Disse na Câmara de Vereadores do Rio, que não desejava minha fala fosse mais do mesmo. Entre os diferentes títulos de cidadania honorária que recebi, por conta de generosas decisões em várias terras, aquele do Rio de Janeiro consignava um caráter muito especial. Por isso, o meu dizer não foi mais palavra sobre o mesmo tema.
Se a vida é uma palavra, como se diz na Bíblia, ali estava a palavra inicial da minha vida de cidadão honorário do Rio de Janeiro.
Falei que receava começar arranhando a escala reverente que o ato exigia. Não evitei iniciar minha fala na espontaneidade de um desabafo. Expliquei tratar-se de um peito nordestino, mandacaru curtido nas brasas do sol, consistente e resistente, onde estão guardadas andanças e vivências, durezas e ternuras, dores e risos, cores e flores, dessas itinerantes, apanhadas na agridoce travessia/travessura humana que se chama vida.
Há nessa trajetória momentos em que não podemos emigrar doque somos, pois é necessário refletir sobre o tempo e meditar sobre o espaço.
O que se me outorgou não foi apenas a distinção, como na lira camoneana, "o gosto que se atiça com uma aura popular", gesto a consagrar o mortal aos olhos e à curiosidade de seus pares. O que se me concedeu foi, se possível, muito mais. Foi graça. A mesma graça que traz da honra a exterioridade terrena, mas a ela se soma a espiritualidade do ato, a virtude reconfortante do contentamento interior, a união plena de sonho conquistado.
Cheguei à Câmara para a cidadania carioca, despojado de bens pessoais e riquezas materiais. Mas não cheguei de mãos vazias. Trazia as oferendas da minha terra. Prendas que ouro nenhum pode comprar. Seu valor é o da exemplaridade.
Apresentava, como pernambucano, a inquietação irredentista, a corajosa vocação liberal e anti-oligárquica, audácias republicanas e desejos da transformação social. Muito mais glórias poderia carregar nas mãos cheias de estrelas, mas desejei destacar o orgulho-prazer de quem dáe o prazer-modéstia de quem sabe o que vai receber.
Evoquei a frase profética de Tomé de Souza, em 1552, quando, ao deparar o despovoamento do litoral fluminense, escreveu a El-Rei instando que na baía do Rio de Janeiro se devia "mandar fazer uma povoação honrada e boa".
E a povoação se fez, boa e honrada. Mais tarde, bem mais tarde, Miguel Torga disse que aquela cidade nunca poderia ser abstrata ou concreta, mas eternamente as duas coisas, milagre feito pelos homens e pela natureza. Daí há de ter surgido o madrigal melodioso, a consagradora "paquera" musical de Antônio Maria, um pernambucano que sabia das coisas: "Rio de Janeiro, gosto de você,/ gosto de quem gosta/ deste céu, deste mar, desta gente feliz."
Disse ser claro que se a minha vida nasce e amadurece em Pernambuco, não é só completada em Pernambuco, apesar de uns "alguéns" dizerem que pernambucano tem mania de grandeza. Grande equívoco. O que de fato temos não é uma mania, é grandeza mesmo. Mas sabemos que é preciso complementar. Agregar valoresé próprio da sabedoria pernambucana. Não me sinto entalado entre Pernambuco e o Rio, pois ambos me enchem de esperança e deles me orgulho. Trata-se de uma experiência binária.
Diário de Pernambuco (PE) 07/12/2008