Se Nélida Piñon fosse viva, seu coração estaria quentinho. Basta entrar no mítico lar da escritora (morta em 2022), na Lagoa, Zona Sul do Rio, para se impressionar com a organização e o cuidado com que seu acervo, armazenado em dois apartamentos do mesmo prédio, está sendo mantido. Mais ainda: o carinho com que suas “meninas” — como se referia às cadelas Suzy e Pilara, herdeiras oficiais da autora, como consta em seu testamento — têm sido tratadas. No dia da visita desta repórter elas almoçaram... rosbife.
Não que essas notícias sejam novidade. Quem está por trás desse amor (e trabalheira) todo é uma fiel escudeira. Amiga, assessora e companheira de vida por 25 anos, a psicóloga Karla Vasconcelos define sua devoção por Nélida como “sacerdócio”. É sobre essa bonita relação de afeto que se tratou esta entrevista. Mas também há curiosidades. Como o fato de Nélida ter morrido não com 85 anos, como divulgado, mas com 88, revela Karla. Ela diz que, entre o vasto material deixado pela escritora, há um romance inédito, contos e até poesias, estilo que Nélida jamais publicara.
Narra ainda como foi testemunhar o encontro da autora consigo mesma que desaguou em “Os rostos que tenho” (Record), livro-testamento lançado no mês passado em que revê sua obra e trajetória. Adiantou também novidades pela comemorações dos 90 anos que Nélida completaria neste 2024.
Nélida está presente em cada objeto aqui. Não é difícil viver cercada por quem já foi?
Quando eu e as meninas chegamos de Lisboa, foi um choque. Elas correram em disparada. Suzy foi para o quarto; Pilara, para o escritório. Depois de rodar a casa inteira, entraram na bolsinha de viagem, como se dissessem: “Ela não está aqui, queremos ir embora”. Fiz mudanças, trouxe coisas do apartamento do terceiro andar, onde ela guardava o arquivo porque não posso ficar me deslocando. Vieram também todas as fotos gigantescas dela. Aí eu penso que a morte em si é difícil. Como esta pessoa morreu?
Como você faz para acreditar?
Tenho que voltar aos dias no hospital para concretizar. Perguntei a Pilar del Río (viúva de José Saramago): “Como foi quando Saramago morreu, quando tu te desligastes?”. Ela disse que ainda hoje é difícil. Entro aqui e Nélida está sempre tão viva. Ainda estou com labilidade emocional. Isso não se esgota. Fui fazer o caminho de Santiago agora. Digo que é o caminho de Nélida Piñon, sou peregrina dela. Existe um tempo para esgotar a emoção e tomar a frente das coisas. Mas tudo é difícil porque não conheço ninguém que amasse tanto a vida quanto Nélida.
Do que mais sente falta?
Mais que a escritora, o que me faz falta é a humanista. Nélida não tinha medo de novos afetos. Por isso, abria a casa. Comigo foi assim. Escrevi para ela em 1996 e ela me chamou. Não comecei trabalhando com ela. Mas depois que comecei, não tive jeito de sair. Abandonei o doutorado e me devotei a Nélida Piñon. É um sacerdócio. Ela falava: “A literatura não me deve nada, devo tudo à literatura”. Eu dizia: “Ah, mas a mim, ela deve. E muito” (risos). Sempre que aparecia alguém pedindo autógrafo, ela mandava subir. Ficava horas conversando. Queria saber se a pessoa tinha comida em casa, como organizava o dinheirinho.
Quais foram as últimas palavras que ela te disse?
“Karla, sabe que conheci muita gente na vida, mas nunca encontrei alguém que tivesse uma relação igual a que tenho com você. Ela é imortal”. Também estava muito ansiosa porque a Fernanda Montenegro ia chegar a Portugal. Elas se falavam todo dia. Nélida queria estar arrumadinha, com a roupa, o colar, mas não deu para vestir. Fernanda chegou numa quinta. Eu tinha dito como estava a situação. Mas Fernanda chegou cansada, telefonou dizendo que só vinha domingo. Eu falei “Deixa o destino resolver”. Porque eu sabia que domingo ela não ia mais encontrar a Nélida. Mas no dia seguinte, Fernanda veio, com a Fernandinha. Ficaram horas, foi muito emocionante. Nélida, então, virou para a Fernanda e disse: “Agora já posso ir embora”. E a Fernanda naquela coisa de “não, Nélida”. “Eu quero ir”, disse Nélida. E foi.
E aí o que você sentiu?
