A primeira questão formulada a esta seção diz respeito ao hífen, "campeão das dúvidas": pára-lamas ou paralamas?, pára-quedas ou paraquedas?
Começamos por dizer que os primeiros ortógrafos das línguas modernas (as antigas que lhes serviram de modelo não conheciam este diacrítico e as palavras se sucediam na escrita sem espaço entre si) foram responsáveis pelas dificuldades com que hoje lutamos. Em geral, a cada diacrítico se atribuiu uma função específica: o acento agudo marca a vogal aberta da sílaba tônica (fé, avó, contará); o circunflexo assinala a vogal fechada da sílaba tônica (vê, avô, câmara); o acento grave, a crase (vou à cidade), fenômeno que era neste caso marcado na escrita com acento agudo (vou á cidade), porque pela fusão de dois fonemas iguais resultava um só de timbre aberto.
No caso do hífen foram os ortógrafos acumulando funções distintivas de natureza fonética, gramatical (distinção de classes de palavras), semânticas e até estilísticas, e como não se serve bem a dois (muito menos a vários) senhores, o emprego do hífen passou a ser um desafio para a normatização pelos ortógrafos, e uma infernização para os utentes que dele precisavam ou assinalar, ou deixar de fazê-lo, na escrita.
O problema não é exclusivo atributo da nossa língua; os franceses, que sempre serviram de modelo para tantas novidades introduzidas em Portugal e no Brasil, também se veem neste mesmo apuro. Quando os ortógrafos da França, separando-se da tradição das outras línguas românicas, começaram a se servir mais amiudadamente do traço de união para representar na escrita a avalanche de neologismos compostos que designavam o progresso nas ciências, nas letras e na tecnologia do séc. 19, eruditos e filólogos de visão os alertaram para as dificuldades que viriam decorrentes do excesso da novidade.
Neste sentido, sugeriam a supressão do hífen, em favor da simples sucessão dos elementos integrantes ou a soldura deles com alterações gráficas do primeiro elemento quando terminava por letra muda. Tais conselhos e advertências partiam de eruditos editores como Firmin-Didot (1868) e de filólogos como o acatadíssimo Arsène Darmesteter (1874). A notável estudiosa francesa desses assuntos Nina Catach, no livro Orthographe et lexicographie (Nathan, 1981), nos mostra como o hífen andou às cabeçadas nos dicionários Littré (7ª edição, 1959), Petit Larousse Ilustre (1960) e Robert (1970).
Entre as razões que justificariam a supressão do hífen estavam as inúmeras dificuldades criadas por ele no plural de compostos, e na raiz dessas discussões estaria o eco da solução apresentada em Portugal por Santos Valente e Francisco de Almeida, em 1886: "As palavras assim justapostas podem unir-se numa só sem precisão do hífen, quando a primeira é invariável (...)" (Orthographia Portugueza, pág. 64 n.1, com atualização da grafia). A ideia chegou até ao texto do acordo de 1986, preliminar do texto aprovado em 1990.
Se tivéssemos seguido o caminho da audácia talvez tivéssemos contribuído para normatizar mais inteligentemente dois quebra-cabeças da nossa língua: o emprego do hífen e o plural de compostos, este último depois que os dicionários modernos invadiram os domínios da gramática e começaram a fazer confusões.
Retornando à questão inicial, a Base XV do acordo acadêmico começa: "Emprega-se o hífen nas palavras compostas por justaposição que não contêm formas de ligação e cujos elementos de natureza nominal, adjetival, numeral ou verbal, constituem uma unidade sintagmática e semântica e mantêm acento próprio, podendo dar-se o caso de o primeiro elemento estar reduzido." Segue-se exemplificação em que nosso caso está representado pelos compostos com elemento verbal conta-gotas, finca-pé, guarda-chuva.
E após a nota: "Obs. Certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição, grafam-se aglutinadamente: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedismo, etc."
O cuidado na redação "certos compostos" e "em certa medida" revela a falta de estudos preliminares na área da lexicologia diacrônica e sincrônica do português para determinar o afastamento da "noção de composição" dos termos listados, em oposição a outros tranquila e confiantemente arrolados como evidentes compostos. É questão delicada que constitui floresta virgem na investigação acadêmica. A dificuldade começa entre os próprios ortógrafos e textos oficiais com a discordância em assinalar aqueles compostos que "em certa medida" perderam a noção de composição; para uns está nesse caso paraquedista; para outros, impõe-se aqui a grafia com hífen. Por outro lado, como proceder diante de uma pequena lista de exceção, como o fez o texto do acordo, listando apenas seis compostos aglutinados?
A nossa Academia, na impossibilidade de incluir outros compostos com as características dos elencados, adotou as seguintes medidas à luz da prudência: a) incluir na lista os possíveis derivados das exceções com o aval do acordo: se estavam lado a lado paraquedas e paraquedista, poder-se-iam acrescentar paraquedismo, paraquedístico; ao lado de pontapé, pontapear e pontapezinho. A outra fonte de acréscimo à minguada lista de exceções viria com o aval da tradição ortográfica, vigente nos dicionários e vocabulários portugueses e brasileiros: bancarrota, cantochão, claraboia, montepio, passatempo, passaporte, rodapé, santelmo, varapau, entre outros.
Se não foram assinalados no rol das exceções, continuam hifenados, dentro do que dispõe a Base XV: para-choque, para-brisa, para-chuva, para-lama, manda-lua, manda-tudo, ao lado de muitíssimos outros compostos evidentes.
O Estado de S. Paulo (SP) 01/02/2009