Se abraços são abrigos, o meio que Carlos Cardoso encontrou de abrigar a saudade do amigo Antonio Cicero (1945-2024) tem forma de verso. É a forma ideal para celebrar a eternidade de um poeta do quilate do autor de "Guardar", morto no dia 23 de outubro: "Iluminar a sombra/ e torcer pelo sol/ até que venha a chuva. Sapatear pela escuridão/ com trovões e ventania,/ molhar os dedos,/ sentir o frio e o arrepio,/ que é estar." O poema ao lado faz parte do livro "Coragem" (ed. Record), tratado sobre a arte de resistir lançado por Carlos em 2023.
Desde o rascunho, "Ventania", de estrofe única, foi idealizado como um louvor à amizade a Cicero, e foi dedicado a ele, que esteve no lançamento e, num depoimento, cravou: "Todo grande poeta, quando lido, transporta a gente para a terceira dimensão da vida, a dimensão transcendente da arte, e Carlos é um dos grandes". Essa poesia corre mundo neste momento de dor para a literatura, com a perda de um autor essencial para a artesania da palavra. Momento que coincide com a ampliação de fronteiras nas buscas estéticas de Cardoso, que figura entre os candidatos à cadeira nº 27 da Academia Brasileira de Letras (ABL), cuja eleição será realizada no próximo dia 11.
Era Cicero quem a ocupava e é em respeito e reverência ao colega de escrita que o bardo carioca de 50 anos se lança na corrida por uma vaga à instituição fundada por Machado de Assis. Toma essa trilha numa fase de diálogo com uma outra mídia, de trajetória milenar: o teatro.
Em 2025, "Coragem" vai para os palcos. Seu miolo regado a lirismo está sendo transformado em peça pelo dramaturgo Flávio Marinho, responsável pelo fenômeno teatral de 2024, "Não Me Entrego, Não!", com Othon Bastos, a quem Cardoso também dedicou um poema, chamado "O Paciente".
É o mesmo nome do filmaço de Sergio Rezende que o ator baiano estrelou em 2018, com base no calvário físico do político Tancredo Neves (1910-1985). "(...)dormimos meio mortos/ acordamos ainda tontos/ mas por dentro o sangue jorra/ no tecido necrosado (...) o coração ainda bate/ a cabeça ainda pensa/ e uma vergonha impiedosa/ do ser humano que é vil/ sobressalta pelos poros/ do paciente: que é o Brasil!".
Em gestação, o espetáculo vai se chamar "Coragem - Uma Questão de Amor" e tem estreia prevista para o primeiro semestre de 2025. Antes disso, tem a disputa da ABL a um posto que já foi ocupado por titãs como Otávio de Faria (1908-1980) e Eduardo Portella (1932-2017). Em concurso, estão vozes autorais de alta voltagem como Edgard Telles Ribeiro, Tom Farias, Lucas Pereira da Silva, Sonia Netto Salomão e mais 10 candidatos. Um dos expoentes da geração revelada na poesia brasileira entre o fim dos anos 1990 e início dos 2000, Cardoso ingressa nesse certame amparado num prestígio além-mar. Traduzido para onze idiomas, com edições em 12 países (na Europa, na Ásia e nas Américas), ele - que também é engenheiro - conquistou o Prêmio APCA, da Associação Paulista de Críticos de Arte, pelo livro "Melancolia".
Recebeu ainda o Prêmio da Unesco, o Prêmio da Federazione Unitaria Italiana Scrittori e a Medalha Pedro Ernesto, da Prefeitura do Rio de Janeiro. Em 2023, em Roma, ganhou o Prêmio Amicizia Italia Brasile e La Palma d'Oro di Assissi-Pax, que celebram a riqueza humanista de sua arqueologia lírica. Conquistou, também em solo italiano, o Prêmio Especial da Cidade de Ardea e o Prêmio do consórcio de Colle Romito.
Numa ponte com o audiovisual, seus poemas foram celebrizados em vídeos, com leituras feitas por artistas como Patrícia Pillar, Malu Mader, Tony Bellotto e o já citado Othon Bastos. Segundo a imortal da ABL Heloísa Teixeira, as estrofes ali eternizadas trazem uma "técnica de sobrevivência", pois, de acordo com ela "a poesia de Carlos é vital e se expõe como recurso de vida, de respiração". Em sua fortuna crítica, iniciada a partir da publicação de "Sol Descalço", exalta-se o requinte de sua destreza com os verbos. As páginas de "Coragem" deixam sua potência evidente: "Posto que a vida é fria,/ traremos ao dia/ o que outrora/ noite fria traria".
Matéria na íntegra: https://www.correiodamanha.com.br/cultura/livros/2024/11/168478-carlos-cardoso-entra-na-disputa-da-cadeira-27-da-abl.html
25/11/2024