O Fórum de Debates da XIII Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro foi excelente pretexto para focalizar alguns aspectos essenciais da nossa língua e literatura. A começar pela adiada entrada em cena do Acordo Ortográfico de Unificação, a que Portugal resistiu bravamente. Segundo seus filólogos, estaria havendo um “colonialismo dos excolonizados”, querendo impor 1,4% de alterações ortográficas para Portugal, contra 0,5% do Brasil.
Na discussão, no Riocentro, assistida por cerca de 400 pessoas, os especialistas Sérgio Nogueira e Pascoale Cipro Neto defenderam posições equivalentes, ou seja, foram contrários à revisão ortográfica proposta por algumas nações da comunidade lusófona. Por motivos variados, entenderam que não seria oportuno tumultuar as escolas e a produção de livros com os temas do Acordo Ortográfico. Assim, concordaram com o adiamento, para as calendas. O trema continua, k, y e w não integram o nosso alfabeto e o hífen não terá regras simplificadas. As razões estratégicas foram desprezadas. O que fazer?
Em seguida, tratamos de um tema instigante: “Adjetivos, verbos e advérbios: armadilhas da construção literária”. A proposta representava um desafio, pois adjetivos e advérbios são mais formais, enquanto lidar com verbos, fora das regras estabelecidas, é mais perigoso, envolve riscos. Veja-se o caso dos escritores José Cândido Carvalho (“O Coronel e o Lobisomem”) e Dias Gomes (“O bem amado”), este último alavancado por uma enorme audiência da telenovela global. Quando se vulgarizou o emprego de termos como “apenasmente”, do herói da história, quantas crianças adotaram esse aparente linguajar interiorano, “vamos deixar de entretantos e ir direto aos finalmentes”? Assim mesmo no plural, embora o advérbio seja invariável.
É preciso estabelecer um consenso entre liberdade acadêmica e licença poética. Enquanto a esta quase tudo se permite, naquela ainda há escrúpulos quanto ao ato de transgredir as regras da norma padrão. A gramática, que deve ser ensinada nas escolas, necessariamente, passa pelas lições dos nossos maiores especialistas, como é o caso de Celso Cunha e Antonio Houaiss. A liberdade, aí, é mais que relativa.
Vejamos a questão do “houveram”. Ficamos horrorizados quando um ex-ministro da Educação ocupou o horário nobre da televisão e agrediu os nossos ouvidos com um sonoro “houveram fatos lamentáveis a considerar...” Do princípio da eufonia, uma barbaridade. Mas como condenar esse uso se ele está em Machado de Assis, o maior dos nossos escritores? Pode-se argumentar que é coisa do passado. Modernamente, a forma não teria mais razão. O verbo haver, no sentido de existir, é impessoal – uma oração sem sujeito. Só costuma ser usado na 3a pessoa do singular (houve). Mas os arcaísmos podem ser considerados errados? Um professor tiraria pontos de um aluno que os utilizasse, livremente?
A questão da liberdade de escolha é muito séria. O filme “Primo Basílio”, de Daniel Filho, é um primor de execução. Baseia-se no romance “O primo Basílio”, de Eça de Queirós. Pode a adaptação brasileira dispensar o artigo definido escolhido pelo genial escritor português? Alguém dirá que tanto faz, o que não é a nossa opinião.
Jornal do Commercio (RJ) 21/9/2007