Já escrevi aqui diversas vezes, movido pela observação do nosso comportamento no geral apático, resignado, submisso, subserviente perante a ortoridade e, ouso dizer, desfibrado e passivo, que somos um povo ovino. Certamente a generalização deve ser vista com as necessárias reservas, pois já houve, aqui e ali em nossa História, episódios em que pelo menos parte de nós não procedeu como uma carneirada. Mas hoje, não. Hoje, governados por medidas provisórias e canetadas diversas, não só nos tangem para lá e para cá como um rebanho de que nem é mais necessário cobrar docilidade, como debocham da gente o tempo todo - mentindo, achando que somos todos imbecis e curtindo com a nossa cara. O comentário geral é de que o povo não respeita mais os governantes, especialmente deputados e senadores. Acho isso engraçado, pois, na minha opinião, é exatamente o contrário. Eles é que não nos respeitam e não estão querendo nem saber o que pensamos.
Engrupir-nos é tarefa incessante e de rara eficiência. Já pagamos sem discutir quase a metade do que ganhamos em impostos, diretos ou indiretos. Assistimos à indecência da CPMF sendo prolongada à custa de mais indecência, nada que leve em conta os nossos interesses, mas os deles, que não se sentem devedores de satisfações e fazem favor quando nos ouvem condescendentemente. Agora debocharam de novo, com esse negócio de fidelidade partidária. Instituímos a fidelidade partidária, dizem eles, mentindo com a cara de pau habitual e a atitude de quem está acostumado a lidar com inteligências primitivas. Claro, fizeram justamente o contrário: institucionalizaram a infidelidade partidária, dando um prazo para ela ser cometida. C+O=PB, eis a nossa equação, onde C é Carneirada, O é Otários e PB é Povo Brasileiro.
Desculpem por lembrar o kit-socorro novamente, mas desta vez não é por birra inconformada, não, é porque estão armando outra, agora bem mais espetacular e lucrativa que a do kit. Só para lembrar aos carneiros esquecidos, faz uns anos o governo obrigou a adoção de um tal kit de primeiros-socorros, que todos os milhões de motoristas brasileiros foram forçados a comprar. Depois se chegou à conclusão de que o kit não valia nada e podia até ser prejudicial e aí retiraram a exigência. Só que a única empresa que o fabricava e distribuía já tinha vendido milhões e milhões e tomado uma bela grana dos otários. E sabe-se lá quem mais também ganhou grana, ninguém devolveu dinheiro, sensacional golpe aplicado, ficou tudo por isso mesmo.
Muito bem, agora o Conselho Nacional de Trânsito (imagino que o mesmo operoso órgão que adotou o tal kit) resolveu que os novos carros sairão de fábrica com um aparelho eletrônico, se não me engano uma espécie de GPS, destinado a localizar os carros furtados. Diz o Contran que está apenas cumprindo a lei, a qual ordena que os carros saiam de fábrica com um equipamento antifurto.
Mentira ou distorção, uma atrás da outra. A lei de fato diz que deve ser instalado um equipamento antifurto nos carros, mas não diz qual. E esse tal localizador é exatamente isto: localizador, não equipamento antifurto. Encontra o carro depois do furto, provavelmente todo depenado ou amassado. Mas escolheram esse para nos empurrar goela abaixo, queiramos ou não, desvirtuando a lei ou não. São mais mil a dois mil reais por carro, devidamente repassados ao comprador final. As montadoras, diante desse repasse, devem estar se lixando para a medida, até porque talvez estejam fazendo excelentes negócios com fabricantes de localizadores eletrônicos.
Aliás, devem estar sendo feitos excelentes negócios em muitas áreas correlatas. Por exemplo, o feliz comprador de um carro equipado com uma geringonça que nunca pediu, nunca quis ou na qual nunca pensou pode, um belo dia, já que o dinheiro estará gasto mesmo, usar o aparelho. Ah-ha¡ Para isso precisará contratar os serviços de uma empresa rastreadora, que conectará o seu localizador aos computadores dela e lhe cobrará a módica quantia, segundo ouço, de sessenta a oitenta reais por mês.
Quer dizer, claro que pode ser tudo fruto de mera incompetência, primeiro-mundismo desenfreado, ou problema nos reversores, nunca se sabe. Mas, diante do que aparece à nossa frente todo dia, ninguém nos pode negar o direito de suspeitar que o que está acontecendo é outra grande jogada para faturar uma grana preta, desta feita com bem maior continuidade do que o kit de primeiros socorros. Imaginem, companheiros e companheiras de rebanho, um aparelhinho bem faturadinho em cada carro, o dono pagando, queira ou não queira. E um felizardo elenco de empresas rastreadoras com uma freguesia cativa, já tudo montado para atacar o novo mercado.
Sim, posso estar errado. Todo dia lembro a admoestação do presidente, quanto a presumir a inocência do acusado até que seja provada sua culpa. E vejo o cuidado com que a Zelite política observa esse princípio, tanto assim que, pelo andar da carruagem, as cuidadosas investigações sobre o dr. Renan Calheiro deverão durar, se tanto, mais uns quinze anos, o dr. Tuma é ligeiro. Posso, posso estar errado, sim.
Pois desculpem se estou errado, mas para mim esse negócio é jogada, é mais uma mutreta impune e com a colaboração ativa do governo, é mais gente metendo a mão no bolso do cidadão, é a bandidagem geral que assola a nação se alastrando e enraizando por todas as áreas de atividade. Vamos engolir tudo calados outra vez? Bem, pelo menos eu resolvi que não ia ficar calado. E, sinceramente, se esse negócio não for derrubado, nunca mais levo a sério reclamação ou queixa de ninguém, vou concluir que reclamam mas gostam.
O Estado de S. Paulo (SP) 26/8/2007