Não digo que perdi tudo porque Nélida continua me consumindo. Um amigo diz “sou o herdeiro que não quer herdar”. Um dia, chorei e falei: “Nélida, por favor, eu não quero”. Ela: “Tem que ser você, só tem você”. Como Nélida, também não tenho ninguém. Estou preenchida de tantas memórias. Falta corpo, voz. Mas desde que me entendo por gente converso com Deus. Não vou conversar com a Nélida? (risos)
Na verdade, você é herdeira de Suzy e Pilara...
Sim, e elas sabem. Tínhamos um ritual, nós quatro. Diante da mínima boa notícia, fazíamos happy hour. Quando elas percebiam, gritavam. Sabiam que vinham petiscos, queijos. Outro dia, fizemos um só nós três. Foi deprê. Nem elas comiam, nem eu bebia. Falei: “Acabou esse negócio” (risos).
Conseguiu autorização para as cadelas entrarem no hospital e se despedirem...
Foi luta de uma semana. Chegarem meio-dia do sábado. Fizeram festa, lamberam a Nélida. No final da tarde, Nélida se foi. Não é nada agradável ter a morte rondando, não saber quando ela vai chegar. Nélida ficava na cama; eu, numa cadeira ao lado, segurando a mão dela. De madrugada eu queria me esticar, mas quando eu tentava soltar minha mão, ela segurava mais firme.
Qual foi o momento mais difícil desse período?
Quando ela disse que queria voltar para casa. Não queria morrer lá. Uma amiga riquíssima colocou avião e equipe médica à disposição. Mas ela não tinha condições de pegar uma UTI aérea. O que nos restava era aproveitar os momentos finais com tranquilidade.
E você aproveitou?
Claro. Queria estar com ela, aproveitar seu afeto. Fiz algumas revisões, outras histórias ela me contou. Falamos mais da vida dela lá (pós-morte) que daqui. Dos mortos dela. Nélida sempre os reverenciou. Qualquer distinção que recebesse ou livro que publicasse, se recolhia: “Vou agradecer aos meus mortos”, dizia. Transitava nesse mundo.
Você visita o mausoléu na ABL, onde ela está enterrada?
Todo mês. Reclamo, conto as fofocas do mundo dela, rezo, coloco Wagner para ela ouvir. Hoje foi “Cavalgada das Valquírias”.
É incrível que mesmo diante da morte iminente ela tenha tido a presença de espírito de passar a vida a limpo, como fez neste livro…
Nélida adorava um ritual. Tanto que, em 2015, quando o médico lhe deu um prazo de seis meses de vida (Nélida foi diagnosticada com câncer de pâncreas, mas a doença era no estômago. A autora chegou a ter uma remissão completa, em 2016. Mas em 2021, o câncer voltou), não a vi derramar uma lágrima. Ela só se preocupou em organizar o funeral. Escolheu as músicas, disse quem poderia vir aqui e que não iria para o hospital. Falou: “Karla, no meu cortejo, você vai na frente. E não quero ser enterrada com fardão. Se precisar, contrata cama hospitalar para as meninas também”. A primeira coisa que o médico disse era que não podia tocar nas cachorrinhas. Ela ignorou. A vida seguiu. Em 2021, já sabíamos que ela estava indo embora, falávamos disso naturalmente.
Mas é muita tranquilidade para lidar com o fim...
Ela tinha tranquilidade e não tinha tabu com a morte. Era uma pessoa reflexiva, uma pensadora. Tanto que desde sempre falava: “Pensar é erótico”. Para ela, o pensamento era muito importante. E quando fomos para o hospital, ela já sabia que não sairia.
A partir daí, mergulhou nas memórias.
No hospital de Lisboa fizemos várias gravações. Mas começamos antes. Como ela tinha dificuldade com a visão, passou a gravar depoimentos e me mandar. Tenho uma infinidade de gravações dela. A partir daí veio a história de imergir nas memórias. Quando ela foi internada e voltou do procedimento com alterações, já sabíamos... Sempre fui muito natural com a Nélida, somos devotas da realidade. Dentro do hospital, eu dizia a ela: “Você vai voltar me dizer como é lá em cima?”. Ela jurou que voltava. Respondi: “Conheço você, se lá tiver bom, você vai esquecer e viver as outras aventuras”. Claro que ela não veio (risos).
Sobre o acervo de Nélida: ‘Não quero dinheiro, mas compromisso’
É verdade que não viajavam no mesmo avião para evitar que morressem ao mesmo tempo e as cadelas ficassem sem cuidadoras?
É verdade. Ela achava que meu avião ia cair (risos). Descobri isso um dia em que meu voo chegava primeiro que o dela. Eu ia para casa e ela, para a ABL. Ofereci de levar a mala, e ela disse: “Não, aqui estão meus originais” (risos). Aí eu falei: "Ah, então, você acha que me avião vai cair, né?" (risos).
