Com a partida de Zélia a impressão é de que só agora a gente se despediu por inteiro do Jorge. Ela o alongou sempre. Zélia espichou a presença do ídolo e marido o tanto que lhe foi possível.
Juntaram-se novamente.
Os Vilaça foram compadres dos Amado e estes, padrinhos de Taciana Cecília. Por mais que importem no plano cultural, do modo mais amplo e, em particular, como escritores queremos é falar dos amigos. Amigos, e isto já basta.
Eu e minha mulher costumamos dizer que gostamos de gostar. Gostamos de gostar dos Amado, como gente e para sempre pois o sentimento se reserva a João Jorge e Paloma de agora em diante, particularmente.
O Brasil registrou de como Zélia foi a alegria do marido, a guardiã do bem estar dos filhos, a aliada incondicional dos amigos.
Nossas relações foram estreitas e tenho orgulho em falar delas. Por exemplo: tratava-a por Eunice. Ela adorava. Isto, desde o dia, já bem distante, em que descobri que por Eunice se identificava ao telefone, sempre que lhe convinha não dizer quem de fato era.
Muita gente deixou recados para ela própria ou para Jorge com essa Eunice. Mas, logo possível, Eunice retornava o contato, para ninguém prejudicar.
Eunice existe. É gente da casa. Auxiliar da Zélia, com quem cozinhava as delícias baianas da mesa enxundiosa. O "Estatuto" da casa dos Amado estabelecia mesa sempre cheia. Esquecer como, os efós? Felizmente perenizados também nas telas de Calazans Neto e Carybé.
Eunice ajudou na acolhida a quem chegasse ao Rio Vermelho e, também por certo tempo, a Itapoã.
Foi com carga afetiva de grosso calibre que fiz parte dos animadores da sua candidatura à Academia, sucedendo ao marido e em episódio de puro ineditismo.
A alguém menos atento e mais preconceituoso tive de advertir: Zélia não irá ser acadêmica por ser viúva do Jorge, nem está impedida de obter a glória da Academia por ser viúva do Jorge. Merece a "imortalidade" pela obra de escritora, uma memorialista de primeira. Genuína e heróica por não se seduzir pelo estilo do parceiro da vida toda. Permitiu-se a todas as outras seduções. E assim foi. Vitória consagradora, que deu aos seus confrades a doçura de uma excepcional convivência.
Zélia tinha as cicatrizes da vida dura, difícil em largo tempo. Mas eram cicatrizes só para ela, não as exibia. Em lugar disso, o riso franco, o beijo fraterno, a palavra doce, a fartura do carinho.
Neruda ao encontrá-la sempre pedia que lhe contasse cuentos. Neruda percebeu a riqueza da narrativa em Zélia e sabia explorar essa sua vertente. Zélia divertia e se divertia em contar casos. Parece fácil essa arte, mas, na verdade, é arte dificílima. Zélia tirava de letra.
Tomara não tenha esquecido nada e lá onde estiver com Jorge conte cuentos, muitos contos.
E do seu jeito, sem protagonizar-se.
Há provérbio judeu que diz: o homem ao falar, pensou e Deus sorriu. Pois aos mortais também está facultada a chance de sorrir ao pensar em Zélia. Ela era do mau humor todo o contrário. É pensar nela e sorrir.
Jornal do Commercio (RJ) 23/5/2008