O ímpeto que leva um escritor a fazer um poema difere do que o conduz a contar uma história e mais ainda quando busca o ensaio literário. O poema pede a visão instantânea de uma realidade insuspeita, que o poeta capta e procura colocar em ritmo adequado e palavras exatas. A narrativa, por sua vez, se subordina a leis do tempo, a um determinado decorrer de acontecimentos e, por avançada que seja sua técnica, através do contraponto, de cortes inesperados, de aprofundamentos psicológicos, a história, o enredo, têm de ser contados, impondo-se à consciência de quem narra.
Já a ensaística abre o horizonte que está sob as palavras e estuda a raiz das coisas. Ler os ensaios de Nélida Piñon, no excelente volume "Aprendiz de Homero", em que estuda as bases de uma atividade literária que levou "seu nome em âmbito universal, é um privilégio.
Antes de tudo, vale louvar o estilo direto da autora, estilo de ensaísta das melhores, mostrando, argumentando, aprovando, opinando. Que a ensaística pertence também ao ramo da didática, não há dúvida, mas tem de ser uma didática não só fundamentada em pesquisas pessoais servidas por uma linguagem de inteira pessoalidade literária. Este é o caso de Nélida Piñon, cujos trabalhos anteriores já pertencem à literatura de nosso tempo.
A luta pela palavra é, para o escritor, permanente, ao ponto de os ingleses se terem dado ao trabalho de contar que Shakespeare usou mais de oito mil palavras para escrever sua obra. O uso da palavra é o forte em Nélida Piñon, não só em seus muitos romances, mas também num livro de ensaios como "Aprendiz de Homero", em que fala de si mesma como escritora.
Assim: - "Nasci escritora, nasci leitora. Os traços e as idiossincrasias, inerentes a ambos os estados, acompanham-me sempre. Já na infância, tinha apetite pelas palavras, escritas e faladas. Olhava os escritores de forma agradecida. Aqueles seres, responsáveis pelos livros de lombadas atraentes e capas coloridas, forravam o meu imaginário com feno e sonhos. Livros que me prorrogavam a existência e impediam que eu caísse nas malhas do banal".
Muito boas suas considerações sobre a memória feminina que procurava guardar o ensinamento dos personagens dos livros que lia. Diz: "Afinal, aqueles autores, combalidos, sublimes, aventureiros, haviam escrito livros como "Dom Quixote", "Crime e castigo", "As viagens de Marco Pólo", "Winnetou", "Romeu e Julieta", "O sítio do Picapau Amarelo", de Monteiro Lobato. Via-os eu como deslumbrantes viajantes do espírito humano, inesgotáveis forjadores de enredos."
Atinge Nélida Piñon, neste livro, novo terreno em sua obra, indo ao fundo mesmo dos motivos pelos quais escrevemos, revelando aspectos de um mundo real que existe no romance. O capítulo em que fala de Machado de Assis ilumina também a cidade em que nasceu e viveu, o Rio de Janeiro, que é o principal personagem de sua obra. Essa ligação entre o homem e sua cidade foi permanente.
Num tempo em que quase todos os escritores brasileiros faziam viagens à Europa, visitavam Lisboa e Paris ou viajavam pelo Brasil, iam a São Paulo, Ouro Preto e Recife, Machado de Assis passou os 69 anos de sua vida no Rio de Janeiro, do qual se afastou, por ordem médica, durante uma semana, para ir a Nova Friburgo. Foi, assim, um habitante permanente de sua cidade, à qual dedicou a quase totalidade das páginas que escreveu.
Nélida comenta: "... este burgo de Machado, o Rio de Janeiro, sanciona-lhe a história que ele elegeu contar. Ela autentica a trama alojada nas alcovas, no interior das carruagens, como muitas vezes ocorre em seus romances. A cidade era a sua casa."
Narra Nélida: "Machado de Assis elege o Rio de Janeiro como seu modelo literário. Sua imaginação instala-se na cidade... Para Machado de Assis, a cidade é poderosa manifestação poética. Um labirinto que favorece suas reflexões e do qual não quer sair, atraído pelas suas zonas de sombra. Passagem obrigatória para o fluxo da paixão humana".
"Aprendiz de Homero", de Nélida Piñon, é um lançamento da Editora Record. Capa de Evelyn Grumach.
Tribuna da Imprensa (RJ) 8/4/2008