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Machado e o preconceito

 

Deve-se destacar em Machado de Assis não apenas os aspectos mais conhecidos das suas obras, especialmente os nove romances, em que abordou conflitos psicológicos antes mesmo da existência formal dos estudos da alma, mas preocupações com questões como o uso exagerado de línguas estrangeiras, o que permanece válido até hoje. No final do século 19, era comum na sociedade fluminense o emprego de palavras francesas e italianas, o que incomodava o Bruxo, conforme demonstrou em diversas crônicas.


Outro aspecto menos divulgado foi o seu louvor permanente ao povo de Israel. Em prosa e verso, demonstrou enorme simpatia pela causa hebraica, sem que seus críticos tenham destacado essa faceta, que mereceu da pesquisadora Anita Novinsky um denso trabalho que tivemos a honra de prefaciar (Editora Expressão e Cultura).


Ainda sobre Machado, quando nos aproximamos das homenagens que serão prestadas à sua memória, pelo centenário de morte, em 2008, convém recordar um fato que vai lentamente caindo no esquecimento. No dia 21 de abril de 1998, presente um grande número de acadêmicos, a ABL reparou uma inacreditável injustiça ou mesmo um triste ato de discriminação.


Quando a musa Carolina morreu, foi enterrada pela família num jazigo, no Cemitério São João Batista. Machado homenageou o grande amor da sua vida com o célebre poema À Carolina, um dos mais belos da língua portuguesa. Depois que Machado fechou os olhos para sempre, a família européia da esposa recusou a colocação do seu corpo junto aos restos mortais da bem amada, sob a indefensável alegação de que "ele era mulato".


Assim se passaram 90 anos. Sabedores do fato, procuramos os descendentes de Carolina, seus herdeiros. Por intermédio da amiga Maria Teresa Sombra, ela própria um dos familiares, chegamos à simpática figura de Dona Ruth, bisavó, que ao ouvir a argumentação da ABL assinou um termo de autorização para que se fizesse o traslado.


Separamos um espaço na entrada do mausoléu acadêmico e ali juntamos os dois enamorados, Machado de Carolina, dessa vez para sempre. O escultor Agostinelli fez um belíssimo trabalho em bronze, com dois pares de mãos entrelaçadas, de grande simbologia. Conseguimos gravar na lápide de mármore todo o poema à Carolina e uma chama votiva simbolizou o nosso eterno apreço.


No mencionado 21 de abril, dia de sol intenso, fez-se a comemoração da junção definitiva dos dois, em cerimônia especialmente organizada pela então diretoria da Casa de Machado de Assis. Houve muita emoção nos discursos, especialmente quando convidamos a cantora Kay, filha do compositor Carlos Lyra, para cantar o famoso poema Quando ela fala (words, words, words), numa inspiradíssima e original composição do seu pai, feita para a ocasião. Não foram poucos os que choraram de emoção.


Jornal do Brasil (RJ) 8/7/2008