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Um instante entre dois nadas

 

A poesia de Marly de Oliveira (que nos deixou há um ano) preenche a definição de Roupnel e Bachelard de que "o tempo só tem uma realidade: a do instante". E esse instante se acha colocado "entre dois nadas". Aí estaria o falso vazio que estimula a linguagem mística. Pois mística foi muito a poesia de Marly de Oliveira, de um misticismo raro na poesia brasileira, gênero em que entre nós só a figura de Junqueira Freire se destaque.


No caso de Marly de Oliveira, que não pertencia a uma organização conventual, como Junqueira, o misticismo tem uma força vocabular que realça o Instante em que a vida se concentra. Leia-se, de Marly de Oliveira, estes versos que falam de amor:


"Pousa em mim os teus olhos vagarosos,

Sobre meu dorso livre, água tranqüila,

Deslizando comigo até o nada.

Nada há que se compare ao grande susto

Do mútuo descobrir-se e de sua dor.

Vivamos a verdade deste sonho.

Que se sabe do amor?"


Sendo naturalmente mística, busca Marly também um estado de ser simplesmente, integrada na "Instante entre dois nadas". Como neste "Epigrama":


"Bom é ser árvore: vento

Sua grandeza inconsciente

E não pensar, não temer.

Ser apenas. Altamente.

Permanecer uno e sempre

Só e alheio à própria sorte.

Com o mesmo rosto tranqüilo

Diante da vida e da morte".


Marly de Oliveira foi lançada por Carlos Ribeiro, que publicou seu primeiro livro "Cerco da Primavera", em 1957. Surgiram em seguida "Explicação de Narciso" (1960), "A suave pantera" (1963), "A vida natural" e "O sangue na veia" (1967) e "Contato" (1975). Neste último acentua Marly a importância que se vê presa no tempo e começa com este verso:


"Terrível é o tempo" para chegar a este:


"Sei de mim que sou grave,

E tenho intensidade

Sem luxúria,

E o sentido que busco e do que vive é esse profundo

Fino amor que sinto

Que resiste à fria pedra, à dura gema,

E se exercita na constância da água".


Para buscar o sentido geral das coisas:


"E juntos como plantas, como bichos,

O que se empenha na ardorosa luta,

O corpo apenas, alma e corpo unidos,

Ou essa divisão não tem sentido?"


No final de um poema, declara seu rumo:


"Escrevo; logo sinto, logo vivo,

E tiro-lhe ai viver a indisciplina

Que o espraiar, que o dispersaria

E dou-lhe a minha forma comedida,

A que tem o tamanho de um amor,

Que eu guardo, que não gasto, não disperso;

Amor que se concentra em dura pérola."


De vez em quando, Marly como que interrompe o escoar de um poema para soltar palavras como estas:


"Reino do amor, o reino do possível,

Que nos conduz a todos os extremos,"


Consta da orelha que escreveu para "Contato", este trecho de Antonio Houaiss sobre Marly de Oliveira: "Calma, a poesia de Marly não propõe, não dispõe, não impõe: partícipe de si mesma, do Outro e de Algo, que se faz carne e sonho, não clama urgências nem chora ausências."


Sugiro seja a obra de Marly de Oliveira republicada na íntegra e com estudos que realcem a importância de sua contribuição para a história da poesia no Brasil.


Tribuna da Imprensa (RJ) 22/7/2008