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ABL na mídia - Revista Pesquisa - Gramático aproximou a norma culta do uso popular

 

Na adolescência, Evanildo Cavalcante Bechara cogitou ser engenheiro, mas logo tomou o rumo das ciências humanas. Gramático, filólogo e educador, ele ganhou notoriedade com a Moderna gramática portuguesa. Lançada em 1961, a obra tornou-se referência em escolas de ensino básico, cursos pré-vestibulares e universidades – é uma das mais citadas em dissertações e teses sobre a língua portuguesa –, além de constar da bibliografia obrigatória de concursos públicos. O título está na 40ª edição, que contou com acréscimos de fonética feitos pelo professor, filólogo e acadêmico Ricardo Cavaliere. Bechara morreu no dia 22 de maio, aos 97 anos, no Rio de Janeiro.

Seu grande mérito, segundo especialistas, foi estabelecer uma ponte entre duas abordagens de estudo da linguagem, historicamente vistas como antagônicas: a gramática e a linguística. “Bechara atuou nas duas frentes de trabalho e, graças a ele, essa distinção tornou-se irrelevante”, afirma o linguista Ataliba Teixeira de Castilho, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

Para Marcelo Módolo, professor de Filologia e Língua Portuguesa da USP, a morte de Bechara não representa apenas o encerramento de uma trajetória pessoal longeva e produtiva, mas também sinaliza o esvaziamento de uma linhagem de gramáticos cuja atuação conciliava a normatividade da língua com uma escuta atenta às dinâmicas do uso e da variação.

“Ele privilegiava a norma culta, mas não era ortodoxo e assimilou também o popular, o informal”, observa Sírio Possenti, do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp). De acordo com o pesquisador, a Moderna gramática portuguesa traz vários exemplos nesse sentido. “Quando trata da forma passiva sintética, Bechara rejeita a exigência do verbo no plural. Isso porque, para o falante, no dia a dia, o que era sujeito passou a ser entendido como objeto direto”, explica. “Ou seja, a Moderna gramática portuguesa aceita tanto ‘vendem-se casas’ como ‘vende-se casas’.”

Como imortal – e não imorrível, conforme gostava de dizer – da Academia Brasileira de Letras (ABL), Bechara presidiu a Comissão de Lexicografia e Lexicologia da instituição de 2017 a 2023. Na oportunidade, coordenou projetos a exemplo do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (Volp), que, em sua última edição, de 2021, reúne 382 mil verbetes. A primeira versão do Volp, organizada pelo filólogo Antônio Houaiss (1915-1999), saiu em 1977.

Bechara foi o representante brasileiro no acordo ortográfico feito com Portugal, que entrou em vigor no Brasil em 2009. “Ele exercitou ali sua vocação pacificadora, levando para a ABL uma visão mais atualizada e científica do que vem a ser a ortografia, tudo isso de forma civilizada, sem confrontos desnecessários”, diz Castilho.

O gramático é ainda lembrado pela erudição e pela acessibilidade. “Se tivesse tempo na agenda, ele não recusava um convite para participar de eventos sobre língua portuguesa, fosse em escolas no subúrbio do Rio de Janeiro ou em seminários na Europa”, conta José Carlos de Azeredo, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Era um grande palestrante, discorria de improviso sobre o tema, sempre de forma pausada, mas sem hesitações.”

Bechara nasceu em 26 de fevereiro de 1928 no bairro de São José, centro do Recife, onde passou a infância. O pai sustentava a mulher e os cinco filhos como comerciante, mas após sua morte precoce, antes de completar 30 anos, a família se desestruturou.

Evanildo, o primogênito, foi enviado por volta dos 12 anos ao Rio de Janeiro para morar com o tio-avô, que era capitão do Exército. Como queria ser engenheiro, o jovem teve a ideia de dar aulas particulares de matemática enquanto cursava o ginasial, mas só apareceram alunos de português e latim, as disciplinas que mais reprovavam na época.

Com cerca de 15 anos conheceu a obra Lexeologia do portuguez historico, publicada em 1921, do filólogo Manuel Said Ali (1861-1953), de quem se tornaria pupilo. “Depois dos nossos encontros, geralmente de uma a duas horas, eu saía e ficava no hall do edifício anotando o que ele tinha me dito para não perder nada”, lembrou o gramático no artigo em primeira pessoa que escreveu para o livro Homenagem: 80 anos de Evanildo Bechara, lançado em 2008 pela Nova Fronteira.