Assistente, assessora, amiga. Você também é viúva da Nélida? Vocês namoraram?
Não. Não era esse tipo de relação que tínhamos. Até porque, eu já teria ido embora há tempos. A convivência seria um desastre. Não acredito nessas relações. Ocorrem estressamentos, desentendimentos, mágoas profundas, ciúmes. Eu e Nélida tivemos um encontro de almas. Ela declarou a Ana Maria Braga sobre amores: “Muito intensos e passageiros”. Ela não passou pela vida impune. Eu dizia: “Você tem uma fila de quarteirão, hein?” (risos). Mas o grande amor dela sempre foi a literatura.
No livro, ela diz que sonhava ser uma mulher sem amarras. Ela conseguiu? Tinha dificuldade com essa questão amorosa?
Não, nem com questão de (não ter tido) filho. Nélida ia detestar ter que comandar uma casa em relação ao outro. O outro dela era o mundo. Queria pensar que era um espírito livre. Nem por isso se descuidava dos afetos. Não traria ninguém para casa e nem iria viver uma experiência amorosa na casa de alguém. O espaço privado era vital para a criação.
Nélida aceitava o fim, mas no livro questionou: “Não será um retrocesso na minha busca pelo céu trilhar o caminho que me leva à morte?”.
Ela não queria morrer. Mas era inevitável. Estava com 88 anos. Pensam que ela era de 1937, mas era de 1934. Ela sabia que estava na porta, com saúde ou sem saúde. Mas observar uma mulher de 88 anos comendo hambúrguer, cachorro-quente, dobradinha, rabada, mocotó, tomando milkshake. Ela falava: “Gosto de comida que mata”. Adorava gordura. Ao mesmo tempo, tinha o refinamento do caviar, do foie gras.
Ela dava uma dimensão espiritual à comida. Por isso oferecia do bom e do melhor às cachorras?
Sim. Ela amava comida. Levamos quilos e quilos do Brasil para receber os amigos em Portugal. Tudo para feijoada, goiabada. O ano que passamos em Portugal, não comprei uma meia. A Nélida voltou sozinha com 500 quilos. Comida, vinho, livro. Tive que deixar minha roupa em Portugal.
Como foi testemunhar de perto o encontro de Nélida com ela mesma no processo desse livro? Ela tinha arrependimentos?
Vários. Tanto que não gostava na música da (Édith) Piaf “Je ne regrette rien”. Dizia: “Uma pessoa tem que se arrepender, se não não se corrige, não aprende nada”. Acho que se arrependeu de algumas coisas em relação à carreira, de ficar mais lá que aqui ou vice-versa. Dei uma aula sobre “A república dos sonhos” e me perguntaram isso em relação aos livros. Muitos escritores dizem que queriam reescrever ou alterar alguma obra. Com Nélida não existia isso. Ela trabalhava tanto o texto que dizia: “É aquilo, é onde eu cheguei”.
Mas e da vida?
Da vida, eu não sei. Sei que existem porque ela dizia “tenho os meus arrependimentos”. Em 2021, fizemos o ritual da despedida. Fomos conversar com Santa Teresa De Ávila, que ela amava, depois a Barcelona, a Compostela, fomos à aldeia do pai, dos avós a todos os lugares que ela queria. Em 2022, fomos a Galícia e ela disse: “Karla, não vou trabalhar”. Tudo mentira.
Ela e Fernanda Montenegro são duas mentirosas incorrigíveis. Sentam e falam uma para a outra: “Minha amiga, estou tão cansada, precisamos no poupar”. “É, você tem razão”, a outra responde. Aí, toca o telefone e as duas “vou fazer isso e aquilo”. É aquela noção do dever, do ofício, do compromisso, a alma do imigrante que herdaram, de vencer, de conquistar, se organizar, da luta. Tanto que esse fato de ter duas culturas era fundacional, como Nélida dizia. Nessa viagem de 2022, Nélida estava tão cheia de energia, comia um chuletón sozinha.
No livro, ela conta que escolhia as máscaras dela no armário, a da coragem, a da feminilidade… E que elas a ajudavam a encarar a vida. Como era a Nélida sem máscara?
Não percebo essas máscaras que ela diz. Claro que existem para todos nós por questão de sobrevivência. Mas ela não era diferente em casa e na rua. Generosa, pedagógica, adorava ensinar. Para ela ir da porta de casa até o escritório, parava, passava a mão pelos objetos, como se estivesse vivendo cada história. Eu falava: “Nélida, você não está no Museu do Prado” (risos).
O que dava medo ou a fazia chorar?
