Louvor em boca própria, bem sei, é vitupério, como diziam os antigos. Hoje ninguém mais diz isso, até porque suspeito que ninguém mais sabe o que é vitupério. Pensei em traduzilo para “uma parada sinistra”, mas fiquei com medo de cometer algum equívoco, porque não domino bem os vocábulos que, com admirável poder de concisão, compõem o cabedal lingüístico da maior parte do nosso povo atual, demonstrando que ninguém precisa de mais que trezentas palavras para ser feliz. Bem, trezentas e cinqüenta para os muito letrados, mas acima disso é elitismo.
“Louvor em boca própria”, pensando bem, apresenta também lá suas dificuldades, de maneira que, no bom interesse da eficaz comunicação, radicalizo logo: elogiar a si mesmo não está com nada. Sempre se perde um pouco na tradução e creio que, neste caso, se perdeu bastante, mas é o que pude fazer. A linguagem do pessoal que passou a vida em regime de aprovação automática nas escolas é, ao contrário do que se pensa, de grande complexidade, por valer-se de recursos tonais e diversas caras e bocas que o coroa não consegue assimilar ou reproduzir satisfatoriamente, sem correr o risco de ser internado numa clínica geriátrica ou aparecer em “Mundo bizarro”. Tenho vontade de fazer um curso, mas me falta tempo e já cá me rateiam quase ruidosamente os neurônios, de forma que vou tocando como Deus é servido.
O que queria dizer, afinal, é que sei que não fica bem o sujeito se elogiar, ou pelo menos não ficava.
Pensando melhor, devo esta explicação apenas aos mais velhos, porque o fato é que tudo indica uma mudança nos costumes, iniciada de cima, ou seja, por quem nos governa.
Hoje é até bonito o camarada falar maravilhas de si mesmo, como o presidente. Tenho uma certa inveja disso e é inegável que preciso manter um mínimo de atualização, de maneira que chuto o vitupério e seu zelitismo para o lado e me cumprimento logo direto.
Fiquei contente em saber pelos jornais que agora a indústria da blindagem, pelo menos no eixo RioSão Paulo, atinge níveis que superam as expectativas dos observadores mais otimistas. Agora a atitude desses observadores chega a uma postura do tipo “o céu é o limite”.
Não há como projetar a trajetória galopante dessa nova atividade econômica, que certamente nos levará em breve à liderança mundial no setor, ainda mais se o governo vier a intervir, com a sabedoria e a presciência que o caracterizam.
E o que me deixa contente não é só ver mais esse sinal de prosperidade, esse novo cale-essa-boca na cara dos que torcem para que tudo dê errado. Isso me traz felicidade, é claro, pois que tenho espírito público.
Mas não posso também sopitar no peito o orgulho que me vem ao lembrar que, faz quase exatamente dois anos, publiquei neste local uma coluna intitulada “O sonho de Urutu próprio”. Nela previa eu, para ceticismo e quiçá chalaça da parte de muitos, que chegaríamos ao ponto de que o sonho de consumo das famílias em geral seria um Urutu do ano, estalando de novo na porta de casa ou na garagem do edifício.
Confrontem-se com a realidade: minha previsão de atilado jornalista se revelou certeira, mais do que certeira. Não só os carros blindados vêm se multiplicando e já existem revendedores especialistas em blindados usados, como também — juro que na época pensei nisso, mas achei que era exagero, vejam no que dá o sujeito achar que alguma coisa no Brasil pode ser exagerada — casas e apartamentos blindados.
Ou seja, blinda-se tudo e, daqui a pouco, vai aparecer gente, se já não existe por aí, que morará em casa blindada, só sairá de carro blindado e só irá a reuniões e festas em locais blindados. Não entendo disso, mas me parece que é hora de investir em ações de siderúrgicas e ficar de olho nas montadoras que lançarem a primeira linha de blindados saídos de fábrica. Sugiro até um nome bem brasileiro para o primeiro modelo nacional de passeio: Armadillo, que significa “tatu” em inglês e tem muita sonoridade para o caso em questão, é capaz de já estar até registrado. (Quando disse que era um nome bem brasileiro, não me referia à nossa língua oficial, mas a que preferimos, adotamos e maltratamos por amor). “Armadillo 3.8”, sussurrará a voz sensual do locutor num comercial, “onde a bala perdida jamais achará você”.
Os anúncios imobiliários também farão a festa e o primeiro chamariz será a qualidade da blindagem.
Cena 1: Casal lindo no esplendoroso living de um apartamento bem decoradíssimo, assistindo, na companhia de três ainda mais lindos petizes, a uma tevê de 240 polegadas, ou do tamanho mais próximo a isso que deverá ser obtido até lá, ou seja, toda a parede. Cena 2: Estampido e leve barulho de choque, vindo da janela, para onde todos olham. Cena 3: Ninguém se abala e o pai comenta: “AR-15 de novo, parece até pipoca, nessa nossa janela.
Será que eles não arranjam nada de mais moderno? Bazuca só teve daquela vez, lembram? Naquela hora, eu pensei que tinha alguém batendo no vidro da janela.” Mais uma ou duas cenazinhas dessa invulnerabilidade tão relaxante e a voz do locutor, em off: “Condomínio Fort Knox — mais um blindado da Construtora Bunker, a única com SAI — o Selo Aquiles de Invulnerabilidade.
E com vista para o mar, é claro.” É, dá satisfação profissional haver previsto a blindagem. E mais satisfeito ainda ficarei quando o governo, destinando para isso uns oito ou dez bilhões de euros tirados do caixa pequeno do Pré-Sal, criar o programa Bolsa Blindagem.
A zelite vai chiar, porque não gosta de ver pobre blindado, mas logo o trabalhador poderá circular no blindado para os de baixa renda, oficialmente chamado de Escudo 1.0, mas logo popularmente batizado de Casca de Coco, na intimidade Casquinha. Segura uma pedrada no pára-brisa numa boa.
O Globo (RJ) 15/09/2008