Segundo Dieli Vesaro Palma, do Departamento de Português da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e uma das organizadoras do livro, logo após ter contato com a obra de Said Ali, o adolescente Bechara solicitou por telefone um encontro na casa do filólogo.

“Said Ali aceitou recebê-lo e perguntou se ele tinha algo escrito. Bechara apresentou um ensaio sobre os fenômenos da entonação. Ao perceber o potencial do garoto, Said Ali passou a dar-lhe aulas de alemão e a explicar a história das palavras à medida que iam lendo clássicos da língua portuguesa”, relata Palma. “Said Ali foi uma grande influência para Bechara, que herdou do mestre o gosto pelas análises profundas e pela busca exaustiva de fontes.”

Concluído o ginásio, Bechara cursou o primeiro ano do atual ensino médio no Instituto La-Fayette, no Rio de Janeiro. Ciente das dificuldades financeiras do aluno, o diretor contratou o jovem para ser professor particular de outros colegas do instituto. Aos 17 anos, após apresentar na escola o trabalho sobre os fenômenos da entonação, o mesmo que havia impressionado Said Ali, Bechara ganhou acesso antecipado ao vestibular para letras neolatinas da Faculdade La-Fayette (um dos núcleos fundadores da Uerj), no qual ficou em terceiro lugar. Tornou-se bacharel em 1948.

Mais tarde, em 1954, Bechara passou em concurso para professor horista de língua portuguesa no Colégio Pedro II. Costumava destrinchar em sala de aula os contos do seu autor de cabeceira, o escritor maranhense Coelho Neto (1864-1934). Palma, da PUC-SP, conta que, para incentivar os alunos a escreverem, Bechara disponibilizava na primeira aula 40 diferentes temas de redação, mas deixava os estudantes livres para discorrerem sobre o que desejassem.

Em 1964 foi ser assistente do filólogo e linguista Antenor Nascentes (1886-1972) na cátedra de filologia românica da atual Uerj. Na mesma instituição, concluiu o doutorado, quatro anos depois. Bechara lecionou na Uerj até 1992. Além disso, ministrou a disciplina de língua portuguesa na Universidade Federal Fluminense (UFF), de 1976 a 1994.

Na Europa, atuou como professor visitante de língua portuguesa do Instituto Românico, em Colônia (Alemanha), de 1971 a 1972. Passou também pela Universidade de Coimbra, em Portugal, onde lecionou sintaxe e semântica entre 1987 e 1989. Por indicação unânime dos catedráticos da instituição portuguesa, recebeu o título de doutor honoris causa em 2000.

“Bechara era um excelente professor”, comentou João Corrêa-Cardoso, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, a Pesquisa FAPESP. “Ele escreveu à mão uma série de apostilas para material de apoio às suas aulas. Nelas, abordava o português europeu e do Brasil. São preciosidades.” Isabel Poço Lopes, da Universidade de Coimbra e da Universidade Politécnica de Macau, na China, foi aluna de Bechara e teve acesso às apostilas. “Era um homem compreensivo e preocupado com os seus alunos. Para democratizar o material, ele permitiu que eu datilografasse o conteúdo e o disponibilizasse a todos os meus colegas”, contou a Pesquisa FAPESP.

A proposta de democratizar o acesso a textos também permeou sua ação na ABL, na qual ocupou a cadeira 33 a partir de 2001. Bechara criou ali a Coleção Antônio de Morais Silva para publicar estudos linguísticos. O nome da coleção homenageia o autor do primeiro dicionário monolíngue em língua portuguesa, publicado em 1789 – até então os dicionários eram de português-latim. “Bechara reeditou clássicos que estavam fora de catálogo, como Dificuldades da língua portuguesa: Estudos e observações [1908], de Said Ali, e os disponibilizou no site da ABL”, diz Módolo.

Bechara morreu por falência múltipla de órgãos. Estava debilitado desde 2024, por causa de uma queda em que fraturou o fêmur. Viúvo de Marlit da Silva Cavalcante Bechara, deixa os filhos Enildo e Evaldo, quatro netos e sete bisnetos.

Matéria na íntegra: https://revistapesquisa.fapesp.br/gramatico-aproximou-a-norma-culta-do-uso-popular/

03/06/2025