício de uma opinião por este grito que me interrompeu: acode aqui, dona Wíllia, o seu cachorro deu convulução!

Judith entrou de noite no acampamento inimigo e decapitou Holofernes.

Pergunto-vos, sem que nos ouçam os fracos e os ímpios: poderia eu também?

Não durmo porque nada se exaure, requerendo atenção, matança, oferta de comida, futuros de paz, empregos; e eu tenho um corpo talhado para prazeres só e guerra. Posso? Comer? Dormir? Gostar de homens?

Louvar-Vos — em perfeita alegria — neste tempo cinzento e pegajoso?

Não é possível conseguir a atenção de uma cidade inteira — há misteres inadiáveis nos banheiros, nas casas com menino pequeno — nem silêncio. Há os aparelhos eletrônicos e as línguas compridas.

Mas duzentas pessoas numa sala, com olhos fixos na cena, verão que a vida é doida, doida, que o ser humano até hoje está sem calças, que Deus é bom e duro.

Que Jesus Cristo quando ri alucina as pessoas e atrai a todos quando diz: AMAI-VOS. Eu estou apaixonada. Ó meu Deus, me ajuda a escrever um drama.

Muito obrigada.

ADÉLIA PRADO

22/07/2024