Nos últimos tempos, ela ficou mais emotiva. Porque nunca foi uma pessoa que chorasse. Nunca a vi deprimida. Podia dizer “hoje, estou um pouco caidinha”. E eu: “Como vamos resolver isso?”. Ela: “Vamos ao supermercado?”. Amava uma latinha. Amava ir ao Mundial. Um dia, uma moça na fila disse: “Você não é a Nélida Piñon?. E vem ao Mundial?”. Eu respondi: "Não só vem como adora”. Nélida era uma pessoa estável. Claro que tem sangue da Espanha, e ninguém é zen o tempo todo. Tinha suas alterações de humor.
O que a tirava do sério?
Tirar um objeto de lugar ou falta de organização. Ela sofria com a situação do país, a entristecia, incomodava. Se você pegar “A república dos sonhos”, quando ela diz ser brasileira, não se despregou daquela visão. Declarava: “Brasília é um castelo com pontes levadiças onde o povo não tem acesso. Eles sobem e deixa o fosse em torno para que ninguém se aproxime”. Também não podia ver maltrato aos animais. Quando Gravetinho (cachorro de Nélida que morreu) entra na vida dela, há uma mudança, ela passa a ser capaz de manifestar umas lágrimas. A dor humana, um desastre, as condições das instituições brasileiras. Há uma fragilidade com algo que ela sempre flertou. Como grande conhecedora da história, como dizia “eu visito os séculos”, há uma compreensão do que estamos vivendo porque violências já se localizaram em épocas pretéritas.
Ela faz uma crítica bem dura ao Brasil no livro. Diz que aqui todo mundo quer mostrar poder, ser amigo do rei. Isso me faz pensar em como ela reconhecia a importância dos povos originários. De que forma isso se manifestava nela?
Nas relações que fazia com empregados, com as pessoas da rua. Um dia, um motorista perguntou: “Se convidar a senhora para ir na minha casa almoçar, a senhora vai?”. Ela: “Por que demorou tanto?”.
Podem sair livros inéditos do acervo que você está organizando?
Sim. Há manuscritos, uma caixa de contos, uma pasta com poesias, um pacote fechado onde está escrito “romance frustrado”, anotações de viagens... Achei um caderninho com uma oração dela. Tenho que transcrever tudo antes de decidir para onde vão esses arquivos. É muito material.
Acha que ela gostaria de dividir isso com o público?
Em março, será lançado livro inédito do García Márquez e começou a polêmica se devia ser publicado ou não. Pilar del Río falou algo que acho certo: “Se ele não destruiu, é porque era para viver”. Uma vez, perguntei se não era muita coragem deixar todas as versões dos livros. Nélida disse: “Quero que vejam meus fracassos e como trabalhei para me reerguer”. Acho que as pessoas têm que conhecer os processos. Ela deixou tudo aí. O que não quisesse que fosse publicado, teria destruído.
Ainda não decidiu para onde vai o acervo?
Conversava sobre isso com Nélida há anos. Somos bastante apegadas a esse arquivo, que é fabuloso. Princeton fez várias ofertas. Nos EUA há duas instituições onde estão os arquivos latino-americanos: Princeton e Texas. Se a ABL fosse capaz de receber, classificar e organizar, seria o destino certo. O custo é uma dificuldade de todo mundo que herda. É caro manter estrutura, funcionário. Não tenho dinheiro para abrir uma Casa Nélida Piñon. Por outro lado, depender de apoio público é incerto. Uma hora tem dinheiro, em outra não, aí tem goteira… É preciso um destino para que as pessoas tenham acesso para. O arquivo da Nélida não é literário é histórico.
E precisa ficar disponível ao público...
E não há só os originais da Nélida… Ela não rasgava um papel. Se fosse almoçar, mandava imprimir porque tinha medo de sumir no computador. Se pegar a caixa da Clarice (Lispector) não tem só correspondência, tem a contabilidade da morte da Clarice, recortes de matérias sobre ela nos jornais. Isso com a Lygia (Fagundes Telles), com Carlos Fuentes, Vargas Llosa… Cartas manuscritas. Também passa pela pesquisa. “Sagres”, um livro que ela levou 20 anos para fazer, já estava vivendo nela desde 2000, há todo um material de pesquisa que ela fez.
Que novidades pode adiantar dos 90 anos de Nélida neste 2024?
“A casa da paixão”, único livro dela censurado, que trata das questões da atualidade, como a mulher que decide por seu corpo, está sendo reeditado em Portugal. Esta obra não teve a atenção devida. “A república dos sonhos” está sendo traduzida para o Chinês. E “Os rostos que tenho” será lançado na Espanha.
03/01/2024