Já devo ter contado aqui, ao longo de todos estes anos, que meu avô materno, o iracundo coronel Ubaldo (Ubaldo não é nome de família, é o de pia mesmo - acho que uns noventa por cento dos Ubaldos se concentram na minha família, mania estranhíssima), não punha as mãos em nada que fosse elétrico. Mas talvez não tenha contado e, de qualquer forma, há sempre alguém lendo esta coluna pela primeira vez, e espero que não pela última, de maneira que, somando-se o cada vez maior número de desmemoriados, pode ser que esteja oferecendo a alguns uma novidade.
O coronel não era propriamente avesso ao progresso. Por exemplo, lembro quando as saias encurtaram e ele apoiou grandemente a nova usança. Chegava mesmo a cumprimentar algumas moças pelo exuberante vigor juvenil de suas pernas de fora e, se alguma dava sopa, ele alisava. Ele sempre gostou de umas alisadinhas nas moças - e nisto confesso que saí a ele, se bem que, não entendo por quê, pareça minguar cada vez mais o número de moças que aprecia uma alisada. A juventude de hoje é muito difícil de entender.
Sim, mas meu avô deve ter lido em algum livro do século XIX uns dois vaticínios alarmantes sobre os mecanismos elétricos, porque a verdade é que de fato nunca tocou em nada elétrico, nem no interruptor de uma lâmpada. Se precisava que acendessem a lâmpada, chamava alguém entre seus muitos agregados para pôr a mão naquele instrumento que se comunicava com forças demoníacas. Nem mesmo quando inventaram a pilha e explicaram a ele que era uma eletricidadezinha fraca, que não dava choque, ele só saía à noite com o caminho iluminado por uma lanterna na mão de um acompanhante. Telefone, nas raríssimas vezes em que o utilizou, ele só pegava com um lenço e não encostava a orelha, ouvia a uma distância prudente. E, mesmo assim, virou surdo seletivo pouco tempo depois, o que lhe dava uma excelente desculpa para manter a longinqüidade do telefone.
Tampouco conheceu televisão. A gente ligava o aparelho na sala e ele imediatamente se retirava. Já fora da sala, num lugar de onde era impossível ver a televisão, ele ouvia pacientemente nossos argumentos. Era em preto e branco como nas fotos, mas as imagens se mexiam, falavam. "É como cinema", disse alguém de fora certa vez, desconhecendo a circunstância de que ele também jamais entrou num cinema.
- Creio, creio - dizia ele. - Podem deixar, que um dia desses eu venho ver.
Nunca foi, é claro. Da mesma forma, não há fotos dele em "instantâneos", como se dizia na minha infância, quando a maioria das máquinas exigia que os fotografados ficassem imóveis até a "chapa" ser batida. Já homem feito, eu tinha uma máquina então muito moderna e rápida, mas nunca consegui pegar um instantâneo dele. Uma vez quase cheguei lá, mas ele descobriu a tempo e, desse dia em diante, mandava confiscar a máquina, enquanto eu estivesse na ilha. Mas tirava fotos, sim. Contanto que perfilado, altaneiro, sério, de paletó e gravata, banho tomado e um "extratozinho" (perfume), que minha avó passava por trás da orelha dele, depois de ele fingir protestos. Uma vez eu disse a ela que perfume não saía em retrato (foto) e ela desdenhosamente retrucou "mas sai a elegância".
Mas por que estou falando tudo isso, que não tem nada a ver com o que se passa em torno? Aí é que vocês se enganam, tem, sim. Não haverá entre vocês quem não esteja começando a cansar de abrir um geringonça antigamente inútil ou inconcebível, para perceber que ela já está obsoleta e, o que pior, para usar a próxima, você vai ter que comprar e aprender um programa inteiramente novo? Não me refiro somente aos velhotes, ou mais para lá do que para cá, mas a gente aí de seus trinta, quarenta anos, que embarcou entusiasta na onda da internet, usa tudo quanto é tipo de aparelhinho imaginável, tem um celular que pega a BBC, passa a ferro e resolve problemas de cálculo infinitesimal, mas agora vê que não faz mais nada na vida a não ser mexer com essa bagulhada. O computador e seus assemelhados vieram para facilitar o trabalho - e realmente facilitam muito. Mas quantas pessoas trabalham bem mais no computador e para o computador do que no seu trabalho propriamente dito?
Leio aqui numa revista americana que muita gente, inclusive jovens, já anda de saco cheio. Antigamente, para regular o som, o sujeito dispunha dos botões de volume, graves e agudos. Alguns metidos a besta tinham médio. Não complicava a vida de ninguém. Aí vieram os equalizadores, cheio de regüinhas e freqüências para escolher, com o sujeito usando tabelas, medidores incompreensíveis e horas de seu tempo para achar a configuração certa, com a qual seu melhor amigo jamais concordará, levando ao desespero obsessivo que já acomete milhões e milhoas. Pelo menos dêem um tempo, umas semaninhas, para a gente conviver brevemente com algo de que gosta, mas cuja extinção é decretada tiranicamente em prazos cada vez mais curtos.
Para não falar nas mudanças sociais quiçá indesejáveis. Outro dia, uma conhecida nossa, dona de casa, perguntada sobre o que fazia, respondeu:
- Sou viúva de computador. Uma CW - Computer Widow or, as the case may be, Widower. Já é classificação internacional. Você chega e diz "sou uma CW" e todo mundo entende logo que seu marido não pôde vir porque está reconfigurando o Word, ou coisa assim. Mas a batata deles está assando.
- Como assim?
- Já estamos fundando um clube de CWs, unissex. Eles vão ver o que é bom para a tosse.
O Globo (RJ) 11/5/2008