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ABL na mídia - O Globo - Artigo Ricardo Cavaliere - Obra marcada pelo enriquecimento da língua portuguesa

 

Recebi com um paradoxal sentimento de dor e conforto a notícia do falecimento de Evanildo Bechara, ocorrido na última quinta-feira (22). Afinal, perdia o amigo de mais de três décadas que tanto me ensinou e encaminhou nas sendas da linguística e da filologia. Mas a lembrança de seus últimos dias, tão sofridos em face da enfermidade que o acometia, fizeram-me perceber que, afinal, nada restava senão o alívio e a resignação da finitude inexorável. Ademais, se levarmos em consideração o que fez no curso de seus 97 anos de vida, a carreira que construiu no magistério de língua portuguesa e a obra que edificou no campo dos estudos sobre a linguagem, decerto concluiremos que o mestre realmente alçou à imortalidade.

Certa vez, por ocasião de seus 80 anos, perguntei-lhe como avaliava seu passado de glórias, com tantas conquistas, louvores e manifestações de apreço. Não encontramos em cada esquina um certo cidadão que reúna dois títulos de professor emérito — um na Universidade Federal Fluminense e outro na Universidade do Estado do Rio de Janeiro —, um título de doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, além de ser membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia das Ciências de Lisboa, entre tantas outras comendas que só se atribuem aos que gozam de exponencial prestígio entre seus pares. A resposta foi simples: “nunca pensei em chegar ao topo, apenas me preocupava com o caminho”.

A morte de Evanildo Bechara é uma página virada para a geração de estudiosos que circulavam tanto nas sendas da linguística teórica quanto na seara da filologia, com o escopo de estudar a linguagem humana sem a preocupação dos rótulos. Nestes tempos hodiernos em que foneticistas não se aventuram nos estudos sintáticos, semanticistas evitam os caminhos da morfologia, poucos são os que mantêm essa tradição eclética que irmana o saber teórico sobre o sistema da língua com seu estudo na urdidura do texto. Está aí o segredo de ser reverenciado no ambiente acadêmico e de ter sido eleito um dos cem brasileiros geniais vivos pelo jornal O GLOBO em junho de 2006.

Por outro lado, um traço peculiar vincula a formação intelectual do nosso mestre aos antigos filólogos da tradição gramatical: o interesse em temas despidos do formalismo que afasta o cientista do público leigo, tais como o conceito e aplicação de norma gramatical, as questões ortográficas, a linguagem no trato social, língua e cultura, a língua literária etc. Com certeza, terá sido esse perfil eclético que conferiu a Bechara excepcional prestígio não somente entre especialistas, como também entre alunos e cidadãos interessados em questões linguísticas. Foram inúmeras as vezes em que, após uma palestra, era obrigado a dedicar o dobro do tempo para fotografias e dedicatórias, cercado por jovens encantados com aquela figura carismática que tão bem dissertara sobre tema linguístico com sua voz grave, pausada e melodiosa.

Mais conhecido como autor da “Moderna gramática portuguesa”, cujo êxito editorial expressa-se na 40.ª edição especial lançada neste ano de 2025, bem como na incrível marca de quase 600 mil exemplares vendidos, nosso mestre é dono de obra diversificada em que figuram textos em áreas múltiplas como a lexicologia, a semântica, a etimologia, a crítica textual, a história do português entre outras igualmente relevantes. Ademais, suas raízes na atividade docente, que cultivou até o ano de 2015 ensinando sintaxe portuguesa no Liceu Literário Português, endereçaram-no naturalmente para a elaboração de livros didáticos tanto para o ensino básico, quanto para o ensino superior. Bechara deixa um legado bibliográfico que ultrapassa 30 livros e centenas de capítulos de livros e ensaios.

Talvez poucos prazeres superem, na vida de um professor, o de ser eternizado nas páginas de um livro que vem a tornar-se referência em dada área do conhecimento, aquela leitura a que todos se dirigem como que atraídos por um irresistível tropismo intelectual. O prazer de circular por mãos plurais, em toda parte, disseminando ideias, formando cidadãos, participando da construção de uma nação. O prazer de tornar-se tão intimamente vinculado a seu mister que chega a com ele confundir-se. Quantos educandos neste exato momento, na imensidão territorial de nosso país, não estarão dirigindo-se a uma estante de livros, dizendo a si mesmos: “Estou em dúvida. Vou consultar o Bechara”.

Ocorre-me agora, sob o peso de sua ausência, que minhas homenagens a Evanildo Bechara, revelam, em certa medida, um exercício de insuspeita vaidade: tive o privilégio de haver usufruído sua companhia, partilhado seus projetos, aprendido suas lições. Tive o prazer de havê-lo ouvido em tantas horas de afetiva relação, abeberando-lhe as palavras em que se imiscuíam o discernimento, a perspicácia e a serenidade. O deleite de haver desfrutado de um humor levemente irônico, sempre cordial e elegante, no cotidiano das conversas e trocas de ideias. Homenageá-lo era alardear meu orgulho de ser seu irmão de nacionalidade ao ver seu nome cultivado nos mais importantes centros de investigação científica em todo o mundo. Homenageá-lo, talvez um tanto levianamente, talvez fosse desejar que em mim houvesse um pouco dele, já que, a sua semelhança, amo a palavra e dela faço meu ofício. Resta o compromisso de cultivar sua obra em leitura constante e reverenciar um homem que quase chegou ao centenário ainda fiel ao compromisso de abrir as sendas da linguagem humana, com a sabedoria dos que lograram envelhecer sem insculpir rugas na alma.

25/05/2025